“Maior que teu coração”: contrição e reconciliação
Só Deus é maior que nosso coração, e por isso só Ele pode
curá-lo, reconciliá-lo até o fundo. Sexto artigo da série “Combate,
proximidade, missão”.
10/09/2024
Parte do fascínio que Jesus provocava em seus
contemporâneos devia-se à sua capacidade de curar o incurável. O Senhor atraía
também muito interesse pelo caráter surpreendente de seus prodígios, pela força
e originalidade de sua pregação, por sua simpatia e seu bom humor, porque aparecia
como o Messias prometido nas Escrituras... mas muitos aproximavam-se dele
sobretudo pela cura milagrosa de enfermos. Havia se espalhado a notícia de que
leprosos, paralíticos, cegos, surdos-mudos ou pessoas com problemas de
mobilidade, haviam sido curados graças às suas palavras e seus gestos.
Mas aquele misterioso médico curava os corpos também para
mostrar um poder maior: curar as almas. Jesus reconcilia como só Deus poderia
fazer: vem curar o fundo de nosso coração. “O que é mais fácil dizer: teus
pecados estão perdoados, ou dizer: levanta-te e anda? Pois, para que saibais
que o Filho do homem tem na terra poder de perdoar os pecados – disse ao
paralítico – eu te digo: levanta-te, pega o leito e vai para casa” (Lc 5,
23-24). O que interessa ao Senhor, sobretudo, é curar nossa cegueira interior:
aquela que nos impede de perceber tudo o que recebemos dele; quer curar nossa
mudez, nossa incapacidade de nomear o mal que há em nós; a surdez que nos
impede de ouvir a voz de Deus e as necessidades de nosso próximo; nossa
paralisia para caminhar rumo ao que nos pode tornar verdadeiramente livres; ou
a lepra que nos faz acreditar que somos indignos de um Deus que nunca se cansa
de nos procurar. Cada momento da vida de Cristo, e em especial sua paixão e sua
ressurreição, manifesta seu desejo de curar. A única coisa de que precisa é
encontrar em nós esse mesmo desejo. A cura só é possível se não escondermos
nossa ferida diante de quem tem o poder de curar.
Deus é maior que nosso coração
“Tudo vem de Deus, que, por Cristo, nos reconciliou consigo
e nos confiou o ministério da reconciliação”, escreve São Paulo aos de Corinto.
“Com efeito, em Cristo, Deus reconciliou o mundo consigo, não imputando aos
homens as suas faltas e colocando em nós a palavra da reconciliação” (2 Cor 5,
18-19). As primeiras comunidades cristãs, talvez pelo contraste com a dura
lógica social que as rodeava, foram compreendendo que a reconciliação com Deus
e com os outros era um dom que só podia vir do alto. Percebiam que nós não
podemos “causar” o perdão de Deus com nossa penitência ou com nossos atos de
reparação, mas podemos apenas aceitar com agradecimento o regalo gratuito – a
“graça” – que ele nos oferece.
É fácil que, sem perceber, nos vejamos aplicando ao perdão
de Deus a lógica de um perdão excessivamente humano. Para uma
mentalidade estritamente legalista, o importante é o pagamento de uma sanção, a
quantia que se deve reparar, o esforço por voltar a um equilíbrio anterior ao
dano. Essa lógica, porém, precisamente com o desespero silencioso que ela pode
gerar em quem não tem como reparar, é o que Jesus veio superar. “Repara que
entranhas de misericórdia tem a justiça de Deus! – Porque, nos julgamentos humanos,
castiga-se a quem confessa a sua culpa; e no divino perdoa-se”[1].
A primeira carta de São João também traz esta notícia
consoladora, com palavras que podem nos encher de paz: “Aí está o critério para
saber que somos da verdade e para sossegar diante dele o nosso coração, pois,
se o nosso coração nos acusa, Deus é maior que o nosso coração e conhece todas
as coisas” (1 Jo 3, 19-20). Jesus diz muitas vezes que veio nos salvar e não
nos condenar[2],
mas mesmo assim podem surgir facilmente em nosso interior vozes que nos
inquietam: a de uma esperança frágil, que convida a jogar a toalha, porque não
acredita plenamente que Deus pode perdoar tudo; ou a de uma soberba que não
suporta constatar mais uma vez a própria debilidade.
O Papa nos alenta a ir ao encontro dessas vozes: “Tu, irmã,
irmão, se teus pecados te assustam, se teu passado te inquieta, se tuas feridas
não cicatrizam, se tuas contínuas quedas te desmoralizam e parece que perdeste
a esperança, por favor não temas. Deus conhece tuas debilidades e é maior que
teus erros. Deus é maior que nossos pecados, muito maior. Pede apenas uma
coisa: que não guardes dentro de ti tuas fragilidades, tuas misérias; mas que
as leves a Ele, as coloques diante dele, e os motivos de desolação
converter-se-ão em oportunidades de ressureição”[3].
Nesse mesmo sentido, São Josemaria convidava a prestar
atenção aos personagens que se aproximam de Jesus, conscientes de não ter
nenhuma possibilidade de pagar a fatura de sua cura, nem a
física e nem a espiritual. Essa convicção abre-lhes, porém, as portas da
verdadeira vida espiritual, o espaço da gratuidade, onde essa “graça” é o mais
importante: “Talvez penses que os teus pecados são muitos, que o Senhor não poderá
ouvir-te. Não é assim porque Ele tem entranhas de misericórdia (...). E
observemos o que nos conta São Mateus, quando coloca um paralítico diante de
Jesus. Aquele doente não faz nenhum comentário: fica ali simplesmente, na
presença de Deus. E Cristo, comovido por essa contrição, por essa dor de quem
sabe não merecer, não demora a reagir com a sua misericórdia habitual: Tem
confiança, que te são perdoados os teus pecados”[4].
_______________
[1] São
Josemaria, Caminho, n. 309
[2] Cfr.
por exemplo Jo 3, 17; 12, 47.
[3] Francisco,
Homilia, 25/03/2022.omilia HoH
[4] São
Josemaria, Amigos de Deus, n. 253
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