“Maior que teu coração”: contrição e reconciliação
Só Deus é maior que nosso coração, e por isso só Ele pode
curá-lo, reconciliá-lo até o fundo. Sexto artigo da série “Combate,
proximidade, missão”.
10/09/2024
Cura-me, Senhor, do que está oculto para mim
A convicção de que Deus sempre nos perdoa vibra também no
coração do salmista: “Então eu vos confessei o meu pecado, e não mais
dissimulei a minha culpa. Disse: ‘Sim, vou confessar ao Senhor a minha
iniquidade’. E vós perdoastes a pena do meu pecado” (Sl 32, 5). É assim que nos
aproximamos do mistério da santa Missa: para nos unirmos à cruz de Jesus, para
entrar em sua transformação amorosa de todo o mal da história, começamos por
reconhecer com humildade a nossa culpa; e batemos no peito, como que se quiséssemos
despertar o nosso coração[5].
Nesta insistência em reconhecer nossos pecados, conscientes
ou inconscientes, alguns quiseram ver um possível desequilíbrio psicológico ou
uma busca de carregar pesos desnecessários na alma. Na verdade, ainda que haja
tendências escrupulosas que bloqueiam o crescimento da vida interior, existe
também um saudável sentimento de culpa, indispensável para que as asas do
coração decolem. Só há liberdade onde há responsabilidade, onde nossas ações
são levadas a sério. Qualquer processo de crescimento espiritual inclui uma
análise realista, sem medo, das nossas ações; inclusive aquelas que nos causam
inquietação ou remorso. Precisamos examinar, junto de Deus, nossos pensamentos,
palavras, obras ou omissões[6]:
compreender no que podemos ferir – ou, o que é pior, tratar com indiferença – a
Deus e aos outros; em que prejudicamos a nós mesmos, deixando crescer em nossa
alma a cizânia. Porque só a verdade nos liberta (cfr. Jo 8, 32), especialmente
a verdade sobre a nossa própria vida.
Nesta tarefa deveremos evitar três tentações: primeiro,
minimizar nossa culpa, por fazer um exame de consciência superficial, ou por
fugir do silêncio interior onde o Espírito Santo nos espera para nos mostrar
nossa própria verdade; segundo, a de transferir a culpa para os outros ou para
as circunstâncias, de modo que habitualmente seremos vistos como vítimas ou
como se nunca tivéssemos prejudicado ninguém; e, em último lugar, uma tentação
que parece contrária à anterior, mas que acaba levando à mesma complacência
estéril: a que desvia nosso arrependimento de Deus e dos outros para colocá-lo
em nosso orgulho ferido, no fato de termos falhado de novo conosco mesmos.
“Quem pode, entretanto, ver as próprias faltas? Purificai-me
das que me são ocultas. Preservai, também vosso servo do orgulho; não domine
ele sobre mim, então serei íntegro e limpo de falta grave” (Sl 19, 13-14). No
fundo de um sentimento de culpa saudável não está a atitude de “um maníaco
colecionador de uma folha de serviços imaculada”[7],
mas a humildade de quem quer descobrir o que o afasta de Deus, o que cria
divisão em sua alma e ao seu redor, o que o impede de dar e receber amor. Não
confessamos nossa “imperfeição” e sim nossa indiferença ou nosso pouco carinho,
manifestando-os em detalhes concretos: “houve algo em mim que te pudesse a Ti,
Senhor, Amor meu, magoar?”[8].
Dessa atitude pode vir a luz que nos leve a descobrir serenamente a nossa
verdade: a olhar no mais fundo de nosso coração, onde já está, querendo abrir
caminho em nós, o Reino de Deus (cfr. Lc. 17,21). Um saudável sentimento de
culpa é um aliado em nosso esforço para ser mais de Deus; um catalizador de
nossas “sucessivas conversões”[9],
sempre que recordarmos que sem Ele, não podemos fazer nada.
Um sacramento que devolve a beleza ao mundo
Santo Agostinho dizia que “a Igreja é o mundo reconciliado”[10].
Daí que a família de Deus se desenvolva “reconciliando o mundo com Deus. Essa é
a grande missão apostólica de todos”[11].
E o sacramento da reconciliação é um dos centros nevrálgicos desse grande
movimento de reconstrução, de pacificação, de perdão. É o melhor lugar de onde
podemos nos afastar de nossa culpa; nele percebemos que, embora sejamos
pecadores, não somos nosso pecado; e que, diante de um Pai que nos ama sem
condições, não precisamos ocultar nada. O sacramento da reconciliação ajuda a
enfrentar nossa fragilidade, nossas contradições, nossas feridas; e a
mostrá-las ao único médico que pode curá-las. São Paulo o fazia com uma
segurança sem limites: “portanto, prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para
que habite em mim a força de Cristo” (2 Cor 12, 9).
Essa confiança, no entanto, vai junto com a contrição, o
sofrimento do coração pelo mal que encontra dentro de si: “Lavai-me totalmente
da minha culpa, e purificai-me de meu pecado. Eu reconheço a minha iniquidade,
diante de mim está sempre o meu pecado” (Sl 51, 4-5). A tradição católica
costuma distinguir dois tipos de contrição: a que surge do amor de Deus – o
arrependimento por ter rejeitado o amor à Trindade, ou seja, as pessoas mais
importantes de minha vida – ou a que surge de modo indireto, por compreender o
dano ocasionado pelo pecado, suas consequências espirituais, ou pela confiança
na sabedoria da Igreja[12].
A primeira é chamada “contrição perfeita”: com ela, Deus nos perdoa os pecados,
inclusive graves, contanto que nos proponhamos recorrer ao sacramento da
reconciliação assim que possível. A segunda é a chamada “contrição imperfeita”;
é também um dom de Deus que inicia um caminho espiritual, porque nos dispõe a
receber o perdão dos pecados no sacramento. Os atos de contrição, que podem ser
breves orações improvisadas ao longo do dia – Perdão, Jesus! – despertam essa
dor do coração; preparam-nos para receber e para compartilhar mais
abundantemente a misericórdia de Deus.
O Catecismo da Igreja recorda também que, ao lado do
sacramento da penitência, único lugar em que Jesus nos libera dos pecados
graves, podemos também receber de outras formas a reconciliação dos outros
pecados. A Sagrada Escritura e os Padres citam, entre eles, “os esforços
empreendidos para reconciliar-se com o próximo (cfr. St. 5, 20), as lágrimas de
penitência, a preocupação com a salvação do próximo, a intercessão dos santos e
a prática da caridade, ‘que cobre uma multidão de pecados’ (1Pd 4,8)”[13].
A Igreja não deixa, no entanto, de recomendar a confissão sacramental também
para as faltas menos graves. São Paulo VI recordava que “a confissão frequente
continua sendo uma fonte privilegiada de santidade, de paz e de alegria”[14].
E São Josemaria: “Recorrei semanalmente – e sempre que precisardes, sem dar
lugar aos escrúpulos - ao Santo Sacramento da Penitência, ao sacramento do
perdão divino, (...) e redescobriremos o mundo numa perspectiva feliz, porque o
mundo saiu belo e limpo das mãos de Deus, e é assim, com essa beleza, que o
havemos de restituir a Ele, se aprendermos a arrepender-nos”[15].
A confissão frequente permite afinar o coração, e evita que
nos acostumemos a nossa frieza, a nossas resistências ao amor de Deus. Bento
XVI comentava certa vez: “é verdade que os nossos pecados são quase sempre os
mesmos, mas limpamos nossas casas, nossos quartos pelo menos uma vez por
semana, embora a sujeira seja sempre a mesma, para viver num lugar limpo, para
recomeçar; do contrário, a sujeira talvez não se veja, mas se acumula. Algo
semelhante vale também para a alma, para mim mesmo; se não me confesso nunca, a
alma se descuida e, no final, estou sempre satisfeito comigo mesmo e já não
compreendo que devo esforçar-me também por ser melhor, que devo avançar. E esta
limpeza da alma que Jesus nos dá no sacramento da Confissão, ajuda-nos a ter
uma consciência mais desperta, mais aberta, e também a amadurecer
espiritualmente e como pessoa humana”[16].
“O sacramento da Reconciliação precisa voltar a encontrar o
lugar central na vida cristã”[17],
escreveu o Papa Francisco. Além da cura das grandes feridas, é um aliado
necessário na vida cristã diária: ajuda a conhecer-nos cada vez melhor e a
familiarizar-nos com o coração misericordioso de Deus. Dificilmente superaremos
de modo imediato todas as rotinas ou disposições que nos levam ao mal: a graça
conta com a história e deve fazer-se uma só coisa com a nossa”[18].
Por isso, sem expectativas irreais que podem nos fazer desesperar de nossa
fraqueza, ou inclusive da graça, tenhamos sempre o olhar em Jesus; não deixemos
de recorrer a quem quer e pode curar-nos. Porque a vida espiritual é “um
contínuo começar e recomeçar. – Recomeçar? Sim! Cada vez que fazes um ato de
contrição”[19].
[5] Cfr.
Missal romano, ritos iniciais.
[6] Ibid.
[7] São
Josemaria, É Cristo que passa, n. 75
[8] São
Josemaria, Forja, n. 494
[9] É
Cristo que passa, n. 57
[10] Santo
Agostinho, Sermão 96, n. 8
[11] F.
Ocáriz, Mensagem pastoral, 21/10/2023.
[12] Cfr.
Catecismo da Igreja, nn. 1452-1453
[13] Ibid.
, n. 1434
[14] São
Paulo VI, Ex. ap. Gaudete in Domino, n. 52.
[15] Amigos
de Deus, n. 219.
[16] Bento
XVI, Catequese, 15/10/2005.
[17] Francisco,
Misericordia et misera, n. 11
[18] Cfr.
Francisco, Gaudete et Exsultate, n. 50
[19] Forja, n.
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