“Vivemos com naturalidade”, dizem católicos nascidos e criados no rito romano antigo em Campos.
Por Natalia Zimbrão*
31 de agosto de 2024
O eletricista Rafael Ferreira, 37 anos, e a professora Ana
Cristina de Souza, 43, nasceram e cresceram em Campos dos Goytacazes (RJ).
Foram batizados, fizeram a primeira comunhão, receberam o crisma e se casaram
em latim. Nas missas, sempre viram o padre fazer a consagração voltado para o
altar, olhando na mesma direção que o povo em nome do qual celebra o sacrifício
a Deus. Os paramentos do sacerdote não foram simplificados. Nunca viram missa
concelebrada em sua paróquia. Não se tocam instrumentos de música popular na
igreja, não há oração dos fiéis. Há silêncio e, em vários momentos da
celebração, nem mesmo o que o padre em oração diz deve ser ouvido. Rafael e Ana
Cristina pertencem à Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney,
um caso único no mundo de uma prelazia que tem o direito de manter o rito
romano antigo, ou missa tradicional.
Até o Concílio Vaticano (1962-1965), que começou a
experimentar mudanças como concelebração e uso das línguas vernáculas, esse era
o rito latino da Igreja no mundo inteiro. Em 1970, seguindo decisões do
concílio, o papa são Paulo VI promulgou o Novus Ordo, a nova forma
de celebrar a missa e os sacramentos da Igreja que se tornou a norma para toda
a Igreja.
O novo modo de celebrar se tornou a face mais evidente do
Concílio Vaticano II. Em torno da missa tradicional em latim, ou missa
tridentina, por ter sido fixada pelo concílio de Trento (1545-1563), grupos
conservadores militantes se formaram e existem no mundo inteiro.
Mas não é um ambiente de militantes o que existe em Campos.
Para Rafael e Ana, é algo que faz parte de suas vidas “com naturalidade”. “A
gente vai passando de geração para geração”, disseram à ACI Digital. Hoje,
levam junto os filhos, Agnes, 12 anos, e Tadeu, 9, também nascidos e criados
nesse rito da Igreja.
“As crianças crescem dentro da fé, da espiritualidade,
daquilo que a gente já tem e tivemos desde criança. É a fé que vem crescendo e
mantendo toda aquela tradição, os ensinamentos”, disse à ACI Digital Ana
Cristina.
A Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney
foi criada em 2002 pelo papa são João Paulo II como circunscrição eclesiástica
de caráter pessoal no território da diocese de Campos (RJ) para a manutenção da
liturgia anterior à reforma do Concílio Vaticano II, a disciplina e os costumes
tradicionais.
A administração deriva da União Sacerdotal São João Maria
Vianney, um grupo de padres que depois da promulgação do Missal de Paulo VI, em
1969, decidiu sob a liderança do então bispo de Campos, dom Antônio de Castro
Mayer, manter o rito romano antigo, como chamam a liturgia da missa
tradicional.
A união foi fundada depois que dom Antônio foi sucedido por
dom Carlo Alberto Navarro, em 1981. Dom Navarro proibiu os padres de celebrar a
missa no rito antigo. Os sacerdotes se rebelaram e decidiram continuar com as
celebrações no rito antigo, dando origem a uma situação irregular que só se
resolveu mais de vinte anos depois.
A União Sacerdotal tinha proximidade com a Fraternidade
Sacerdotal São Pio X (FSSPX), uma sociedade sacerdotal tradicionalista criada
pelo arcebispo francês Marcel Lefebvre em 1970. Dom Lefebvre e dom Castro Mayer
se aproximaram ainda durante o Concílio Vaticano II em 1962. Um grupo de bispos
se organizou numa tentativa de resistir às reformas, o Coetus
Internationalis Patrum, Lefebvre era um dos líderes e dom Castro Mayer
participava.
Dom Lefebvre, assim como dom Castro Mayer, nunca aceitou as
mudanças na liturgia implementadas depois do Vaticano II. Como ele não era mais
bispo de nenhuma diocese, montou a FSSPX, com sede na Suíça, mas espalhada por
muitos países. Dom Castro Mayer ficou em Campos.
Em 1988, dom Lefebvre participava de negociações com a Santa
Sé para regularizar a situação de sua fraternidade e a sua própria. Com medo de
que a situação não se resolvesse antes de sua morte, ordenou quatro bispos,
contra a proibição expressa da Santa Sé. Dom Antônio de Castro Mayer participou
da cerimônia. Todos os envolvidos teriam sido excomungados latae
sententiae, isto é, pelo próprio fato, sem um julgamento formal, mas a
situação nunca ficou suficientemente clara.
Depois da morte de dom Antônio Mayer, em 1991, um dos bispos
da FSSPX sagrou bispo para a União Sacerdotal São João Maria Vianney dom
Licínio Rangel, sem mandato pontifício.
A situação irregular dos padres da União Sacerdotal se
manteve até que buscaram a regularização com a Santa Sé, o que aconteceu em
2002, com a criação da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney.
A situação de dom Licínio também foi regularizada com a Igreja e ele foi o
primeiro bispo da Administração. Foi sucedido pelo atual bispo, dom Fernando
Arêas Rifan.
Muitas pessoas que atualmente vivem em Campos e outras
cidades do norte e noroeste do Estado do Rio de Janeiro mantiveram-se junto aos
padres da União Sacerdotal São João Maria Vianney e hoje fazem parte da
Administração Apostólica.
“É o que a gente viveu, meus pais, desde quando nasci,
sempre na missa tradicional”, disse à ACI Digital Rita de Cássia Gualandi, 68
anos, que mora na zona rural de Bom Jesus do Itabapoana (RJ). “Quando houve a
mudança, nós preferimos continuar”.
“Meus pais transmitiram para mim e eu para os meus filhos”.
Ela é viúva e mãe de três filhos. Um deles, José Carlos Gualandi, é padre da
Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney. Dos oito irmãos de
Rita de Cássia, três são sacerdotes.
Rita contou que, “quando era mais nova” e os filhos
pequenos, “a gente nem sabia que tinha outra” missa. “Era difícil os padres
virem aqui, porque é de difícil acesso, muito longe. Era só quando eles vinham
e tinha a missa tradicional”, recordou.
Luzia Aparecida Salvatte Zanon, 74 anos, mora em Campos e é
natural de Bom Jesus do Itabapoana. Desde pequena participa da missa no rito
romano antigo, no qual recebeu todos os sacramentos. “A gente sempre achou que
isso era o correto, não desprezando as outras. Sempre achamos que o correto era
seguir onde sempre fomos criados”, disse. Segundo ela, não tinham “essa dúvida”
de que poderiam estar fazendo algo contra a Igreja. “A gente lutava pelo que
acontece hoje”, depois da regularização com a criação da Administração
Apostólica, disse Luzia, que é viúva e mãe de cinco filhos, um deles, Silvano
Salvatte Zanon, padre da Administração.
A regularização “foi um momento ímpar para nós”, diz.
“Porque nós ficamos... não sei nem explicar como foi nossa alegria”.
*Natalia
Zimbrão é formada em Jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
É jornalista da ACI Digital desde 2015. Tem experiência anterior em revista,
rádio e jornalismo on-line.
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