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quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O sofrimento e o amor (1)

Homem rezando (Presbíteros)

O sofrimento e o amor

Dois modos de encarar a mesma dor

Faz alguns anos, no espaço de um mês, tive que ficar muito perto de dois grandes sofrimentos: dois casos de pais que haviam perdido um filho adolescente de maneira repentina e trágica. Conversei longamente com o primeiro e, uns trinta dias mais tarde, com o outro.

O primeiro afundara-se numa dor insuportável, que lhe abalou os alicerces da vida e lhe asfixiou a fé. Repetia depois, ao longo dos anos, num desabafo amaríssimo e cheio de rancor, que a sua vida tinha perdido o sentido, que não sabia se Deus existia ou não, mas que não se importava, porque já o tinha “apagado” e não queria saber mais dEle. Fechado na sua solidão desesperada, definhava e tornava difícil a existência dos que conviviam com ele. E é que, sem a luz da fé, o homem fica abandonado ao turbilhão da vida, é como um cego golpeado por um mundo cruel e incompreensível, sem mais alternativa que o terror ou a revolta, a frieza estóica, a resignação gelada ou o desespero.

O segundo pai sofreu tanto como o primeiro. Perder um filho é uma das maiores dores da vida, se não a máxima. Mas não permitiu que o sofrimento lhe vendasse os olhos nem se encapsulou na sua dor. No meio das lágrimas, fixou com força o olhar da alma em Cristo crucificado e, unido a Ele, rezou: Pai, seja feita a vossa vontade! Dentro do seu coração dizia: “Não entendo essa tua vontade, Pai, mas eu creio em Ti, eu espero em Ti, eu Te amo acima de todas as coisas”.

No velório, ver esse pai –e a mãe igualmente, com o mesmo espírito- a rezar junto do corpo do filho, não causava constrangimento, mas comunicava uma serenidade superior a qualquer paz que se possa experimentar nesta terra, e elevava a todos para Deus, cuja presença lá se apalpava. Era uma serenidade estranha e poderosa, misturada com uma dor muito forte, que ficava sendo um enigma para os frios e os descrentes. Era mesmo um lampejo da sabedoria da Cruz de que fala São Paulo (Cf. 1 Cor 1,18-25).

“Entender” e “saber”

Como este segundo pai, nós também muitas vezes não “entendemos” o sofrimento, e é natural. É difícil compreender a doença incurável, a incapacitação física, a ruína psicológica dos que amamos, o desastre econômico… Não “entendemos”, mas… “sabemos” – com a certeza indestrutível da fé -, que Deus é Pai, que Deus é amor (I Jo 4,8) e, portanto –como diz com cálido otimismo São Paulo-, nós sabemos que Deus faz concorrer todas as coisas para o bem daqueles que o amam (Rom 8,28); faz concorrer também, e muito especialmente, os sofrimentos que Ele mesmo nos envia, ou os que Ele permite, ainda que os não queira, porque causados pela maldade dos homens.

Então, essa nossa fé –dom precioso de Deus que não queremos extinguir–, nos permite o paradoxo inefável de sofrer e ter paz, de sofrer e manter no íntimo da alma uma misteriosa e fortíssima serenidade, uma imorredoura esperança. Assim sofreu Cristo na Cruz e assim sofreram os santos.

Os que se entregam nas mãos de Deus Pai sentem que a Cruz se lhes torna doce –uma Cruz sem Cruz-, e os inunda de uma suavidade amável. Eles escutam e escutarão sempre as palavras de Cristo, que nos diz, na hora da dor: Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis o repouso para as vossas almas. Porque meu jugo é suave e meu peso é leve” (Mt 11,28-30).

E chegarão a exclamar, como Santa Teresa de Ávila: “Ó Senhor, o caminho da Cruz é o que reservais aos vossos amados!”

A dor que faz amadurecer

Num conto intitulado O espelho, João Guimarães Rosa descreve, simbolicamente, uma experiência que os místicos cristãos conhecem em profundidade.

O protagonista da estória empreende a aventura de descobrir o seu verdadeiro rosto –o seu autêntico eu – num espelho-símbolo. Tenta olhar de tal modo que depure da sua figura tudo o que é superficial, animal, passional e espúrio, e acaba não vendo nada: “Eu não tinha formas, rosto?”. Prosseguindo na experiência, só “mais tarde, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes”, quando “já amava –já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria”, é que começou a ver-se como o esboço inicial de um menino, que emergia do vazio, isto é, viu o seu rosto verdadeiro, que começava a nascer. No final da estória, o protagonista pergunta-se: “Você chegou a existir?”.

O escritor lembra-nos, com isso, que a pessoa que não sofreu, não aprendeu a amar de verdade; e que a pessoa que não aprendeu a amar, não amadureceu; pode-se dizer que ainda não está “feita”, ainda não “existe”.

Nós…, “existimos”? Somos aquele que deveríamos ser, aquele que Deus espera de nós? A resposta –sim ou não- dependerá quase sempre de como sabemos sofrer. Tem muita razão o poeta que diz: “As pessoas que não conhecem a dor são como igrejas sem benzer ”

Deus nos “faz” com o sofrimento, modela-nos como um escultor, dá-nos a qualidade de um verdadeiro homem ou mulher, de um verdadeiro filho de Deus. A Cruz –poderíamos dizer- é a grande ferramenta formativa de Deus.

Três meses antes de morrer, São Josemaria Escrivá fazia um rápido balanço da sua vida, e resumia: “Um olhar para trás… Um panorama imenso: tantas dores, tantas alegrias. E agora tudo alegrias, tudo alegrias… Porque temos a experiência de que a dor é o martelar do Artista, que quer fazer de cada um, dessa massa informe que nós somos, um crucifixo, um Cristo, o alter Christus [o outro Cristo] que temos de ser”

Essa visão essencialmente cristã é a que lhe inspirou sempre a pregação sobre a dor, baseada na sua própria experiência de alma enamorada de Deus: “Não te queixes, se sofres –escrevia-. Lapida-se a pedra que se estima, que tem valor. Dói-te? –Deixa-te lapidar, com agradecimento, porque Deus te tomou nas suas mãos como um diamante… Não se trabalha assim um pedregulho vulgar”.

Deus sempre nos faz bem por meio da Cruz, seja qual for, quando nós o “deixamos” fazer. Assim como nos salvou pela Cruz, assim também nos aperfeiçoa e nos santifica por meio da Cruz. Não exclusivamente mediante a Cruz –também nos santificam muitas alegrias, trabalhos que amamos, carinhos que nos enriquecem…–, mas certamente não sem ela.

Fonte:  PeFaus@1928 (Adaptação de um trecho do livro de F. Faus: A sabedoria da Cruz)

https://presbiteros.org.br/o-sofrimento-e-o-amor/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF