'Se seus filhos têm celular, quem manda neles são as redes sociais', diz pediatra Daniel Becker
31 agosto 2024
Ele tem mais de 1 milhão de seguidores no Instagram, rede
social que utiliza para falar, dentre outras coisas, que crianças não deveriam
estar ali.
Pediatra e ativista pela infância, como se autodefine,
Daniel Becker tem se tornado uma das principais vozes quando o assunto é o
bem-estar das crianças.
Ele defende cuidados simples, como a interação com elas,
brincadeiras ao ar livre, acolhimento e criação de intimidade com os filhos.
Parece algo básico, mas a vida agitada e especialmente o uso
excessivo do celular estão distanciando os adultos das crianças,
causando uma série de efeitos, alerta Becker.
Para o pediatra, o celular se interpõe entre o olhar dos
cuidadores e das crianças, tornando-se uma barreira para a criação de vínculo,
afeto e intimidade.
Isso gera o que ele chama de "parentalidade
distraída", o que pode ter até mesmo consequências catastróficas.
Estamos tão apegados a esse aparelho, que, segundo o médico,
que é formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é mestre em
saúde pública, até a televisão é melhor que o celular.
Ao menos você tem maior poder de escolha sobre o que
assistir na TV e não fica submetido aos algoritmos, diz Becker, de seu
consultório no Rio de Janeiro, nesta entrevista realizada por videochamada.
Mas, embora o celular seja o meio de propagação de conteúdos
"viciantes" e comparáveis ao "lixo" que está nas redes
sociais, o pediatra diz que dá para estabelecer uma relação minimamente
saudável para crianças e adolescentes com ele.
BBC News Brasil - Este é um ano de eleições municipais,
mas o debate entre os candidatos passa longe de temas voltados para a infância.
O que um bom plano de governo voltado à infância deveria ter, na sua opinião?
Daniel Becker - Proteger a criança e promover a
saúde e a qualidade de vida dela significa cuidar das famílias também,
especialmente das mães. Existem muitas políticas que são municipais e que estão
fora do radar, como a cobertura de creches.
O Brasil tem a meta de ter 50% de cobertura de creche [ou
seja, ter creche para ao menos metade das crianças de 0 a 3 anos], mas existem
municípios onde não há praticamente nenhuma creche. E, sem creche, você tem uma
mãe completamente assoberbada que não tem onde deixar a criança, ou vai deixar
sob cuidados precários.
No plano da saúde, é importante o investimento na saúde da
família, que envolve, dentre outras coisas, a vacinação, algo que depende muito
do município. O apoio à amamentação, crucial para o bebê e para a mãe, também
precisa ser bem desenvolvido.
Todo médico de atenção básica e todo médico de família
deveria ser treinado para dar apoio à amamentação. Temos uma política aqui no
Brasil maravilhosa que são os bancos de leite, mas o município sequer divulga
isso, muitas vezes.
Outra atividade muito bacana são os grupos de gestantes e os
grupos de puérperas, que podem ser formados por meio da atenção básica da
saúde. Os programas municipais de infância estão trabalhando algo também
importantíssimo, que são os programas de educação parental.
Na maioria das vezes, as famílias, especialmente as mais
pobres, não têm noção da importância, por exemplo, do estímulo ao
desenvolvimento, do carinho e do afeto na criação dos filhos.
Isso inclui orientações sobre uma boa alimentação também. As
pessoas não sabem que miojo não faz mal, que dar salgadinho e refrigerante para
o bebê faz mal. Hoje, 80% das crianças acima de 8 meses já provaram coisas
açucaradas, inclusive refrigerantes.
Tem outra política que considero especialmente importante e
que é muito benéfica para toda a sociedade: a cidade amiga da criança.
Ou seja, manter as praças bem cuidadas, acessíveis,
iluminadas, seguras, com bons brinquedos, com sombra, arborizar as calçadas. A
brincadeira no espaço público é o melhor benefício possível para uma criança:
vai beneficiar saúde física, mental, espiritual, emocional, melhora a
imunidade, reduz problemas de comportamento, melhora o apetite.
Além disso, ativa o turismo e o comércio, aumenta a
arrecadação da prefeitura.
BBC News Brasil - O senhor fala muito da importância de
brincar em meio à natureza, no parque, na areia. Mas esses espaços, os parques,
geralmente não estão nas periferias. Ou seja, as crianças da periferia, mais
uma vez, são privadas dessa convivência.
Becker - Isso se chama racismo ambiental ou
injustiça ambiental ou injustiça recreativa também.
BBC News Brasil - O uso do celular por crianças e
adolescentes é um tema, mas queria perguntar antes sobre o uso pelos adultos. O
senhor usa um nome para as consequências disso, "parentalidade
distraída". Do que se trata?
Becker - O celular tem um apelo viciante muito
mais profundo do que a televisão, e o adulto se perde nas redes sociais,
deixando de olhar para a criança.
O celular acaba se interpondo entre o olhar do pai e do
filho. O olhar é fundamental para a criança, porque é nesse olhar que ela vai
encontrar o afeto, o carinho e o vínculo.
É na interação com a gente, por exemplo, que a linguagem se desenvolve.
Não existe desenvolvimento da linguagem olhando para tela ou vídeo.
A precarização desse vínculo gera um empobrecimento de
relação, e isso vai afetar a autoestima da criança. Ela vai perceber que aquele
negócio na mão do pai é mais importante do que ela. Não é apenas o
desenvolvimento em geral que está em risco. Acidentes estão acontecendo.
Canso de ouvir que filho não vem com manual. Mas o manual
está ali dentro dos olhos dos seus filhos. Olhe para eles. Ninguém precisa
passar duas horas brincando com a criança no chão para desenvolver intimidade.
São ações simples, é o convívio simples, é acordar a criança, dar o café da
manhã, dar um banho, contar uma história, jantar junto, brincar um pouquinho.
Contar histórias na hora de dormir, que é um gesto simples, mas marca a criança
pelo resto da vida dela de forma positiva.
Esse convívio gera uma coisa chamada intimidade, que é a
chave da educação. Quem consegue intimidade com seus filhos não precisa apelar
nem para a permissividade excessiva, nem para o castigo, para a palmada, para
coisas piores. Castigo e palmada não fazem ninguém aprender nada.
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