O manto e a sombra de Jesus: a igreja, lar de nossa
santidade
Quando Cristo nos alcança em sua Igreja e nos deixa tocar
seu manto, a força que sai dele é a sua própria santidade. Ele nos transforma
para que possamos usufruir da “largura, do comprimento, da altura e da
profundidade de seu coração”.
09/12/2024
Era um dia qualquer em Cafarnaum, e uma mulher ficou curada
milagrosamente ao tocar a ponta do manto de Jesus (cfr. Mc 5,25-34). Sabemos
pouco sobre ela, temos, mas sabemos menos ainda sobre as multidões que se
aproximavam do Senhor com aquela mesma esperança: tocar seu manto para ser
curados de suas doenças (cfr. Mt 14,36). E, no entanto, cada pessoa era
importante e única para Jesus: como acontece conosco, todo o amor de Deus
estava esperando por eles[1].
Nosso Senhor continua caminhando no meio de nós, deixando-se
alcançar, tocar, interpelar. Não age em nossas vidas de uma prudente “distância
de segurança”, mas com um imediatismo confiante. Os Atos dos apóstolos mostram
como esse contato é possível depois de que, por sua ressurreição e ascensão,
Jesus se tornou presente de um modo menos perceptível à simples vista, mas
realmente muito mais próximo. Seu manto tornou-se acessível na sombra de Pedro:
“Traziam os doentes para as ruas e punham-nos em leitos e macas, a fim de que,
quando Pedro passasse, ao menos a sua sombra cobrisse alguns deles” (At
5,14-15). É isso: o manto do Senhor subsiste agora na sombra do Apóstolo,
convertida em força do Altíssimo que cobre, santifica e cura. O manto de nosso
Senhor e a sombra do Apóstolo: essa é “a realidade divino-humana da
Igreja”[2],
o caminho pelo qual Deus continua a nos alcançar e tocar, o lugar da nossa
experiência do amor divino, o lar de nossa santidade.
Tocar o manto do Senhor
Assim como as testemunhas imediatas daqueles milagres,
podemos nos surpreender com a simplicidade dos canais pelos quais o coração de
Cristo quer entrar em conexão com o nosso. Talvez esperássemos algo mais
extraordinário, algo que impactasse mais os nossos sentidos com mais força. E,
no entanto, é apenas assim: Deus quer comunicar-nos sua graça deixando-nos
apenas tocar seu manto e ser alcançados por sua sombra.
Para poder tocar o Senhor é necessário que estejamos
dispostos a caminhar através de intermediários de pouco brilho e, às vezes,
inclusive, com mais sombra do que luz; e, no entanto, como acontece com os
vitrais de uma catedral, é através desses intermediários que a luz nos alcança
adquirindo inclusive tons maravilhosos em alguns momentos. A sombra de Pedro
pode parecer simplesmente isso, a sombra de Pedro; e, no entanto, nela se
encontra Ele, vivo e atuando.
O manto de Jesus, a sombra de Pedro, são a própria Igreja,
que irradia força e luz. Ela é “como um sacramento, isto é, sinal e instrumento
da união íntima com Deus e da unidade de todo o gênero humano”[3].
Daí que o caminho de nossa santidade passe pelo desejo de manter-nos muito
unidos a Jesus Cristo em sua Igreja, porque nossa fortaleza está nele, em sua
pessoa “sacramentada”. São Leão Magno dizia que “aquilo que era visível em
nosso Salvador passou para seus mistérios”[4].
De modo semelhante, São Josemaria via os sacramentos “como as pegadas de seus
passos, para que possamos pisar neles e chegar ao céu”[5].
O desafio consiste então em descobrir o poder e a fecundidade que se oculta sob
a aparente simplicidade dessas palavras e gestos, desses rostos
e elementos – dessa sombra – através dos quais o Senhor deseja vir ao nosso
encontro hoje.
Uma das coisas que a vida do Senhor nos mostra é sua forma
de entrar em nossa existência através de um encontro pessoal. Jesus toca o
leproso, olha para aqueles a quem chama, impõe as
mãos às crianças e se convida a ir à casa de Zaqueu. E não se
trata de simples episódios do passado, porque Jesus não mudou seu desejo
original: quer continuar se encontrando pessoalmente com cada um. E só assim,
através destes formosos encontros, converte-nos, atrai-nos para si.
Sacramentos de humildade
“O que temos ouvido, o que temos visto com os nossos olhos,
o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado (...) nós vos anunciamos”
(1 Jo 1,3). Estas palavras autobiográficas do apóstolo São João expõem de modo
impressionante o que havia no coração dos primeiros cristãos. Nossos primeiros
irmãos na fé não pretenderam apenas transmitir-nos uma reflexão ou relatos
comoventes sobre Jesus Cristo, nem um guia para entrarmos em um relacionamento
com Deus por conta própria. Comunicaram o mesmo que eles puderam ver, ouvir e
tocar; porque sabiam que esse, e não outro, era o caminho do Senhor para
transformar-nos em outro Cristo.
Trata-se então de encontrar-nos realmente com Jesus, mas nos
“sagrados mistérios de humildade”, como dizia Santo Agostinho[6].
Assim como o Senhor concedeu a vista ao cego de nascimento colocando em seus
olhos algo tão precário como o lodo, do mesmo modo nós nos deixamos curar no
seio da sua Igreja. Por isso amamos a confissão, a Eucaristia, o sacerdócio
comum e ministerial, e cada dom sacramental: porque amamos a santa e humilde
humanidade de Cristo. Quando recebemos estes dons com fé e esperança vamos nos
identificando cada vez mais com os sentimentos e afetos de Jesus (Fl 2,5). Os
gestos, os sinais e as palavras que recebemos vão realizando em nós o prodígio
da santidade.
No entanto, como aconteceu com Naamã o sírio, que comparava
a pequena corrente do Jordão com os grandes rios de sua pátria (cfr. 2 R
5,10-12), pode surgir também em nós o desejo de águas mais caudalosas ou
especiais para alimentar nossa santidade do que as dos sacramentos. Pode
parecer, às vezes, que os sacramentos quase não nos mudam, que são um caminho
excessivamente lento ou rotineiro. E surge talvez o sonho de algo além deles,
de uma experiência espiritual de maior impacto. Esse pode ser o momento de redescobrir,
junto da simplicidade desses canais, o contínuo convite que ficou gravado na
memória do discípulo amado depois de tantas horas junto do Senhor: permanecer nele[7].
Permanecer unidos ao seu manto, no raio da sombra da sua
Igreja e dos seus sacramentos, significa redescobrir o valor de frequentá-los. Esta
perseverança atuará em nós, não tanto por um acúmulo de efeitos que possamos
perceber facilmente, como por uma progressiva transformação do nosso coração.
Dessa forma, ficaremos repletos de confiança de que chegará o vinho novo. Que
chega, sempre e quando nos mantemos unidos à única vide e recebemos do mestre
as únicas palavras de vida eterna. Permanecer no Senhor por meio de seus
sacramentos é, portanto, uma bela maneira de nos abandonarmos em suas mãos.
Sabemos que, ao permanecermos nele, permitimos que ele realize sua obra em nós,
à sua maneira e em seu próprio ritmo. E então, “nossa vida interior não encerra
outro espetáculo a não ser este: É Cristo que passa quasi in occulto”[8].
Se nos sacramentos podemos voltar a tocar o manto da sua
humanidade, deixar-nos alcançar pela sombra do Apóstolo significa também estar
atentos à voz que a Igreja nos dirige. Dela recebemos as palavras de que
necessitamos para crescer em santidade. Acolhendo-as e deixando-as atuar, com
confiança e amor, vamos nos convertendo naquilo que ouvimos.
Detenhamo-nos um momento nas palavras que ouvimos, por
exemplo, no sacramento da reconciliação. Quem se confessa com frequência
poderia ter alguma vez a impressão de estar repetindo a mesma coisa e de que os
conselhos recebidos também não variam muito. Isso poderia desalentar e fazer
perder a esperança na fecundidade deste sacramento. Talvez seja então o momento
de redescobrir as palavras que nos são ditas na absolvição: Deus nos concede “o
perdão e a paz”[9].
O Senhor, através da sua Igreja, está confirmando nossa condição de seres
perdoados. E convida-nos a viver em paz, porque o nosso coração já vive na paz
do dEle.
Mas também ouvimos muitas expressões de graça durante a
Santa Missa, começando pela Palavra de Deus, que deve encontrar seu caminho em
nós. “Escutamos [a Palavra de Deus] com os ouvidos e ela passa para o coração;
não permanece nos ouvidos, mas deve chegar ao coração; e do coração às mãos, às
boas obras. Eis o percurso da Palavra de Deus: dos ouvidos ao coração e às
mãos”[10].
As palavras que ouvimos durante a consagração também nos fazem um bem especial,
quando o próprio Cristo nos diz que se entrega por nós e que quer habitar
corporalmente em nossas vidas. E o que Ele diz, Ele faz: deixa-se tocar e
comer, na comunhão eucarística.
[1] “Eu
me pergunto muitas vezes ao dia: o que será quando toda a beleza, toda a
bondade, toda a maravilha infinita de Deus se derramar sobre este pobre vaso de
barro que sou eu, que somos todos nós?” (São Josemaria, anotações de uma
reunião familiar, 22/10/1960).
[2] Mons.
F. Ocáriz, Mensagem,
21/10/2023.
[3] Concílio
Vaticano II, Const. Lumen Gentium, n. 1
[4] São
Leão Magno, Sermo 74, 2: CCL 138A, 457 (PL 54, 398); citado no Catecismo
da Igreja Católica, n. 1115.
[5] Cfr.
São Josemaria, Tertúlia em Buenos Aires, Argentina, 15/06/1974.
[6] Santo
Agostinho, Confissões 8, 2, 4.
[7] No
evangelho de São João este verbo aparece repetidamente nos lábios de Jesus;
cfr. Jo 6,56; 8,31; 15,4-10. Em sua primeira carta, o apóstolo far-se-á eco
dessa insistência: cfr. 1 Jo 2,6.24.27; 3, 6.24.
[8] São
Josemaria, Amigos de Deus, n. 152.
[9] Cfr.
Ritual da penitência.
[10] Papa
Francisco, Audiência, 31/01/2018.
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