"Chamar-me-ão bem-aventurada": Santa Maria, no
ano litúrgico
Santa Maria, Mãe de Deus: o ano começa com a festa que
indica o lugar especial de Nossa Senhora no mistério cristão. Ao longo do ano,
a Igreja recorda aos seus filhos a presença maternal e discreta de Maria. Junto
a São José, Ela peregrina conosco através da história.
06/02/2017
Na celebração anual dos mistérios de Cristo, «a Santa Igreja
venera com especial amor a Santíssima Mãe de Deus, a Virgem Maria, unida por
laço indissolúvel à obra salvífica de seu Filho; nEla, a Igreja admira e exalta
o fruto mais excelente da Redenção e contempla-a gozosamente, como uma imagem
puríssima do que ela mesma, totalmente, anseia e espera ser»[1].
Em breves traços, mas incisivos, o Concílio Vaticano II
apresenta o significado do culto litúrgico a Santa Maria. Pode ajudar-nos a
compreendê-lo uma via simples e profunda: a melhor arte cristã que surge da
oração da Igreja. Se olharmos, por exemplo, um templo de tradição bizantina,
reparamos, logo que entramos na nave, para os olhos de Cristo Pantocrator que
normalmente domina a abóbada da abside. O seu rosto amável lembra-nos como o
Deus infinito assumiu os traços finitos dos filhos dos homens. Debaixo d´Ele,
adornada com as cores imperiais, encontra-se Maria, a Toda Santa, ladeada por
arcanjos com ricas vestes litúrgicas. Num terceiro nível, por fim, estão os
apóstolos e os santos que conosco – comunicantes –, oferecem
o sacrificium laudis, o sacrifício de louvor agradável a Deus Pai[2].
A primeira devoção mariana
«Para mim, a primeira devoção mariana – agrada-me ver
assim – é a Santa Missa (...) Nesse mistério insondável, adverte-se, como que
entre véus, o rosto puríssimo de Maria» (São Josemaria)
Esta imagem ajuda a compreender a posição singular de Maria
na vida e na liturgia da Igreja. Como São Josemaria gostava de considerar, Ela
é, acima de tudo, a Mãe de Deus, a Theotokos: aqui se encontra «a
raiz de todas as perfeições e privilégios que a adornam»[3].
Por isso, uma das orações marianas mais antigas a chama audazmente Dei
Genetrix, aquela que gerou Deus[4];
e também por isso o culto litúrgico a Maria se desenvolverá sobretudo a partir
do Concílio de Éfeso (século V), quando a Igreja define o dogma da Maternidade
divina.
Em outras representações, Santa Maria aparece segurando o
véu do cálice eucarístico, ou em uma posição corporal de “Virgem orante e
oferente”. Assim se expressa que a participação no mistério Pascal do Senhor é
o centro e a raiz de sua vida. Esse modo único, em que Maria se une como Mãe à
ação redentora de Jesus, é o fundamento do culto mariano: a Igreja venera a
Virgem Maria reconhecendo o lugar que só a Ela corresponde. Por isso, já nas
mais antigas profissões de fé batismais e nas primeiras orações eucarísticas se
encontram alusões à Mãe de Deus. Esta presença especial de Maria explica,
também, que o modo mais natural de honrá-la seja celebrar o mistério do seu
Filho, especialmente na Eucaristia.
«Para mim, a primeira devoção mariana – agrada-me ver assim
– é a Santa Missa (...). No Sacrifício do Altar, a participação de Nossa
Senhora evoca o silencioso recato com que acompanhou a vida de seu Filho,
quando andava pelas terras da Palestina. A Santa Missa é uma ação da Trindade:
por vontade do Pai, cooperando o Espírito Santo, o Filho oferece-Se em oblação
redentora. Nesse mistério insondável, adverte-se, como que entre véus, o rosto
puríssimo de Maria»[5].
Celebrando o mistério de Cristo, a Igreja encontra Maria e, contemplando-a,
descobre o modo de viver os divinos mistérios. Com Ela escutamos e meditamos a
Palavra de Deus, e nos associamos à sua voz que abençoa, dá graças e louva o
Senhor; com Ela nos sentimos associados à Paixão do seu Filho, e à alegria da
sua Ressurreição; com Ela imploramos incessantemente o dom do Espírito Santo[6].
As origens do culto a Santa Maria
A última reforma da liturgia romana quis ressaltar a
centralidade do mistério de Cristo, e por isso integrou a memória da Mãe de
Deus no ciclo anual dos mistérios do seu Filho. Além de duas celebrações em que
Maria está inseparavelmente unida a Cristo – a Anunciação (25 de Março) e a
Apresentação do Senhor (2 de fevereiro) – as festas marianas do atual Calendário
romano geral incluem três solenidades[7],
duas festas[8],
cinco memórias obrigatórias[9] e
seis memórias facultativas[10].
Por outro lado, alguns tempos litúrgicos como o Advento e o Natal incorporaram
mais referências marianas. Por último, a possibilidade de celebrar a memória
facultativa de Santa Maria aos sábados, juntamente com alguns elementos da
Liturgia das Horas, constituem a base semanal e diária do culto litúrgico
mariano. Conhecer alguns pormenores sobre a origem e o desenvolvimento deste
culto pode ajudar-nos a ser melhores filhos da nossa Mãe do Céu.
A Igreja, como Maria, não tem um coração desenraizado,
mas faz memória da sua própria origem, recordando paisagens e rostos concretos
O rito romano celebra na oitava de Natal, no primeiro dia do
ano, a solenidade da Maternidade divina de Maria. Essa foi a grande comemoração
Mariana antes da chegada, nos finais do século VII, de quatro festas de origem
oriental: a Apresentação do Senhor, a Anunciação, a Dormição (que agora se
celebra como a Assunção) e a Natividade de Nossa Senhora.
O acolhimento dos cristãos provenientes da Palestina, Síria
e Ásia Menor, em consequência das invasões árabes do século VII, enriqueceu a
liturgia romana com a assimilação de várias tradições litúrgicas. Entre elas,
estão quatro festas ligadas à memória de alguns eventos da vida de Nossa
Senhora, nos lugares onde, segundo a tradição, ocorreram. A construção de
templos naqueles lugares levou, ao longo dos séculos IV-VI, a um primeiro
desenvolvimento do culto litúrgico mariano. Alguns exemplos são a basílica no
Vale do Cédron, ligada ao dies natalis de Maria, que no século
VI passará a chamar-se Festa da Dormição; a basílica de Nazaré, mandada
construir pela imperatriz Helena em memória da Anunciação; a basílica
construída sobre a piscina Bezatha, que ficará ligada à memória da concepção e
do nascimento de Nossa Senhora; ou a basílica de Santa Maria a Nova, construída
no início do século VI, perto do antigo Templo de Jerusalém, para recordar a
apresentação de Maria.
Todas estas festas nos introduzem na memória histórica da
grande família do Povo de Deus, que sabe que «a história não está sujeita a
forças cegas nem é o resultado do acaso, mas é a manifestação da misericórdia
de Deus Pai»[11].
A Igreja, como Maria, não tem um coração desenraizado, mas faz memória da sua
própria origem, recordando paisagens e rostos concretos. A progressiva recepção
destas comemorações da Virgem em outras regiões do mundo, é um reconhecimento
desta lógica de Deus.
Da periferia para Roma e de Roma para a periferia
Simultaneamente, uma vez que a Igreja é uma Mãe que acolhe
no seu seio todas as culturas, a veneração de Maria será desenvolvida de acordo
com a particular sensibilidade teológica e espiritual de cada povo. Assim, por
exemplo, a tradição bizantino-constantinopolitana conheceu uma primeira fase
bastante sóbria do culto mariano, mas com o tempo produziu ricas composições
poéticas em honra da Theotokos. O hino Akathistos é
uma das mais amadas e difundidas: «Ave, por ti / resplandece a alegria! / Ave,
por ti a maldição toda cessa! / Ave, reergues o Adão decaído! / Ave, tu
estancas as lágrimas de Eva!». A tradição etíope também manifestará a sua
profunda piedade mariana nas orações eucarísticas e na instituição do maior
número de festas marianas incluídas numa tradição litúrgica, mais de trinta ao
longo do ano.
«Ave, por ti resplandece a alegria! Ave, por ti a
maldição toda cessa! Ave, reergues o Adão decaído! Ave, tu estancas as lágrimas
de Eva!» (hino akathistos)
O rito romano tem também a sua própria história. No final do
século VII, o Papa Sérgio I enriquece aquelas quatro festas recém-chegadas do
Oriente com um elemento que distinguirá a devoção popular romana: as procissões
das ladainhas pela cidade. Mais tarde, serão compostos os textos da Missa e do
Ofício de Sancta Maria in Sabbato; pela Europa, vai se espalhar o
costume de dedicar o sábado a Nossa Senhora, e vão ser criadas novas antífonas
para a Liturgia das Horas. Algumas delas são hoje a última oração que, antes de
dormir, sai confiante dos lábios da igreja: Alma Redemptoris Mater, Salve
Regina, Ave Regina Coelorum, Regina Coeli Laetare,
compostas nos séculos XI-XIII. Mais tarde, também vão ser instituídas festas
marianas como a Visitação, promovidas inicialmente pelos franciscanos e
estendida depois a toda a igreja latina no século XIV.
Depois do Concílio de Trento estendem-se a todo o rito
romano outras festas celebradas até então somente em algumas regiões. Por
exemplo, São Pio V estendeu a toda a igreja latina a festa romana da Dedicação
de Nossa Senhora das Neves (5 de agosto). Nos séculos XVII e XVIII, várias
comemorações ligadas à piedade mariana de algumas ordens religiosas passarão,
de várias maneiras, ao calendário geral: Nossa Senhora do Carmo (carmelitas),
Nossa Senhora do Rosário (dominicanos), Nossa Senhora das Dores (servos de
Maria), Nossa Senhora das Mercês (mercedários), etc.
Estes movimentos que vão da periferia a Roma, e de Roma à
periferia[12] refletem
a sabedoria maternal da Igreja, que promove tudo o que gera unidade, e ao mesmo
tempo se adapta para tratar os seus filhos de «modo diferente - com uma
justiça desigual -, já que cada um é diferente dos outros»[13].
Este respeito pelas tradições locais permanece no calendário atual, que
reconhece a existência de festas marianas particulares, ligadas à história e
devoção dos diversos membros do Povo de Deus. Isso explica a presença, no
calendário da Prelazia do Opus Dei, da festa de Nossa Senhora do Amor
Formoso, que se celebra a 14 de fevereiro.
Um momento particularmente grandioso do culto litúrgico
mariano foi o passado século XX, que conheceu quatro novas festas marianas:
Nossa Senhora de Lourdes (Pio X, em 1907), a Maternidade de Nossa Senhora (Pio
XI, em 1931), o Imaculado Coração de Maria (Pio XII, em 1944), e Santa Maria
Rainha (Pio XII, em 1954). Além da memória do Santíssimo Nome de Maria (12 de
setembro), a última edição do Missal Romano incorporou as memórias facultativas
de Nossa Senhora de Fátima (13 de maio) e Nossa Senhora de Guadalupe[14] (12
de dezembro). A extensão a todo o rito latino das celebrações ligadas a
intervenções particulares da Virgem expressa a vigilância amorosa da Igreja,
que recorda aos seus filhos a presença discreta mas firme de Maria. Junto com
São José, Ela peregrina conosco através da História.
Com a bênção da Mãe
Muitos pórticos de igrejas mostram a Mãe de Deus que
acolhe e despede os peregrinos com o seu olhar e o seu sorriso
Muitos pórticos de igrejas medievais têm uma imagem
característica do Ocidente: a Mãe de Deus tem nos seus braços o Menino, e com o
seu olhar e o seu sorriso acolhe e despede os peregrinos. Esta imagem, situada
no espaço público que se abre para a cidade, fala-nos do estilo acolhedor e
missionário de Maria que dá forma à vida da Igreja através da liturgia.
A sua presença recorda-nos que Ela nos espera quando vamos a
uma igreja ou oratório, para nos ajudar a falar com o seu Filho. Saber dessa
espera de Maria leva-nos a recolher-nos, a preparar-nos bem para as diferentes
ações litúrgicas: uma delicadeza de filhos que se concretiza em pormenores,
como chegar com antecedência, sem pressa, e dispor o que for necessário (adorno
do altar, velas, livros) com a atenção e carinho da nossa Mãe, «Mulher
Eucarística»[15],
ao preparar-se para a «fração do pão» da primitiva Igreja[16].
A alegria da Toda Formosa está em «reproduzir nos filhos as
características espirituais do Filho Primogênito»[17].
Na escola de Santa Maria, «a Igreja aprende a tornar-se cada dia “serva do
Senhor”, a estar pronta para partir ao encontro das situações de maior
necessidade, a prestar atenção aos mais pequeninos, aos excluídos»[18].
Por isso, depois de nos convidar a entrar para sermos transformados por Ele,
nossa Mãe volta a saudar-nos e, desde o pórtico, envia-nos para a «formosíssima
guerra de paz»[19],
lado a lado com os nossos irmãos, os homens.
Juan Rego
[1] Concílio
Vaticano II, Const. Sacrosanctum Concilium (4-XII-1963), 103.
[2] Cfr.
Missal Romano, Cânone Romano.
[3] São
Josemaria, Amigos de Deus, 276.
[4] Cfr. Liturgia
das horas, Ad completorium, Antífona Sub tuum
praesidium.
[5] São
Josemaria, “La Virgen María”, em Por las sendas de la fe, Madrid,
Cristiandad 2013, 170-171.
[6] Cfr. Collectio
Missarum de Beata Vergine Maria, nn. 13.17.
[7] São
as seguintes: 1 de janeiro: Mãe de Deus; 15 de agosto: Assunção [no
Brasil celebra-se no Domingo seguinte]; 8 de dezembro: Imaculada
Conceição.
[8] 31
de maio: Visitação; 8 de setembro: Natividade.
[9] Sábado,
após a solenidade do Sagrado Coração de Jesus, Imaculado Coração de
Maria; 22 de agosto: Santa Maria Rainha; 15 de setembro: Nossa
Senhora das Dores; 7 de outubro: Nossa Senhora do Rosário; 21
de Novembro: Apresentação de Maria no Templo.
[10] 11
de fevereiro: Nossa Senhora de Lourdes; 13 de maio: Nossa
Senhora de Fátima; 16 de julho: Nossa Senhora do Carmo; 5 de
agosto: Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior; 12 de
setembro: Santo Nome de Maria; 12 de dezembro: Nossa
Senhora de Guadalupe.
[11] São
Josemaria, “As riquezas da fé”.
[12] Cfr.
São Josemaria, Forja, 638.
[13] Amigos
de Deus, 173.
[14] NT:
o Brasil é celebrada como Festa, pois é a padroeira da América Latina.
[15] São
João Paulo II, Enc. Ecclesia de Eucharistia (17-IV-2013),
53-58.
[16] Cfr. Act 2,
42.
[17] B.
Paulo VI, Ex. ap. Marialis cultus (2-II-1974), 57.
[18] Papa
Francisco, Homilia, 5-VII-2014.
[19] São
Josemaria, É Cristo que passa, 76.
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