Onde é o Norte?
Um norte para viver a fraternidade em seu aspecto mais
concreto.
por Pedro José de Sousa Paula Silva - publicado e modificado em 04/10/2024.
Professores parecem ter uma capacidade natural em
surpreender seus alunos: por meio de uma prova mil vezes mais difícil que o
esperado, sendo amigável ou trazendo um conhecimento que lhe faça repensar
aquilo que já estava estabelecido na sua cabeça há muito tempo. Sejamos
honestos, esse último exemplo não acontece sempre. Digamos que a teoria dos
conjuntos não possui essa magia. Mas quando acontece, bate forte, e você
recorda do momento como uma pequena centelha de conhecimento em meio ao caos
que é a vida.
Encontrei uma dessas centelhas enquanto
estava na faculdade. Discutíamos sobre pessoas com deficiência visual e
deficiências em geral, quando a professora disse: “Se você pegar a palavra
‘deficiente’, e tirar o ‘de’, o que sobra?”. Eficiente
Nas aulas seguintes, o significado foi melhor explicado:
todos nós somos capazes de feitos incríveis; não ter um membro ou um dos
sentidos pode ser um dificultador, mas não nos transforma em pessoas
incompetentes. Não devemos tratar os outros como inferiores, muito menos como
coitados, incapazes. Precisamos reconhecer que eles são tão capazes quanto nós,
têm dificuldades, mas são igualmente capacitados.
Pode parecer uma conclusão “nichada”, apenas para pessoas
com deficiência, mas tem total conexão com outros temas, como a fraternidade.
Fraternidade é uma coisa bonita: criar laços de união e respeito com pessoas de
outros povos, culturas, religiões e formas de pensar. Mas, quantas vezes não
acontece de, lá no fundo, tratarmos o outro como se fosse um coitado, inferior?
Isso nos leva a exercitar uma fraternidade “doente”, até mesmo falsa, uma
soberba disfarçada.
Nessa situação, enquanto chamamos um
grupo de inferior, estamos nos colocando também como superiores. Pior: isso
pode acontecer quando nem percebemos. Não é preciso ser de forma óbvia; muitas
vezes, é sutil. Quando encaramos de forma torta uma cultura inteira devido a um
único elemento, ao pensarmos que o outro é “cego” por seguir determinada fé, ou
até quando sentimos dó de alguém. Nem sempre paramos para pensar, mas, às
vezes, sentir dó pode ser uma forma de expressar superioridade.
Um cenário assim nos leva a atos dignos de pena. Destratamos
os outros e nos sentimos desencorajados a ajudar e, quando ajudamos, não passa
de uma ação esnobe, como se fossemos misericordiosos, detentores de grande
virtude. Mas é óbvio, nesse ponto a capacidade de enxergar os próprios erros já
se perdeu.
Para sermos fraternos, antes de pensarmos nos outros,
precisamos trabalhar o que se passa na nossa cabeça; assumir que somos falhos,
que estamos dentro de uma cultura igualmente defeituosa, com aspectos belos e
outros terríveis; e principalmente, encarar que não somos guardiões de verdade
absoluta!
Vale dizer ainda: a maior ferramenta à disposição para não
inferiorizarmos os outros é o espelho. Se você assumir que é repleto de falhas,
igual a quem está à sua frente, vai passar a entender que estamos todos juntos.
Estamos todos perdidos, sem uma certeza absoluta de nada nesta existência.
Mesmo a pessoa de fé mais resiliente tem seus momentos de insegurança.
Mas, isso não é motivo de vergonha ou desespero. Pelo
contrário, é motivo de alegria, porque podemos começar a nos ajudar da forma
correta. Não vamos ajudar porque acreditamos ter a fórmula para o sucesso e
felicidade, mas sim por entender que todos nós temos algo de errado, e
precisamos desse auxílio. É assim que passamos a exercer a fraternidade: quando
assumimos que todos estão neste mesmo nível.
Uma forma cômica de resumir o tema (e eu amo momentos
assim), já aconteceu há muito tempo, com um adesivo de carro: “Não me segue
porque tô perdido”. Ou ainda: imagine que estamos todos no oceano, cada um em
seu barco, navegando para onde acreditamos ser o Norte. Se seu colega estiver
indo para a direção oposta à sua, não fique com raiva, nem você mesmo tem
certeza de estar indo para o norte verdadeiro.
Reconheço que esse pensamento pode nos impactar um pouco.
Desde os primeiros anos na escola, estamos sempre procurando bases, portos
seguros em que podemos atracar sem medo. Quando aparece alguém gritando que
você é falho, que alguma dessas bases precisam ser repensadas porque podem
estar erradas, tendemos a entrar em crise. É meio impactante mesmo. Mas não é
preciso se desesperar, porque a vida adulta saudável é essa constante mudança.
É claro que tem alguns pontos que não vão mudar, não estou
aqui para dizer que você deve questionar, por exemplo, se a terra é plana. Meu
objetivo é mostrar que não devemos ser arrogantes ou soberbos, e é preciso
deixar a mente aberta para receber críticas construtivas. Do contrário, nos
colocamos em um pedestal e começamos a diminuir quem está em volta. Tenha um
senso de autocrítica, sempre lembrando que você é falho e não é guardião de uma
verdade absoluta ou cultura e fé superiores.
Mas isso tudo tem lógica, afinal? Acredito sinceramente que
sim. Pode acontecer daqui alguns anos eu olhar estas linhas e criticá-las, o
que seria absolutamente possível. Contudo, se não mantivermos nossa mente
aberta, assumindo as falhas, dificilmente vamos conseguir exercer uma
fraternidade honesta, respeitar os outros e aquilo que os faz diferentes, bem
como suas escolhas.
A fraternidade não vai acontecer em um ambiente de soberba.
Em lugares assim, o que temos são pessoas a todo instante tentando convencer as
outras de que elas estão certas e seus interlocutores errados e que, por isso,
aqueles deveriam mudar de lado. Um eterno confronto para descobrir quem sabe
mais do que o outro, quando na verdade, não sabem nada ou quase nada.
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