Francisco
Borba Ribeiro Neto - publicado em 24/12/23
Papai Noel não é só a degradação consumista do espírito
natalino. Ele é a confirmação que nossa cultura, por mais consumista e
interesseira que seja, não consegue apagar em nosso coração o desejo de
gratuidade e bondade sem limites.
Existe um curioso ponto de convergência entre as “análises
críticas marxistas” mais ortodoxas e as reflexões cristãs mais sinceras: a
veemente condenação da mercantilização das festas, em particular a do Natal.
Todos nós já ouvimos, e já falamos, como o consumismo desvirtua o verdadeiro
espírito do Natal, como as pessoas esquecem-se do mais importante neste
período.
As tais análises críticas marxistas costumam mostrar a
mercantilização de todas as esferas da vida humana, a transformação da festa em
mais uma ocasião para incentivar o consumo que só visa o lucro, para
sujeitar-nos ao mercado. Os católicos (entre os quais eu mesmo) criticam a
transformação de uma festa religiosa numa festa de consumo. A abjeta troca do
anúncio maravilhoso de um Deus que se fez homem para sofrer conosco e por nós,
por um fictício bom velhinho com ridículas roupas vermelhas e presentes materiais
que nunca chegariam aos pés do sentido da vida doado pelo Deus feito homem.
Marxistas e cristãos, obviamente, irão discordar totalmente
nas motivações para a crítica, mas se encontrarão na condenação a esse
comportamento… Mas, como resistir aos olhos deslumbrados e às risadas felizes
das crianças diante de seus presentes? Creio que marxistas e católicos estão
cheios de razão. Mas sempre me pareceu faltar alguma coisa nestas críticas.
Algo como um delicado sopro de verdade e a fraca luz de uma vela que pudessem
refrescar e iluminar nosso caminho neste mundo, algo que nos ajudasse a nos
comover com a alegria dos pequenos de modo que a obrigatória distinção entre
Papai Noel e Cristo não se tornasse um exercício moralista, mas sim o natural
desenvolvimento do entendimento do que são o mundo e a vida.
Defendendo Papai Noel
Com o passar dos anos, descobri o que me parecia faltar.
Papai Noel não é só a degradação consumista do espírito natalino. Ele é a
confirmação que nossa cultura, por mais consumista e interesseira que seja, não
consegue apagar em nosso coração o desejo de gratuidade e bondade sem limites.
No mundo real, só a lógica do próprio interesse, do poder e da ganância parecem
mover os atos humanos. Mas, com Papai Noel, o desejo de bondade e de gratuidade
retorna a nosso coração e nosso horizonte, mesmo que vindo das terras da
fantasia, da irrealidade.
No fundo, sonhamos com velhos bons e sábios, cuja felicidade
venha não de seus êxitos, sua fortuna ou seus poderes, mas de sua capacidade de
levar alegria a todos nós. Por mais que nos digam que isso é tolice,
continuamos a ansiar por encontrar pessoas boas e sermos, nós mesmos, também
bons.
Sim, Papa Noel é realmente uma figura com conotações
claramente consumistas. Sim, é verdade que – no imaginário de nossas crianças –
ele pode tomar o lugar do Menino Jesus. Mas também é verdade que ele representa
o desejo mais puro de bondade e dom de si que existe em nosso coração. O
verdadeiro segredo de Papai Noel é que esse desejo pode se realizar – melhor,
já se realizou na história do mundo e continua se realizando cotidianamente em
nossa vida. Mas, para que isso aconteça, precisamos reconhecer nosso desejo
infinito de gratuidade e de bondade, precisamos tirá-lo da fantasia imaginária
do “bom velhinho” inexistente para encontrá-lo no Deus que existe.
Quando fazemos essa transição, a mercantilização e o
consumismo deixam de ser as palavras mais fortes – e o Papai Noel ganha,
inclusive para as crianças, o justo papel de um símbolo de algo maior, que elas
algumas vezes conseguem nomear, outras vezes não, mas que com certeza
encontrarão ao longo de suas vidas.
E se Papai Noel for um fdp?
Na década de 1980, uma banda de rock punk paulista, os Ratos
de Porão, cantava que “Papai Noel fdp rejeita os miseráveis […] presenteia os
ricos e cospe nos pobres”. A linguagem grosseira chocava muita gente, aliás,
era usada exatamente com esta intenção, mas também este outro lado da moeda
exige uma reflexão. O tempo de Natal também é uma daquelas ocasiões nas quais a
dor pelas nossas injustiças sociais deveria ser mais evidente para todos nós,
uma época de um retomado compromisso de transformação social.
Não se trata aqui de apenas participar de obras
assistenciais para dar presentes e ceias aos necessitados, nesse período. Isso
é bom, mas insuficiente… Também não se trata de um novo moralismo, agora de
cunho político. A questão não é o que fazemos em dezembro ou qual discurso
ideológico abraçamos ao longo do ano. Deus é infinitamente bom para conosco,
para com cada ser humano… Mas delegou-nos a função de sermos bons para com
nossos irmãos mais necessitados.
Quando não procuramos amar gratuitamente nosso irmão mais
necessitado, quando ao longo da vida não nos comprometemos com o bem desse
irmão (inclusive nos aspectos políticos), não conseguimos também descobrir o
amor gratuito de Deus para conosco.
Não se trata de querer, nesta época, fazer o que não se fez
ao longo do ano, isto pode dar a muitos que sofrem um consolo bem-vindo, mas
ainda longe do compromisso evangélico ao qual somos convidados. Papai Noel
parecerá um “velhinho fdp” sempre que aquela bondade que vemos nele parecer uma
ilusão impossível ao longo do ano. Papai Noel será um símbolo alegre e
simpático sempre que ele recordar uma bondade que, mesmo de forma imperfeita,
experimentamos e praticamos no cotidiano.
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