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quinta-feira, 29 de agosto de 2024

O som de 10 línguas indígenas brasileiras em perigo de extinção (3)

BBC NEWS BRASIL

O som de 10 línguas indígenas brasileiras em perigo de extinção

  • Equipe de Jornalismo Visual da BBC News Brasil
  • 18 de dezembro de 2023
  • Brasil

O território brasileiro abriga hoje apenas 20% das estimadas 1.175 línguas que tinha em 1500, quando chegaram os europeus. E, ao contrário de outros países da região, como Peru, Colômbia, Bolívia, Paraguai e até Argentina, o Brasil não reconhece como oficiais nenhuma de suas línguas indígenas em âmbito nacional.

Ainda assim, o Brasil é considerado um dos 10 países com o maior número de línguas no mundo e um dos que possuem maior diversidade linguística – ou seja, grande quantidade de famílias diferentes e de línguas isoladas.

Para dar uma ideia da diversidade linguística e cultural do país, a BBC News Brasil fez uma seleção com a ajuda de especialistas indígenas e não indígenas.

O resultado é este especial, no qual mostramos 10 das línguas indígenas faladas hoje no Brasil, de diferentes famílias e em distintas situações de preservação.

Guató

a língua recuperada a partir dos últimos falantes

Língua isolada

O guató é a última língua sobrevivente dos povos canoeiros do Pantanal brasileiro, mas deixou de ser transmitido para as gerações mais novas desde meados do século 20. No entanto, a pedido do povo guató remanescente, pesquisadores estão ensinando-os a falar a língua, usando o que aprenderam dos três últimos falantes conhecidos.

Eles conviviam com muitos outros na região que vai até a planície do Chaco, na Bolívia.

"No passado, eles praticamente viviam dentro das canoas, faziam fogueira, cozinhavam, etc. Os outros povos que viviam dessa maneira agora são extintos", diz a linguista Kristina Balykova, que conduz o estudo da língua.

Os hábitos de povo canoeiro podem ter influenciado o modo de falar dos guató, segundo os linguistas. Por exemplo, na existência dos "sufixos direcionais" – partículas colocadas após as raízes dos verbos para descrever a direção do movimento.

"Se em português dizemos 'o cachorro correu na minha direção', é como se em guató eles falasse 'o cachorro correuparamim'. Esse 'para mim' seria um pequeno sufixo no fim do verbo", explica Balykova.

Entre outras direções, o guató tem um sufixo que significa 'descendo o barranco do rio' e outro que é 'subindo o barranco do rio'. Arrastar meu barco descendo o barranco, por exemplo, seria maegopaniayn. Subindo, maegopanigun.

"Há estudos que mostram que os povos que têm muito contato com a água (por exemplo, na Amazônia) costumam ter esses recursos gramaticais para falar de tudo o que se refere a ela. Nós precisamos de uma expressão para dizer 'descendo o barranco'. Eles, de dois sons. É como se eles falassem tanto daquilo que desenvolveram uma forma reduzida", diz.

Guató está sendo recuperado a partir dos dois últimos falantes; entre eles, dona Eufrásia Ferreira | Foto: Cortesia Gustavo Godoy

O sistema numeral dos guató também intriga os pesquisadores. Ao contrário de povos que viviam de maneira semelhante, eles eram capazes de contar até as centenas e os milhares.

"Isso é muito raro entre as línguas indígenas. De um modo geral, a maioria das línguas faladas por povos caçadores e coletores têm poucos numerais. Só têm palavras até o três ou o cinco", afirma Balykova.

"Sabemos, por outras características da língua, que eles davam uma atenção especial a questões matemáticas: contagem, medição. Mas o que exatamente eles contavam? Não se sabe."

As palavras para designar os numerais têm a ver com o corpo. Quinze, por exemplo, significa, literalmente, "os dedos do pé de alguém, já incluídas as mãos".

Segundo Balykova, os guató não fundavam aldeias e, sim, casas dispersas na beira do rio durante a seca. Nas cheias, construíam aterros para se instalarem, nos quais famílias diferentes podiam morar juntas. De modo geral, elas viviam separadas.

Esse modo de vida os manteve integrados durante invasões europeias, guerras locais e epidemias, mas também facilitou sua eventual desintegração.

Com a guerra do Paraguai, na qual lutaram pelo Brasil, e a chegada dos grandes fazendeiros, no século 19, muitas famílias guató perderam território e foram trabalhar nos latifúndios da região – onde falar sua própria língua era proibido.

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As mulheres passaram a casar-se com homens de fora da etnia e os filhos de guatós muitas vezes eram levados para fazendas como "afilhados" trabalhadores, e perdiam contato com a língua.

"As famílias guató foram se desfazendo, e a língua foi acabando junto", afirma a pesquisadora.

Parte dos guató se organizou nos anos 1970 para exigir direitos. Vinte anos depois, foi criada a Terra Indígena Guató, em Mato Grosso do Sul. Outro grupo reivindica também a Terra Indígena Baía dos Guató, em Mato Grosso. Este foi o grupo que pediu ajuda para recuperar a língua.

A partir de estudos e de conversas com três idosos, considerados seus últimos falantes plenos – Vicente Caetano da Silva (Djoguápo), André Luiz de Oliveira (Djógito), seu irmão, e Eufrásia Ferreira (Djariguka, morta em 2021) – o guató, que eles conhecem como gotxeuvy ioty ou "língua de gente", está sendo sistematizado e ensinado ao seu povo.

Os pesquisadores produziram cartilhas para as aulas e o próximo passo foi a produção de um dicionário online português-guató, com apoio do Museu do Índio e da Unesco. Kristyna Balykova, autora do dicionário, trabalha agora em uma gramática da língua no doutorado pela Universidade do Texas em Austin.

"Ainda temos um longo caminho pela frente. Revitalizar uma língua é um processo complexo, e há muitos modelos que podem ser seguidos", diz a linguista.

Os guató estão entusiasmados com a retomada do idioma. Kristina mantém contato com professores locais, que lhe mandam listas de frases que crianças e adultos querem saber. Os adultos pediram uma frase específica: "vamos fazer sexo?".

Para Balykova, "é uma mostra de que eles querem usar a língua cada vez mais na intimidade. Não é apenas para mostrar aos não indígenas".

Os fazendeiros da região dizem que estamos 'ensinando os guató a ser índios', mas não é nada disso. Nós os estamos ajudando a recuperar algo que foi tirado deles, muitas vezes com violência.

Kristina Balykova Linguista da Universidade do Texas em Austin

"É cruel impedi-los de falar sua língua e depois dizer que eles não podem recuperar parte da sua identidade", afirma a pesquisadora.

Yaathê

a língua mantida em rituais secretos

Língua isolada

Conhecida como a única língua indígena do Nordeste que se manteve viva (considerando o Maranhão como parte da Amazônia), o yaathê foi mantido, durante séculos, em rituais secretos no sertão pernambucano.

Os indígenas fulni-ô vivem nos arredores de Águas Belas, a cerca de 273 quilômetros de Recife, desde pelo menos o século 17.

A população da aldeia fulni-ô chegou a cair de cerca de 320 pessoas em 1749 a menos de 100 em 1873.

Hoje, são cerca de 4.690 pessoas, segundo estimativa do Instituto Socioambiental (ISA).

Até o início do século 20, a língua tradicional foi reprimida e chegou a ser proibida pelas autoridades locais.

Isso levou os fulni-ô a sair da aldeia todos os anos para um retiro espiritual secreto — realizado majoritariamente em seu idioma — chamado Ouricuri, segundo explica a linguista Januacele Francisca da Costa.

O Ouricuri começa a ser preparado em agosto e ocorre entre setembro e outubro, um total de 14 semanas. Todo o grupo – incluindo aqueles empregados na cidade – se retira para outra aldeia para permanecer durante todo o ritual. Não indígenas podem visitar o local antes do início do ritual, mas não participam dele.

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Os fulni-ô começam a frequentá-lo desde crianças e, quem não frequenta, perde o direito de participar e deixa de ser considerado parte do grupo.

"Só pode participar quem tem ao menos o pai ou a mãe fulni-ô. Mas mesmo os pequenos filhos de indígenas com brancos evitam falar sobre o ritual para não indígenas, é impressionante", diz a linguista.

Falar sobre o ouricuri é proibido, assim como é vetado o ensino do yaathê para os que não são da comunidade.

Durante as perseguições, o segredo foi fundamental para reforçar o caráter da língua como algo tradicional, ligado ao sagrado e, portanto, importante para a comunidade para além da comunicação do dia a dia.

Segundo a especialista, isso dificultou a sua substituição pelo português, que é a língua dominante na vida social.

Hoje, as crianças fulni-ô também aprendem o yaathê na escola, em cantos tradicionais praticados na comunidade e com filmes – desde 2011, um coletivo de cinema produz documentários na língua nativa.

Originalmente, o yaathê só tem nomes para numerais até o três, algo comum a muitas línguas indígenas. Ao longo do tempo e por causa da convivência com não indígenas, os fulni-ô fizeram adaptações ao seu vocabulário.

Os fulni-ô continuam realizando o ritual secreto do Ouricuri todos os anos, em aldeia próxima de local desconhecido | Foto: Cortesia Marina Costa

"Para o número quatro, por exemplo, eles passaram a usar a palavra fasiska, que significa borboleta, porque esse é o animal do quatro no jogo do bicho. Para cinco eles usam khoho fathowa, que significa 'uma mão'. Já seis é uma expressão que significa 'um em cima de uma mão'. E depois daí vão contanto de cinco em cinco", explica Januacele.

Novas palavras também foram formadas para incorporar conceitos do português que não existiam no yaathê.

"O interessante é que eles fazem as palavras a partir de sua forma, não do significado. A palavra tdia significa 'caminho'. Para dizer 'caminhão', o veículo, eles usam tdia hesa, que é como se fosse 'caminho grande'", conta.

A língua também só permite usar pronomes de posse para coisas que podem ser possuídas, na visão do seu povo.

"Eu posso dizer 'minha mão', em yaathê, mas não 'meu rio'. O rio é de todos, nunca de um indivíduo. Assim como a natureza em geral e os animais que, mesmo caçados, são compartilhados", diz Januacele Francisca da Costa.

Há apenas uma exceção para essa regra: os cachorros. Estes, sim, podem ser de uma só pessoa.

Língua de sinais ka'apor

a primeira sinalização reconhecida do Brasil

Língua de sinais

Ainda menos conhecidas do que as línguas indígenas faladas no Brasil são as línguas de sinais usadas pelos povos nativos. Mas uma delas chegou a ser a primeira sinalização reconhecida como língua no país, décadas antes da Libras (Língua brasileira de sinais) – a língua dos ka'apor.

"Hoje há um reconhecimento oficial, por lei, da Libras, mas a língua não tem um alcance pleno. Já os ka'apor nunca duvidaram que a língua de sinais é uma língua. Eles se referem a ela dessa forma e todo mundo sabe que você pode falar por sinais", explica o antropólogo Gustavo Godoy, pesquisador da língua de sinais ka'apor, da Universidade do Texas em Austin.

"Todos os ka'apor sinalizam e eles prestam atenção nos surdos, se esforçam para entender o que eles estão dizendo."

A língua de sinais é mais integrada na sociedade deles do que na nossa.

Gustavo Godoy Linguista da Universidade do Texas em Austin

Godoy mapeou quase 20 povos com línguas de sinais próprias no Brasil, mas acredita que podem existir muitos mais. "As pesquisas sobre isso mal começaram", diz.

Segundo relatos históricos, os ka'apor teriam surgido há 300 anos entre os rios Tocantins e Xingu. Ao longo dos séculos, por causa de conflitos com colonizadores e com outros povos indígenas, migraram até o Pará e o norte do Maranhão, onde vivem até hoje.

Eles chegaram a ser descritos como um dos povos nativos mais combativos e hostis do Brasil, por sua resistência às tentativas de contato, chamadas de "pacificação". No fim dos anos 1920, os ka'apor aceitaram o contato. E, na década de 1970, tiveram seu território demarcado pela Funai, a Terra Indígena Alto Turiaçu.

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No final dos anos 1960, o linguista James Kakumasu visitou o povo e observou que um em cada 75 ka'apor eram surdos. Era um período em que a população estava em queda, mas o pesquisador notou que esse poderia ser um dos motivos para que toda a tribo fosse fluente na língua de sinais.

Atualmente, a incidência de surdez entre os ka'apor é cerca de 0,6%, segundo Gustavo Godoy. Na população brasileira em geral, essa incidência era de 1% em 2021, de acordo com o IBGE.

Acredita-se que sinalização ka'apor surgiu no mínimo no século 19, pois é quando nasceu a surda mais antiga conhecida entre eles. Ela foi reconhecida como língua em 1966 e nomeada Língua de Sinais Ka'apor Brasileira em 1984. A Libras, também criada no século 19, só obteve o mesmo reconhecimento em 1994.

Só agora, no entanto, os sinais ka'apor começam a ser melhor descritos e compreendidos. Os ka'apor falam uma língua tupi-guarani, mas sua língua de sinais não representa exatamente as palavras da língua falada.

Os ka'apor são conhecidos pela sofisticação da sua arte plumária | Foto: Cortesia André Sanches de Abreu / Endangered Languages Archive

"Uma diferença básica entre as línguas faladas e as de sinais é que as de sinais são visuais. E a gente conceitualiza quase todas as coisas com a visão. Se eu digo 'casa' você imagina uma casa. Mas o som da palavra casa nós inventamos. As línguas de sinais não precisam desse elemento, então todas elas representam imagens do que querem falar", explica Gustavo Godoy.

"O verbo 'comer' em Libras é um gesto de colocar o alimento na boca. No caso dos ka'apor, é um gesto que imita o alimento descendo pela goela. Então a diferença entre as línguas de sinais decorre, em parte, de que cada língua presta atenção em coisas diferentes para criar seus sinais."

Com os animais é possível ver claramente a diferença. Se em Libras o gato é representado pelo bigode, na língua Ka'apor, é pelos olhos redondos. O cachorro, sinalizado em Libras com a imitação do focinho, é representado pelos dentes entre os indígenas.

Créditos:

Texto e reportagem: Camilla Costa
Design: Caroline Souza
Edição e design de vídeo: Daniel Arce
Desenvolvimento: Marta Martí Marques, Alex Nicholas, Matthew Taylor
Edição e coordenação: Carol Olona
Agradecimentos: Felipe Corazza, Marcos Gurgel, Holly Frampton, Denny Moore, Gustavo Godoy, Bruna Franchetto, Hein van der Voort, Kristina Balykova, Januacele Francisca da Costa, Elissandra Barros, Gasodá Suruí, Julien Meyer, Joana Autuori, Andrés Pablo Salanova, Fernando Orphão de Carvalho, Edison Melgueiro Baniwa, Francy Fontes Baniwa, Janina dos Santos, Maria do Carmo Martins, Esmeralda Maria Piloto, Keila Felicio Iaparrá, Kilia Sanumá, Kalepi Amarildo Sanumá, Cacique Djik Fulni-ô, Fábia Fulni-ô, Éxetina Aristides Terena, Aronaldo Júlio, todas as mulheres e homens indígenas que cederam seus vídeos.
Vídeos:
Ikolen - Falantes: Sena Kéré’áàp Gavião e Vása Séèp Gavião Participantes: Oliveira Gavião e Tarami Gavião Imagens e edição: Julien Meyer e Laure Dentel | Cortesia do Museu Emilio Goeldi Tradução: Denny Moore, João Cipiábíìt Gavião e Julien Meyer
Nheengatu - Falantes: Maria do Carmo Martins e Esmeralda Maria Piloto Imagens e tradução: Edilson Melgueiro Baniwa
Parikwaki - Falante, imagens e tradução: Keila Felicio Iaparrá
Terena - Falante: Éxetina Aristides Imagens e tradução: Aronaldo Júlio
Guató - Falante: Eufrásia Ferreira (Djariguka) Imagens: Kristina Balykova e Gustavo Godoy Edição e tradução: Kristina Balykova
Yaathê - Falante: Cacique Djik Fulni-ô (Cícero de Brito) Imagens: Fábia Fulni-ô Tradução: Januacele Francisca da Costa
Ka’apor - Falantes e sinalizantes: Jarara Pirã Ka'apor e Sypo Ruwy mãi (Joana Ka'apor) Imagens, edição e tradução: Gustavo Godoy
Kayapó - Falante: Nhàkture (Maria Eugênia) Imagens, edição e tradução: Andrés Pablo Salanova
Kheuól - Falante, imagens e tradução: Janina dos Santos
Sanöma - Falante: Kilia Sanumá Imagens: Kalepi Amarildo Isaac Sanumá Tradução: Joana Autuori

Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/resources/idt-3a23b0c2-e594-4145-ad26-32fbee5e9203

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF