O som de 10 línguas indígenas brasileiras em perigo de extinção
- Equipe
de Jornalismo Visual da BBC News Brasil
- 18
de dezembro de 2023
- Brasil
O território brasileiro abriga hoje apenas 20% das estimadas
1.175 línguas que tinha em 1500, quando chegaram os europeus. E, ao contrário
de outros países da região, como Peru, Colômbia, Bolívia, Paraguai e até
Argentina, o Brasil não reconhece como oficiais nenhuma de suas línguas
indígenas em âmbito nacional.
Ainda assim, o Brasil é considerado um dos 10 países com o
maior número de línguas no mundo e um dos que possuem maior diversidade
linguística – ou seja, grande quantidade de famílias diferentes e de línguas
isoladas.
Para dar uma ideia da diversidade linguística e cultural do
país, a BBC News Brasil fez uma seleção com a ajuda de especialistas indígenas
e não indígenas.
O resultado é este especial, no qual mostramos 10
das línguas indígenas faladas hoje no Brasil, de diferentes famílias e em
distintas situações de preservação.
Parikwaki
a língua preservada em um povo multilíngue
Língua aruák
A língua do povo palikur-arukwayene, parikwaki, faz parte da
grande família aruák, uma das maiores no Brasil. Essa era certamente uma das
línguas faladas já quando os europeus chegaram ao continente, e permanece viva
e utilizada até hoje.
Sabemos disso porque os primeiros registros dos palikur
foram feitos ainda em 1513, por um viajante espanhol que os encontrou na foz do
rio Amazonas — uma enorme sociedade chamada de parikura, de navegadores e
guerreiros.
Os palikur eram um dos povos aruák que habitavam a região e
hoje são os únicos representantes daquela ocupação. No século 17, eles tiveram
que migrar para o interior do Amapá ao serem perseguidos por portugueses —
temendo que eles comercializassem com outros europeus que passavam pela região.
Depois da definição da divisão entre Brasil e Guiana
Francesa, no começo do século 20, a maioria dos palikur chegou a se mudar para
o território francês, por serem mal tratados pelas autoridades brasileiras. Mas
epidemias fizeram com que voltassem ao Amapá.
Hoje, os palikur se dividem em 15 aldeias, que podem ter
desde apenas um núcleo familiar de sete pessoas até uma população de 670.
Na região de Oiapoque, eles chegam a eleger, juntamente com
outros povos indígenas que vivem ali, um terço da Câmara de vereadores local.
Trabalham também no Fórum de Justiça, na Funai, são professores nas escolas em
suas aldeias e agentes de saúde.
A língua ainda tem alto grau de transmissão entre os
palikur. Um levantamento da linguista Elissandra Barros da Silva, da
Universidade Federal do Amapá (Unifap), que trabalha com essa população há 15
anos, mostra que cerca de 33% deles são trilíngues (falam parikwaki, português
e a língua crioula khéuol).
Mas isso não quer dizer que o futuro da língua não esteja
ameaçado.
Apesar de falarem
a língua, as crenças e as atitudes dos palikur em relação a ela são negativas.
Elissandra Barros - Linguista
da Universidade Federal do Amapá
"Para eles, falar o parikwaki e não dominar o português
está associado com sofrer preconceito na cidade, com terem perdido o domínio comercial
na região, com terem dificuldade em alcançar cargos que outros povos
conseguem", diz a pesquisadora.
As crianças palikur, segundo as pesquisas da linguista e de
seus alunos, já entendem desde cedo que há ambientes específicos para cada
língua, e que a língua "mais importante de aprender" é o português.
"O status da língua deles está cada vez mais associado
à família. Isso é péssimo a longo prazo, porque a língua está perdendo espaços
de uso. Dentro de uma geração, ela não vai mais ser transmitida", alerta.
Com uma eventual perda do palikur, se perderia também um dos
sistemas numéricos mais únicos entre as línguas brasileiras. "É uma coisa
maravilhosa, porque eles marcam no número a forma do objeto", explica
Barros.
Em português, dizemos "um" tanto para uma banana
como para um prato, por exemplo. Já os palikur contam com numerais diferentes
para objetos compridos, circulares e outros tipos.
"Existem ao menos seis formas diferentes só para
indicar o número um, de acordo com a forma das coisas. Isso faz com que as
crianças palikur tenham certa dificuldade de aprender matemática na escola. Se
a cartilha com o desenho manda somar cenouras e laranjas, elas não entendem
como fazer essa contagem", diz a linguista.
Por exemplo, "um homem" é pahavwi awayg.
Mas se o objeto contado tiver o formato chato como um prato (miruk), o
mesmo número se transforma em pahak. Para "um lugar" (iwetrit),
de formato pouco preciso, o número é paha. E para um côco (kuk),
objeto redondo, pohow.
Para Barros, isso pode se relacionar com o fato de que os
palikur são um povo "extremamente hierárquico".
"Eles gostam de classificar tudo. Se dividem em clãs,
com suas características e suas origens. E ajuda muito saber a posição de cada
pessoa para saber como lidar com ela", afirma.
Segundo Lenise Palikur, estudante e pesquisadora da Unifap,
cada clã tinha seu dialeto, seu modo de viver, seu território, seus líderes.
Seus nomes são dados de acordo com a função que exercem na organização do povo.
"No decorrer do tempo, muitos clãs foram extintos por
guerras entre eles e com outros povos. Hoje temos seis clãs. Wakavunyene (gente
da formiga preta) são os responsáveis pela administração da aldeia; Wadahyene (gente
da lagartixa) são bons escaladores e ótimos caçadores; Paraymyene (gente
do peixe bagre) são os pescadores, considerados também como bons nadadores. E
assim por diante", explica.
Terena
a língua que resiste à proximidade com os não indígenas
Língua aruák
Os terena são descendentes modernos dos guaná-chané, o povo
de língua aruák a migrar para mais longe a partir da Amazônia. Apesar do seu
contato constante com não indígenas e grande presença nas cidades, a língua
terena (emo'u têrenoe ou "fala dos Terena") continua
sendo falada nas aldeias.
O aruák é uma das grandes famílias de línguas presentes no
Brasil e uma das mais espalhadas pela geografia das Américas – em todo o
continente, são cerca de 70 línguas, incluindo o taino, língua do povo que teve
o primeiro contato com Cristóvão Colombo na ilha de Hispaniola, na atual
República Dominicana.
O terena chama a atenção por sua gramática complexa, na qual
um verbo simples pode ser acrescido de sufixos, formando um
"superverbo" que carrega tanto sentido quanto uma frase inteira no
português.
Também é comum usar partes do corpo como metáforas de
posições no espaço. Para dizer que alguém vive "em meio a nós", por
exemplo, os terena dizem hiyéuke ûti ou, "em nosso
cabelo".
Sobre a superfície de algo vira inúku-ke, ou
"na testa". Embaixo de algo é opéku-ke, ou "no
osso". Na ponta de algo é kiríku-ke ou "no
nariz". Assim, algo sobre a água está "na testa da água" o que
está no centro do fogo está "no olho do fogo".
"Em muitas línguas se faz algo parecido, até no
português. Dizemos 'no pé da montanha', por exemplo. Mas em algumas línguas
isso fica tão automático, tão natural, que as expressões ficam mais
generalizadas. Foi o que aconteceu com o terena", explica o linguista
Fernando Orphão de Carvalho, do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ).
Os terena hoje se espalham principalmente pelo Mato Grosso
do Sul.
Nos anos 1930, eles também foram levados pelo Serviço de
Proteção aos Índios (SPI) – órgão antecessor da Funai – para o interior de São
Paulo, para ajudar na sedentarização do povo guarani.
"Como eles tinham uma tendência maior de sedentarização
e de dedicação à agricultura, eles eram vistos de forma melhor pelo estado
brasileiro, considerados 'mais civilizados'", afirma Orphão.
"Então houve algumas tentativas de usá-los para
assentar os guarani, que eram mais nômades e para mediar a relação com os
guaicurus, que eram mais belicosos."
Hoje, os terena são cerca de 26 mil, formando uma das
maiores populações indígenas do Brasil.
Apesar de conhecida e falada pela maioria da população, a
língua terena não é igualmente usada em todas as aldeias.
"Há terras indígenas, especialmente mais ao sul do
Estado, onde basicamente não se fala mais a língua, eles estão muito cultural e
fisicamente misturados com a população não indígena", diz Fernando Orphão.
"Em outras ainda há muitos falantes. Você ouve as
crianças brincando em terena e muitos idosos são monolíngues em terena."
Os terena, no entanto, são um dos casos de povos indígenas
muito assimilados à sociedade não indígena, mesmo nas comunidades onde a língua
está mais presente.
"Eles compram comida, cozinham em casa como a gente,
têm ventilador, tem cama, bebem tereré como a população do Mato Grosso do Sul.
A aldeia é organizada em termos de casas e ruas como qualquer pequena cidade do
Brasil rural", diz o pesquisador.
Essa assimilação, que também foi uma estratégia de
sobrevivência, segundo Orphão, coloca a língua terena em perigo.
"Quando os velhos falam com os jovens, eles entendem
tudo, mas respondem em português e muitos assimilam todo tipo de preconceito da
nossa sociedade contra os indígenas."
O pesquisador diz que é preocupante a falta de oportunidades
de trabalho para os indígenas e que percebeu uma "dissolução gradativa do
senso de comunidade". Mas ainda há esperança, segundo ele.
"Na primeira vez em que fui à aldeia de Cachoeirinha,
em 2016, eu percebi os terena muito dependentes dos não indígenas. Na segunda
vez, em 2018, já vi que as coisas estavam mudando. Eles estavam voltando a
cultivar suas roças", diz.
Créditos:
Texto e reportagem: Camilla Costa
Design: Caroline Souza
Edição e design de vídeo: Daniel Arce
Desenvolvimento: Marta Martí Marques, Alex Nicholas, Matthew Taylor
Edição e coordenação: Carol Olona
Agradecimentos: Felipe Corazza, Marcos Gurgel, Holly Frampton,
Denny Moore, Gustavo Godoy, Bruna Franchetto, Hein van der Voort, Kristina
Balykova, Januacele Francisca da Costa, Elissandra Barros, Gasodá Suruí, Julien
Meyer, Joana Autuori, Andrés Pablo Salanova, Fernando Orphão de Carvalho,
Edison Melgueiro Baniwa, Francy Fontes Baniwa, Janina dos Santos, Maria do
Carmo Martins, Esmeralda Maria Piloto, Keila Felicio Iaparrá, Kilia Sanumá,
Kalepi Amarildo Sanumá, Cacique Djik Fulni-ô, Fábia Fulni-ô, Éxetina Aristides
Terena, Aronaldo Júlio, todas as mulheres e homens indígenas que cederam seus
vídeos.
Vídeos:
Ikolen - Falantes: Sena Kéré’áàp Gavião e
Vása Séèp Gavião Participantes: Oliveira Gavião e Tarami
Gavião Imagens e edição: Julien Meyer e Laure Dentel |
Cortesia do Museu Emilio Goeldi Tradução: Denny Moore, João
Cipiábíìt Gavião e Julien Meyer
Nheengatu - Falantes: Maria do Carmo
Martins e Esmeralda Maria Piloto Imagens e tradução: Edilson
Melgueiro Baniwa
Parikwaki - Falante, imagens e tradução: Keila
Felicio Iaparrá
Terena - Falante: Éxetina Aristides Imagens
e tradução: Aronaldo Júlio
Guató - Falante: Eufrásia Ferreira
(Djariguka) Imagens: Kristina Balykova e Gustavo Godoy Edição
e tradução: Kristina Balykova
Yaathê - Falante: Cacique Djik Fulni-ô
(Cícero de Brito) Imagens: Fábia Fulni-ô Tradução: Januacele
Francisca da Costa
Ka’apor - Falantes e sinalizantes: Jarara
Pirã Ka'apor e Sypo Ruwy mãi (Joana Ka'apor) Imagens, edição e
tradução: Gustavo Godoy
Kayapó - Falante: Nhàkture (Maria
Eugênia) Imagens, edição e tradução: Andrés Pablo Salanova
Kheuól - Falante, imagens e tradução: Janina
dos Santos
Sanöma - Falante: Kilia Sanumá Imagens: Kalepi
Amarildo Isaac Sanumá Tradução: Joana Autuori
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