O sofrimento e o amor
Dois modos de encarar a mesma dor
Faz alguns anos, no espaço de um mês, tive que ficar muito
perto de dois grandes sofrimentos: dois casos de pais que haviam perdido um
filho adolescente de maneira repentina e trágica. Conversei longamente com o
primeiro e, uns trinta dias mais tarde, com o outro.
O primeiro afundara-se numa dor insuportável, que lhe abalou
os alicerces da vida e lhe asfixiou a fé. Repetia depois, ao longo dos anos,
num desabafo amaríssimo e cheio de rancor, que a sua vida tinha perdido o
sentido, que não sabia se Deus existia ou não, mas que não se importava, porque
já o tinha “apagado” e não queria saber mais dEle. Fechado na sua solidão
desesperada, definhava e tornava difícil a existência dos que conviviam com
ele. E é que, sem a luz da fé, o homem fica abandonado ao turbilhão da vida, é
como um cego golpeado por um mundo cruel e incompreensível, sem mais
alternativa que o terror ou a revolta, a frieza estóica, a resignação gelada ou
o desespero.
O segundo pai sofreu tanto como o primeiro. Perder um filho
é uma das maiores dores da vida, se não a máxima. Mas não permitiu que o
sofrimento lhe vendasse os olhos nem se encapsulou na sua dor. No meio das
lágrimas, fixou com força o olhar da alma em Cristo crucificado e, unido a Ele,
rezou: Pai, seja feita a vossa vontade! Dentro do seu coração dizia: “Não
entendo essa tua vontade, Pai, mas eu creio em Ti, eu espero em Ti, eu Te amo
acima de todas as coisas”.
No velório, ver esse pai –e a mãe igualmente, com o mesmo
espírito- a rezar junto do corpo do filho, não causava constrangimento, mas
comunicava uma serenidade superior a qualquer paz que se possa experimentar
nesta terra, e elevava a todos para Deus, cuja presença lá se apalpava. Era uma
serenidade estranha e poderosa, misturada com uma dor muito forte, que ficava
sendo um enigma para os frios e os descrentes. Era mesmo um lampejo da
sabedoria da Cruz de que fala São Paulo (Cf. 1 Cor 1,18-25).
“Entender” e “saber”
Como este segundo pai, nós também muitas vezes não
“entendemos” o sofrimento, e é natural. É difícil compreender a doença
incurável, a incapacitação física, a ruína psicológica dos que amamos, o
desastre econômico… Não “entendemos”, mas… “sabemos” – com a certeza
indestrutível da fé -, que Deus é Pai, que Deus é amor (I Jo 4,8) e, portanto
–como diz com cálido otimismo São Paulo-, nós sabemos que Deus faz concorrer
todas as coisas para o bem daqueles que o amam (Rom 8,28); faz concorrer
também, e muito especialmente, os sofrimentos que Ele mesmo nos envia, ou os
que Ele permite, ainda que os não queira, porque causados pela maldade dos
homens.
Então, essa nossa fé –dom precioso de Deus que não queremos
extinguir–, nos permite o paradoxo inefável de sofrer e ter paz, de sofrer e
manter no íntimo da alma uma misteriosa e fortíssima serenidade, uma
imorredoura esperança. Assim sofreu Cristo na Cruz e assim sofreram os santos.
Os que se entregam nas mãos de Deus Pai sentem que a Cruz se
lhes torna doce –uma Cruz sem Cruz-, e os inunda de uma suavidade amável. Eles
escutam e escutarão sempre as palavras de Cristo, que nos diz, na hora da dor:
Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei.
Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de mim, que sou manso e humilde de
coração, e achareis o repouso para as vossas almas. Porque meu jugo é suave e
meu peso é leve” (Mt 11,28-30).
E chegarão a exclamar, como Santa Teresa de Ávila: “Ó
Senhor, o caminho da Cruz é o que reservais aos vossos amados!”
A dor que faz amadurecer
Num conto intitulado O espelho, João Guimarães Rosa
descreve, simbolicamente, uma experiência que os místicos cristãos conhecem em
profundidade.
O protagonista da estória empreende a aventura de descobrir
o seu verdadeiro rosto –o seu autêntico eu – num espelho-símbolo. Tenta olhar
de tal modo que depure da sua figura tudo o que é superficial, animal,
passional e espúrio, e acaba não vendo nada: “Eu não tinha formas, rosto?”.
Prosseguindo na experiência, só “mais tarde, ao fim de uma ocasião de
sofrimentos grandes”, quando “já amava –já aprendendo, isto seja, a
conformidade e a alegria”, é que começou a ver-se como o esboço inicial de um
menino, que emergia do vazio, isto é, viu o seu rosto verdadeiro, que começava
a nascer. No final da estória, o protagonista pergunta-se: “Você chegou a
existir?”.
O escritor lembra-nos, com isso, que a pessoa que não
sofreu, não aprendeu a amar de verdade; e que a pessoa que não aprendeu a amar,
não amadureceu; pode-se dizer que ainda não está “feita”, ainda não “existe”.
Nós…, “existimos”? Somos aquele que deveríamos ser, aquele
que Deus espera de nós? A resposta –sim ou não- dependerá quase sempre de como
sabemos sofrer. Tem muita razão o poeta que diz: “As pessoas que não conhecem a
dor são como igrejas sem benzer ”
Deus nos “faz” com o sofrimento, modela-nos como um
escultor, dá-nos a qualidade de um verdadeiro homem ou mulher, de um verdadeiro
filho de Deus. A Cruz –poderíamos dizer- é a grande ferramenta formativa de
Deus.
Três meses antes de morrer, São Josemaria Escrivá fazia um
rápido balanço da sua vida, e resumia: “Um olhar para trás… Um panorama imenso:
tantas dores, tantas alegrias. E agora tudo alegrias, tudo alegrias… Porque
temos a experiência de que a dor é o martelar do Artista, que quer fazer de
cada um, dessa massa informe que nós somos, um crucifixo, um Cristo, o alter
Christus [o outro Cristo] que temos de ser”
Essa visão essencialmente cristã é a que lhe inspirou sempre
a pregação sobre a dor, baseada na sua própria experiência de alma enamorada de
Deus: “Não te queixes, se sofres –escrevia-. Lapida-se a pedra que se estima,
que tem valor. Dói-te? –Deixa-te lapidar, com agradecimento, porque Deus te
tomou nas suas mãos como um diamante… Não se trabalha assim um pedregulho
vulgar”.
Deus sempre nos faz bem por meio da Cruz, seja qual for,
quando nós o “deixamos” fazer. Assim como nos salvou pela Cruz, assim também
nos aperfeiçoa e nos santifica por meio da Cruz. Não exclusivamente mediante a
Cruz –também nos santificam muitas alegrias, trabalhos que amamos, carinhos que
nos enriquecem…–, mas certamente não sem ela.
Fonte: PeFaus@1928 (Adaptação de um trecho do livro
de F. Faus: A sabedoria da Cruz)
Nenhum comentário:
Postar um comentário