Por Dom Orani João
Tempesta - publicado em 20/08/23
Cardeal Arcebispo da Arquidiocese do Rio de Janeiro (RJ)
Os mosteiros cistercienses produziram grandes místicos. O
mais importante deles foi São Bernardo de Claraval
São Bernardo de Claraval, celebrado no dia 20 de agosto, é
monge cisterciense e doutor da Igreja. Ele, a justo título, pode ser
considerado cofundador da Ordem Cisterciense – depois de São Roberto, Santo
Alberico e Santo Estêvão Harding, dado o seu empenho por revitalizá-la num
tempo de grande crise de vocações – e também o pai do movimento místico que,
com segurança, podemos chamar de Escola Cisterciense de Espiritualidade. Estes
pontos, fundamentado em grandes autoridades sobre o nosso santo, dão o escopo
deste artigo.
O Papa Bento XVI é quem nos apresenta uma síntese simples,
mas também abarcante sobre a vida de São Bernardo nos albores de sua busca
religiosa: “Não conhecemos os pormenores dos anos da sua infância; sabemos,
contudo, que ele nasceu, em 1090, em Fontaines na França, numa
família numerosa e discretamente abastada. Ainda jovem, prodigalizou-se no
estudo das chamadas artes liberais – especialmente da gramática, da
retórica e da dialética – na escola dos Cônegos da igreja de Saint-Vorles,
em Châtillon-sur-Seine e amadureceu lentamente a decisão de
entrar na vida religiosa. Por volta dos vinte anos, entrou em Cîteaux,
uma fundação monástica nova, mais ativa em relação aos antigos e veneráveis
mosteiros de então e, ao mesmo tempo, mais rigorosa na prática dos conselhos
evangélicos. Alguns anos mais tarde, em 1115, Bernardo foi enviado por Santo
Estêvão Harding, terceiro Abade de Cîteaux, para fundar o mosteiro
de Claraval (Clairvaux). Aqui o jovem Abade, que tinha apenas vinte e
cinco anos, pôde apurar a própria concepção da vida monástica, e empenhar-se em
pô-la em prática. Olhando para a disciplina de outros mosteiros, Bernardo
recordou, com decisão, a necessidade de uma vida sóbria e comedida, tanto à
mesa como no vestuário e nos edifícios monásticos, recomendando o sustento e a
atenção aos pobres. No entanto, a comunidade de Claraval tornava-se cada vez
mais numerosa, e multiplicava as suas fundações” (Audiência geral,
21/10/2009, on-line). Para uma leitura rápida, porém escrita com maestria, além
das obras citadas neste artigo, o leitor interessado em melhor conhecer nosso
santo pode recorrer a Daniel Rops. “Bernardo de Claraval: testemunha do seu
tempo perante Deus”, da conceituada Editora Quadrante, de São Paulo.
Gostaríamos também de enfatizar a ideia de que o santo de
Claraval pode ser considerado o cofundador da Ordem Cisterciense. Por quê? –
Porque certo tempo após o glorioso 1098, quando São Roberto, Santo Alberico,
Santo Estêvão Harding e mais 21 companheiros, fundam Cister com a intenção de
voltar ao primitivo rigor da Regra de São Bento, o mosteiro começa a sentir a
falta de vocações. Por um lado, devido à peste que ceifara a vida de não poucos
monges e por outro pela própria falta de candidatos. Deus, no entanto, no
abaciado de Santo Estêvão Harding, chamou, em 1113, para a Ordem, o jovem
Bernardo, depois mundialmente conhecido como “de Claraval”, com mais 30 amigos.
Ocorre, então, um crescimento estupendo da Ordem Cisterciense.
Eis o que sobre isso pôde escrever Dom Luís Alberto Ruas
Santos, O. Cist.: “Houve um momento em que a Europa foi cisterciense: uma rede
de mosteiros desta ordem monástica estendia-se por todo o continente, de
Portugal à Estônia, da Noruega à Sicília. O século XII marcou o apogeu dos
cistercienses, um ramo do grande tronco beneditino, que procurou dar novo vigor
aos valores tradicionais do monaquismo, busca de Deus na solidão e no silêncio,
no quadro de uma comunidade fraterna, ascetismo liberador das melhores energias
espirituais do ser humano, despojamento e simplicidade em todas as coisas, da
liturgia e arquitetura ao vestuário e alimentação. Essa era a época da Reforma
Gregoriana, em que se buscava uma maior autenticidade evangélica e cristã em
todos os aspectos da vida da Igreja, seja nas estruturas hierárquicas,
livrando-a de ingerências seculares, seja na própria vida religiosa que era
então predominantemente monástica” (Os cistercienses. Documentos primitivos.
São Paulo: Musa/Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1997, p. 7). Ainda que,
infelizmente, esse avanço muito tenha se retraído na Europa, foi possível aos
cistercienses chegarem e se estabelecerem no Brasil, no século XX, com a graça
de Deus, e aqui levarem avante o carisma da Ordem a serviço da Igreja.
Passamos, agora, a outro ponto. Durante longo tempo, alguns
grandes mestres da Espiritualidade e Mística, como Pe. Adolphe Tanquerey e Frei
Antonio Royo Marín, por exemplo, inseriram, sem mais, os cistercienses na mesma
escola de Espiritualidade dos nossos irmãos beneditinos. Tal inserção é, de si,
legítima, uma vez que a Regra de São Bento e a tradição beneditina são suportes
de base ou alicerces da vida cisterciense. Somos gratos devedores dos
beneditinos em tudo o que nos legaram de suas raízes profundas. No entanto,
mais recentemente, começou, sem romper com a base, a se perceber um fato
notório, conforme anota Dom Luís Alberto Ruas Santos, O. Cist: “Os mosteiros
cistercienses produziram grandes místicos. O mais importante deles foi São
Bernardo de Claraval. Há muitos outros nomes, sobretudo no século XII, como
Guilherme de Saint-Thierry, Elredo de Rievaulx ou Isaac de Estrela, para citar
apenas os mais conhecidos. Todos eles escreveram sobre sua experiência mística
pessoal. O florescimento da escola cisterciense é o grande atestado de sucesso
da aventura espiritual vivida nos mosteiros da Ordem. Esses autores oferecem em
suas obras riquezas espirituais que guardam, ainda hoje, todo o seu valor, não
só para os monges, mas para todos os cristãos. Talvez não tenha havido na
Igreja uma escola de espiritualidade tão uniforme na temática e com tantos
autores como a cisterciense” (Bernardo de Claraval. Vida e obra do último
dos padres. Campinas: Ecclesiae, p. 47).
Essa espiritualidade comporta “uma síntese feliz e atraente
dos três elementos que predominavam nos movimentos de reforma monástica. Os
mosteiros da Ordem ofereciam um alto grau de solidão, seja pelo
afastamento da sociedade e da trama de seus relacionamentos, seja pela estrita
disciplina de silêncio que neles vigorava, com longas horas dedicadas
à lectio – leitura orante e meditada da Palavra de Deus – e à oração
privada, e ao mesmo tempo o consolo de uma comunidade fraterna. Por outras
palavras, havia na vida cisterciense uma boa dose de eremitismo dentro de um
quadro de comunhão fraterna própria ao cenobitismo e ao ideal de vida
apostólica. Enfim, os cistercienses quiseram ser pauperes Christi,
pobres de Cristo, ou seja, pobres com o Cristo pobre e, com isso,
encontraram a terceira tendência do monaquismo reformado do século XI” (idem,
p. 44).
Outro monge, desta vez um trapista, arremata este tópico da
exposição com estas palavras: “Existe uma ‘espiritualidade cisterciense’ (fé
levada à vida com uma forma determinada), distinguível das outras
espiritualidades, inclusive monástica. Alguns dos elementos dessa
espiritualidade seriam: a importância da experiência pessoal e comunitária, a
afetividade, a Regra de São Bento sem acréscimos, a caridade cenobita e
contemplativa, a unanimidade, a amizade, a santa Humanidade de Jesus Cristo, a
devoção mariana… Não faltam os que opinam que não se pode falar de uma
espiritualidade propriamente cisterciense (J. Lecrercq). Mas, existe sim,
graças aos cistercienses, e sobretudo a São Bernardo de Claraval, uma ‘teologia
da espiritualidade ou da mística’” (Dom Bernardo Olivera, OCSO. Introducción
a los Padres e Madres cistercienses de los siglos XII e XIII. Burgos: Fonte
& Monte Carmelo, 2020, p. 45). Louvemos, pois, nosso santo por inaugurar,
com seu pensamento, suas pregações e escritas e suas ações concretas (que foram
muitas!) em favor da Igreja, essa Escola de Espiritualidade tão profícua que
tanto bem fez e faz ao Povo de Deus.
Com grande honra, celebramos também São Bernardo como Doutor
da Igreja, ou seja, o (a) santo(a) que preenche as três notas necessárias para
tal: a) ortodoxia ou retidão da doutrina; b) santidade
de vida que tanto os contemporâneos quanto os posteriores reconheçam;
c) aprovação da Igreja – não necessariamente de modo explícito
– a partir do que ensinou pela palavra oral ou escrita (cf. Pergunte e
Responderemos n. 429, p. 87-91). Mais ainda: nosso santo mereceu entre
os santos doutores o destacável apelativo de Doutor Melífluo, isto é, aquele
que tem palavras doces como mel (cf. Pr 16,24).
Com efeito, declarado Doutor da Igreja, em 23 de julho de
1830, pelo Papa Pio VIII, no Breve Quod unum, São Bernardo de
Claraval mereceu, em 24 de maio de 1953, por ocasião do oitavo centenário de
sua morte, estas palavras do Santo Padre Pio XII: “O doutor melífluo, ‘último
dos padres, mas certamente não inferior aos primeiros’ (Mabillon, Bernardi
Opera, Praef. generalis, n. 23; PL 182, 26), distinguiu-se
por tais dotes de mente e de espírito, enriquecidos por Deus com dons celestes,
que pareceu dominar totalmente nas múltiplas e turbulentas vicissitudes da sua
era, por santidade, sabedoria, suma prudência e conselho na ação. Por isso, não
só os romanos pontífices e escritores da Igreja católica, mas também não
raramente os próprios hereges lhe tributam grandes louvores. E nosso
predecessor de feliz memória Alexandre III, quando o inseriu, com universal
júbilo, no catálogo dos santos, assim escreveu com veneração: ‘...Evocamos a
santa e venerável vida do mesmo bem-aventurado: pois que ele, amparado por
singular prerrogativa da graça, não só resplandeceu em santidade e religião,
mas também irradiou, em toda a Igreja de Deus, a luz da sua fé e doutrina. Na
verdade, não há ninguém, por assim dizer, em toda a cristandade que ignore o
fruto que ele produziu na casa de Deus com sua palavra e exemplo, visto que
difundiu as instituições da nossa santa religião até às terras estrangeiras e bárbaras...
e fez voltar uma infinita multidão de pecadores... à reta prática da vida
espiritual’ (Carta Apost. Contigit olim, 17 de janeiro de 1174).
‘Ele foi com efeito como escreve o Cardeal Barônio – homem verdadeiramente
apostólico, autêntico apóstolo enviado por Deus, poderoso em obras e palavras,
tornando célebre em toda a parte e em todas as coisas o seu apostolado com os
prodígios que o acompanhavam, de maneira que se deve dizer que em nada foi
inferior aos grandes apóstolos... ornamento e ao mesmo tempo amparo de toda a
Igreja católica’ (Annal. t. XII, An. 1153, p. 385)” (Encíclica Doctor
Mellifluus, 1953, n. 1).
Pio XII usa, logo de início, como se vê, uma citação que é
bela, porém emblemática. Sim, diz o seguinte: “O doutor melífluo, ‘último dos
padres, mas certamente não inferior aos primeiros’”. Como entender isto? –
Comecemos por esclarecer que “Padres da Igreja são escritores (não
necessariamente presbíteros ou bispos) que, nos primeiros séculos, contribuíram
para a exata elaboração e a precisa formulação das verdades da fé em tempos de
debates teológicos com escolas heréticas” (Dom Estêvão Bettencourt, OSB. História
da Igreja. Rio de Janeiro: Mater Ecclesiae, 2012, p. 16). Pois bem, mas se
esses Padres estão nos primeiros séculos da Igreja, como São Bernardo, vivendo
no século XII, pode ser considerado um deles? – É o Papa Bento XVI quem nos
esclarece desta vez: “Hoje gostaria de falar de São Bernardo de Claraval,
chamado ‘o último dos Padres’ da Igreja, porque no século XII, mais uma vez,
renovou e tornou presente a grande teologia dos Padres” (Audiência geral,
21/10/2009, on-line).
Peçamos, pois, que o nosso grande São Bernardo de Claraval,
monge dedicado a Deus e, por conseguinte, à Igreja e a cada homens e mulher com
quem tomava contato, interceda junto à Trindade Santíssima por todos nós a fim
de que saibamos, em pleno século XXI, ouvir, discernir e corresponder ao
chamado do Senhor em nossas vidas.
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