Chamei-vos amigos (3): dentro de um grande mapa de
relações
Deixar-nos ser amados pelos outros é uma maneira de abrir
espaço a Deus na nossa vida. Jesus fez isso até os Seus últimos momentos na
terra.
22/07/2020
Os apóstolos correm aterrorizados quando os soldados prendem
Jesus. Têm medo e recusam-se a testemunhar o aparente fracasso do homem em quem
depositaram toda a confiança. As correntes fazem ruído quando se arrastam, o
frio envolve a noite e o julgamento é claramente injusto. As palavras são
usadas de maneira enganosa e o castigo é desproporcional. Todos os olhos estão
postos no corpo chagado de Cristo, pedindo a Sua morte. Um caminho tortuoso, o
peso da cruz, a multidão hostil que espera ouvir o bater do martelo ... até que
finalmente levantam o corpo do Senhor. Do Seu patíbulo solitário, Jesus observa
com compaixão os que não quiseram acolher Deus feito homem: “Será que existe
alguma dor igual à minha dor” (Lm 1:12).
Tanto física como espiritualmente, durante a Paixão as
“dores foram máximas em Cristo, entre as dores da vida presente”[1];
sabe que nenhum sofrimento Lhe será poupado. No entanto, é surpreendente que
Deus Pai não tenha querido privar o Seu Filho, nem mesmo naqueles momentos, do
consolo da amizade. Ali, ao pé da cruz, João olha com os mesmos olhos que
testemunharam tantos momentos felizes com o Mestre; oferece ao amigo a mesma
presença que os uniu por tantos caminhos. João voltou e procurou Maria; ele,
que ouvira o bater do coração de Jesus na Última Ceia, não quer deixar de
oferecer a Jesus a sua amizade fiel, um simples estar ali. E Nosso
Senhor encontra alívio ao olhar para Maria e o “discípulo que ele amava” (Jo 19:26).
No Calvário, perante a maior demonstração do amor de Deus pelos homens, Jesus,
por Sua vez, recebe esse sinal do amor humano. Talvez na Sua alma ressoem as
palavras que pronunciara horas antes: “Eu vos chamo amigos” (Jo 15,
15).
Afeto nos dois sentidos
Muitas páginas do Evangelho nos falam dos amigos de Jesus.
Embora geralmente não tenhamos os detalhes do processo que deve ter criado
essas profundas relações, as reações que conhecemos deixam claro que ali havia
um verdadeiro afeto mútuo. Percorrendo esses textos, descobrimos que o Senhor
desfrutou de amigos; o Seu coração humano não quis prescindir da reciprocidade
do amor humano: “O Evangelho de Jesus Cristo revela-nos que Deus não consegue
estar sem nós: Ele nunca será um Deus sem o homem”[2].
Por exemplo, sabemos que Jesus sempre Se sentiu acolhido e amado na casa dos
Seus amigos de Betânia. Quando Lázaro morre, as duas irmãs vão ter com o Senhor
com total confiança, mesmo com palavras duras que mostram o íntimo
relacionamento que unia Jesus à família: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu
irmão não teria morrido” (Jo 11:32). O amigo comove-Se com a dor
dessas mulheres e não consegue conter as lágrimas (cf. Jo 11,35).
Naquela casa, Jesus podia descansar, estava à vontade, falava francamente: “que
conversas foram essas da casa de Betânia, com Lázaro, com Marta, com Maria!”[3].
MESMO AOS PÉS DA CRUZ, DEUS PAI NÃO QUIS PRIVAR O SEU
FILHO DO CONSOLO DA AMIZADE
Assim como muitos encontraram em Jesus um verdadeiro amigo,
Ele também desfrutou do que os outros Lhe ofereciam. Sentir-Se-ia, por exemplo,
apoiado e consolado pelas palavras impetuosas de Pedro – que nunca tinha
problemas em manifestar os seus sonhos em voz alta – quando viu que o jovem
rico fechou a sua alma ao amor: “Nós deixamos tudo e te seguimos” (Mt 19,27).
O grande carinho que Pedro sentia pelo Senhor levou-o a querer defender o amigo
com vivacidade, mudando também alguns aspectos da sua vida quando o Senhor, com
a força que somente a confiança permite, o corrigiu (cf. Mt, 16,
21-23; Jo 13,9). Assim como Jesus pôde descansar na força de
Pedro, também encontrou descanso na ternura corajosa de João. Quantas conversas
teria tido com aquele discípulo adolescente! No contexto da Última Ceia, somos
testemunhas de como acolhe sem vergonha o seu gesto cheio de ternura, quando se
recosta sobre o Seu peito com a confiança de alguém que conhece o coração do
amigo. Embora João, durante a agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras, não
tenha conseguido manter-se acordado e tenha fugido quando prenderam o Senhor,
mais tarde soube arrepender-se e voltar. João experimentou que a amizade cresce
muito com o perdão.
“Normalmente, olhamos para Deus como a fonte e o conteúdo da
nossa paz: consideração verdadeira, mas não exaustiva. Não costumamos pensar,
por exemplo, que também "podemos" consolar e oferecer descanso a
Deus”[4].
A verdadeira amizade ocorre sempre nos dois sentidos. Portanto, perante a
experiência pessoal de quanto Deus nos ama, a resposta lógica é querer devolver
esse afeto; abrir as portas da nossa inteligência e tirar os segredos dos
nossos corações. Somente assim podemos dar a Jesus todo o consolo e amor de que
somos capazes para encontrar em nós o que encontrou em Pedro, em João ou nos
Seus amigos de Betânia.
A amizade enriquece o nosso olhar
Se Jesus teve muitos amigos e Deus se deleita com os filhos
de Adão (cf. Pv 8,31), é bom que também sintamos essa
necessidade totalmente humana. Podemos imaginar o vasto mapa das conexões
humanas, em todos os tempos e lugares; milhões de homens e mulheres unidos por
laços que surgem de frequentar a mesma escola, morar no mesmo bairro, ter
outras pessoas em comum, etc. As circunstâncias da nossa vida fizeram-nos
conhecer os nossos amigos e desenvolver esse relacionamento íntimo com eles.
Pensando no início de cada uma das nossas amizades, podemos encontrar toda uma
série de aparentes coincidências que nos uniram. Não podemos deixar de
agradecer a Deus o grande tesouro de ter desejado que, no nosso caminho, não
falte a companhia e o amor dos homens.
JESUS DEIXA-SE QUERER POR SEUS AMIGOS: MARTA, MARIA,
PEDRO, JOÃO... CADA UM A SEU MODO
E no meio desse grande mapa de laços e relacionamentos, de
todas as pessoas com quem nos cruzamos no decurso das nossas vidas, Deus
escolheu alguns para estarem mais próximos de nós. Deus se vale dos nossos
amigos para nos abrir panoramas, para nos ensinar coisas novas ou para
descobrirmos o amor verdadeiro: “Os nossos amigos nos ajudam a compreender
maneiras de ver a vida que são diferentes da nossa, enriquecem o nosso mundo
interior e, quando a amizade é profunda, permitem-nos experimentar as coisas de
um modo diferente do nosso”[5].
O escritor britânico C. S. Lewis – que teve profundas amizades – afirmou, com o
seu sentido de humor peculiar, que a amizade não é um prêmio pelo bom gosto,
mas o meio pelo qual Deus nos revela as belezas dos outros e conhecemos
diferentes visões a respeito do mundo.
“Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20),
disse-nos Jesus, e uma maneira de fazê-lo é através das pessoas que nos amam:
“Os amigos fiéis, que permanecem ao nosso lado nos momentos difíceis, são um
reflexo do carinho do Senhor, da sua consolação e da sua amorosa presença. Ter
amigos ensina-nos a abrir-nos, a compreender, a cuidar dos outros, a sair da
nossa comodidade e isolamento, a partilhar a vida. Por isso, "Ao amigo
fiel não há nada que se compare, pois nada equivale ao bem que ele é" (Sir 6,
15)”[6].
Olhar a amizade nessa perspectiva leva-nos a amar cada vez mais os nossos
amigos, a vê-los como Jesus os vê. E a esse esforço há de unir-se também uma
luta para nos deixarmos chamar amigos, pois não há amizade verdadeira, onde não
há essa reciprocidade de amor[7].
Um dom para um e para o outro
A amizade é um dom imerecido, uma relação cheia de
desinteresse, e é por isso que às vezes podemos cair na armadilha de pensar que
não é tão necessária. Não faltaram aqueles que, por um mal-entendido desejo de
agradar “somente a Deus”, viram com receio e desconfiança o consolo da amizade.
O cristão, no entanto, sabe que tem um único coração para amar ao mesmo tempo a
Deus, aos homens, e para receber o amor dos outros. Numa homilia pregada
durante a festa do Sagrado Coração de Jesus, São Josemaria destacava: “Deus não
nos declara que, em lugar do coração, nos dará uma vontade de puro espírito.
Não. Dá-nos um coração, e um coração de carne, como o de Cristo. Eu não
disponho de um coração para amar a Deus, e de outro para amar as pessoas da
terra. Com o mesmo coração com que amei os meus pais e estimo os meus amigos,
com esse mesmo coração amo a Cristo, e o Pai, e o Espírito Santo, e Santa
Maria. Não me cansarei de repeti-lo: temos que ser muito humanos; porque, de
outro modo, também não poderemos ser divinos”[8].
O NOSSO CAMINHO PARA O CÉU É UM CAMINHO QUE
COMPARTILHAMOS COM OS NOSSOS AMIGOS
Não escolhemos os nossos amigos por motivos de utilidade ou
pragmatismo, pensando que este relacionamento vai produzir algum efeito;
simplesmente amamo-los por si mesmos, por quem eles são. “A verdadeira amizade
– assim como a caridade, que eleva sobrenaturalmente a sua dimensão humana – é
em si mesma um valor: não é um meio ou instrumento”[9].
Saber que a amizade é um dom nos impede de cair em um “complexo de
super-heróis”: de quem pensa que deve ajudar a todos, sem perceber que também
precisa dos outros. O nosso caminho para o céu não é uma lista de objetivos a
serem alcançados, mas um caminho que compartilhamos com os nossos amigos, no
qual uma parte importante será aprender a acolher esse carinho que nos dão.
Portanto, a amizade requer uma boa dose de humildade para nos reconhecermos
vulneráveis e necessitados de afeto humano e divino. O amigo não se perturba
nem se envergonha, não se desculpa nem incomoda. O amigo ama e deixa-se amar.
Foi o que Jesus fez e foi o que os apóstolos fizeram.
Os que são mais introvertidos terão um pouco de dificuldade
em abrir o coração ao outro, porque não sentem necessidade de fazê-lo ou porque
temem não ser compreendidos. Os que são mais extrovertidos talvez compartilhem
muitas experiências, mas podem ter mais dificuldades em enriquecer o seu
próprio mundo com as experiências dos outros. Nos dois casos, todos precisamos
de uma atitude de abertura e simplicidade para permitir que o amigo entre na
sua própria vida e interioridade. Abrir-nos ao dom da amizade, mesmo que custe
um pouco, pode fazer-nos mais felizes.
***
Todos poderíamos fazer uma lista das grandes lições que
aprendemos dos nossos amigos. Com cada um temos um tratamento particular, que
pode iluminar os diferentes recantos da nossa alma. Ao grande consolo de saber
que somos amados e acompanhados, une-se esse desejo de fazer o mesmo pelo
outro. A amizade, disse São João Paulo II, “indica amor sincero, um amor mútuo
que deseja todo o bem para a outra pessoa — um amor que gera união e
felicidade”[10].
Saber-se chamado amigo não pode levar-nos ao orgulho, mas à
gratidão por esse dom e ao desejo de acompanhar o outro no seu caminho para a
felicidade: “Não existe algo que mais atraia o amor do que a pessoa amada
entender quanto o amante aspira por seu amor”[11].
Quando Jesus nos chama amigos, também o faz com esse caráter recíproco. “Jesus
é teu amigo. – O Amigo. – Com coração de carne como o teu. – Com olhos de olhar
amabilíssimo, que choraram por Lázaro... – E, tanto como a Lázaro, te ama a ti”[12],
lembra-nos São Josemaria. E cada amizade é uma ocasião para redescobrir o
reflexo dessa amizade que Cristo nos oferece.
Maria del Rincón Yohn
Foto de Robert Nickson no Unsplash
[1] São
Tomás de Aquino, Summa Theologica, III, q. 46, a. 6
[2] Francisco,
audiência 7/06/2017.
[3] São
Josemaria, carta 24/10/1965.
[4] Javier
Echevarría, Eucaristia e vida cristã
[5] Fernando
Ocáriz, Carta
pastoral 1/11/2019, 8.
[6] Francisco, Christus
Vivit, 151.
[7] Cf.
São Tomás de Aquino, Summa Theologica, II-II, q.23, a.1.
[8] São
Josemaria, É Cristo que passa, 166.
[9] Fernando
Ocáriz, Carta
Pastoral 1/11/2019, 18.
[10] João
Paulo II, Discurso
18/02/1981.
[11] São
João Crisóstomo, 14ª Homilia sobre a Segunda Epístola aos Coríntios.
[12] São
Josemaria, Caminho, n. 422.
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