A vocação ao matrimônio
Chegar juntos ao Céu: esse é o desejo que pode impulsionar
cada casamento. Oferecemos um novo editorial sobre o amor humano.
11/11/2015
Umas palavras do Papa Francisco, no encontro com as famílias
em Manila, deram a volta ao mundo: “Não é possível uma família sem o sonho.
Numa família, quando se perde a capacidade de sonhar, os filhos não crescem, o
amor não cresce; a vida debilita-se e apaga-se. Por isso, recomendo-vos que à
noite, ao fazer o exame
de consciência, vos ponhais também esta pergunta: Hoje sonhei com o futuro
dos meus filhos? Hoje sonhei com o amor do meu esposo, da minha esposa? Hoje
sonhei com os meus pais, os meus avós que fizeram a vida avançar até mim?” [1].
Sonhar
Esta capacidade de sonhar está relacionada com o entusiasmo
que colocamos nos nossos horizontes e esperanças, especialmente em relação às
pessoas. Em outras palavras: os bens ou as realizações que desejamos para elas;
as esperanças que cultivamos em relação a elas. A capacidade de sonhar equivale
à capacidade de pôr o sentido de nossa vida naqueles que amamos. Por isso é
algo característico de cada família.
Desde o início, São Josemaria contribuiu para lembrar,
seguindo os ensinamentos da Igreja, que o matrimônio – semente da família – é,
no sentido mais pleno da palavra, uma chamada específica à santidade dentro da
comum vocação cristã: um caminho vocacional, diferente, mas complementar ao do
celibato – seja sacerdotal ou laical – ou à vida religiosa. “O amor que conduz
ao matrimônio e à família pode ser também um caminho divino, vocacional,
maravilhoso, por onde corra, como um rio em seu leito, uma completa dedicação
ao nosso Deus” [2].
Por outro lado, esta chamada de Deus no casamento não
significa diminuir as exigências para seguir a Jesus. Pois, como “todas as
coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus” [3], os esposos cristãos
encontram na vida matrimonial e familiar a matéria da sua santificação pessoal,
ou seja, da sua identificação com Jesus Cristo: sacrifícios e alegrias,
prazeres e renúncias, o trabalho no lar e fora dele, são elementos com os
quais, sob a luz da fé, é construído o edifício da Igreja.
Sonhar, para um cristão, com a esposa ou com o
esposo, é olhar para ele com os olhos de Deus. É contemplar a realização do
projeto que o Senhor pensou e quer para cada um, e para os dois na sua relação
matrimonial. É desejar que esses planos divinos se tornem realidade na família,
nos filhos – se Deus os enviar –, nos avós, e nos amigos que a providência
coloca ao nosso lado para nos acompanhar na viagem da vida. É, em resumo, a
possibilidade de que cada um veja o outro como seu caminho pessoal
para o céu.
O segredo da família
Cristo fez do casamento um caminho divino de santidade, para
encontrar a Deus no meio das ocupações diárias, da família e do trabalho, para
elevar a amizade, as alegrias e as penas – porque não há cristianismo sem dor
–, e as mil pequenas coisas da casa ao nível eterno do amor. Aí está o segredo
do casamento e da família. Assim se antecipa a contemplação e a alegria do céu,
onde encontraremos a felicidade completa e definitiva.
No contexto desse “caminho divino” de amor matrimonial, São
Josemaria falava do significado cristão, profundo e belo, da relação conjugal:
“nos outros sacramentos a matéria é o pão, o vinho, a água... Aqui são os
corpos. (...) Eu vejo o leito conjugal como um altar; ali está a matéria do
sacramento” [4]. A expressão altar é surpreendente, e ao mesmo
tempo é consequência lógica de uma leitura profunda do matrimônio, cujo núcleo
é a una caro[5]: a união completa dos corpos humanos,
criados à imagem e semelhança de Deus.
A partir desta perspectiva entendemos o fato de os esposos
cristãos expressarem a característica do sacramento do matrimônio através da
linguagem da corporeidade: com sua entrega mútua, louvam e glorificam a Deus,
anunciam e realizam o amor entre Cristo e a Igreja, reforçando a obra do
Espírito Santo nos corações. E daí vem, para os esposos, para a sua família e
para o mundo, uma corrente de graça, de força e de vida divina que renova tudo.
Isto requer uma preparação e uma formação contínua, uma luta
positiva e constante. “Os símbolos fortes do corpo – observa o Papa Francisco –
possuem as chaves da alma: não podemos tratar os vínculos da carne com
superficialidade, sem causar ao espírito alguma ferida perene” [6].
O vínculo que surge a partir do consentimento matrimonial
fica impresso e se enriquece pelas relações íntimas entre os esposos. A graça
de Deus que receberam no batismo encontra um novo conduto que não se justapõe
ao amor humano, mas o assume. O sacramento do matrimônio não supõe um acréscimo
externo ao casamento natural; a graça sacramental específica transforma os
cônjuges por dentro, e ajuda-os a viver a sua relação com exclusividade,
fidelidade e fecundidade: “É importante que os esposos adquiram o sentido claro
da dignidade de sua vocação, sabendo que foram chamados por Deus para atingir
também o amor divino através do amor humano: que foram escolhidos, desde a
eternidade, para cooperar com o poder criador de Deus, pela procriação e depois
pela educação dos filhos; que o Senhor lhes pede que façam, do seu lar e da
vida familiar inteira, um testemunho de todas as virtudes cristãs” [7].
Os filhos são sempre o melhor “investimento”, e a família a
“empresa” mais sólida, a maior e a mais fascinante das aventuras. Cada um
desempenha o seu papel, e assim todos contribuem, porém o romance final é muito
mais interessante do que a soma de cada história, porque Deus age e faz
maravilhas.
Daí a importância de saber compreender – os esposos entre si
e aos filhos –, de aprender a pedir desculpas, de amar – como ensinava São
Josemaria – também os defeitos do outro, desde que não ofendam a Deus[8]. “Na
vida dos cônjuges, quantas dificuldades se resolvem, se conservarmos um espaço
para o sonho, se nos detivermos a pensar no cônjuge e sonharmos com a bondade,
com as coisas boas que tem. Por isso, é muito importante recuperar o amor
através do sonho de cada dia. Nunca deixeis de ser namorados!” [9].
Parafraseando o Papa, poderíamos acrescentar: que os esposos
nunca deixem de sentar-se para compartilhar e recordar os momentos bonitos e as
dificuldades que atravessaram juntos, para considerar as circunstâncias que
trouxeram sucessos ou fracassos, para recuperar um pouco de entusiasmo, ou para
pensarem juntos na educação dos filhos.
A base do futuro da humanidade
A vida conjugal e familiar não consiste em instalar-se numa
existência confortável e segura, mas dedicar-se um ao outro e dedicar tempo com
generosidade aos outros membros da família, começando pela educação dos filhos
– que inclui promover o aprendizado das virtudes, e a iniciação na vida cristã
–, para abrir-se continuamente aos amigos, a outras famílias, e especialmente
aos mais necessitados. Deste modo, pela coerência da fé vivida em família,
comunica-se a boa noticia – o Evangelho – de que Cristo continua presente e
convida-nos a segui-lo.
Para os filhos, Jesus se revela através do pai e da mãe;
pois para os dois, cada filho é, em primeiro lugar, um filho de Deus, único e
irrepetível, com quem Deus foi o primeiro a sonhar. Por isso, João Paulo II
podia afirmar que “O futuro da humanidade passa pela família” [10].
As famílias que não puderam ter filhos
E que sentido poderiam dar ao seu casamento os casais
cristãos que não têm filhos? A esta pergunta, São Josemaria respondia que,
antes de tudo deveriam pedir a Deus que os abençoasse com filhos, se essa fosse
a sua Vontade, como abençoou os Patriarcas do Antigo Testamento; e depois que
procurassem um bom médico. “Se apesar de tudo, o Senhor não lhes dá filhos, não
tem de ver nisso uma nenhuma frustração: tem de estar contentes, descobrindo
nesse mesmo fato a Vontade de Deus para eles. Muitas vezes o Senhor não dá
filhos porque pede mais. Pede que tenham o mesmo esforço e a mesma entrega
delicada, ajudando aos próximos, sem a grande alegria humana de ter tido
filhos: não há, pois, motivo para sentirem-se fracassados nem para dar lugar à
tristeza”.
E acrescentava: “Se os esposos têm vida interior,
compreenderão que Deus os insta, impelindo-os a fazer de sua vida um generoso
serviço cristão, um apostolado diferente do que realizariam com seus filhos,
mas igualmente maravilhoso. Se olham à sua volta, descobrirão imediatamente
pessoas que necessitam de ajuda, de caridade e de carinho. Há, além disso,
ocupações apostólicas em que podem trabalhar. E, se souberem pôr o coração
nessa tarefa, se souberem dar-se generosamente aos outros, esquecendo-se de si
próprios, terão uma fecundidade esplêndida, uma paternidade espiritual que
encherá a sua alma de verdadeira paz” [11].
São Josemaria gostava de se referir às famílias dos
primeiros cristãos: “Famílias que viveram de Cristo e que deram a conhecer
Cristo. Pequenas comunidades cristãs, que atuaram como centros de irradiação da
mensagem evangélica. Lares iguais aos outros lares daqueles tempos, mas
animados de um espírito novo, que contagiava os que os conheciam e com eles se
relacionavam. Assim foram os primeiros cristãos e assim havemos de ser nós, os
cristãos de hoje: semeadores de paz e de alegria, da paz e da alegria que Jesus
nos trouxe” [12].
Ramiro Pellitero
[1] Papa Francisco, Discurso no Encontro com as
famílias, Manila, Filipinas, 16-01-2015.
[2] Cf. São Josemaria, Homilia “Amar o mundo
apaixonadamente”, em Questões atuais do Cristianismo, n. 121;
cf. “O matrimônio, vocação cristã”, em É Cristo que passa.
[3] Rm 8, 28.
[4] São Josemaria, Anotações tomadas de uma reunião
familiar (1967), citado no Dicionário de São Josemaria,
Burgos 2013, p. 490.
[5] Cf. Gn 2, 24; Mc 10,
8.
[6] Papa Francisco, Audiência geral, 27-05-2015.
[7] São Josemaria, Questões atuais do cristianismo, n.
93.
[8] Cf. São Josemaria, Anotações de uma reunião
familiar, 7-07-1974.
[9] Papa Francisco, Discurso no Encontro com as
famílias, Manila, Filipinas, 16-01-2015.
[10] São João Paulo II, Familiaris consortio, n.
86.
[11] São Josemaria, Questões atuais do cristianismo, n.
96.
[12] São Josemaria, É Cristo que passa, n.
30.
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