Devolve-me a alegria de ser salvo
Para poder dar misericórdia, precisamos recebê-la de Deus: mostrar-lhe nossas feridas, deixar-nos curar, deixar-nos amar. Em um mundo “que demasiadas vezes é duro com o pecador e brando com o pecado”, o salmo miserere – tem piedade de mim – é a grande oração do perdão que liberta a alma, que nos devolve a alegria de estar na casa do Pai.
17/02/2019
Miserere mei, Deus, secundum misericordiam tuam –
“Ó Deus, tem piedade de mim, conforme a tua misericórdia” (Sl 51,
3). Ao longo de três milênios, o salmo miserere alimentou a
oração de cada geração do Povo de Deus. As Laudes da Liturgia
das horas o recolhem semanalmente, às sextas-feiras. São Josemaria, e seus
sucessores, o rezam todas as noites[1],
expressando com o corpo o teor das palavras que compõem este “Magnificat da
misericórdia”, como o Papa o chamou recentemente: “o Magnificat de um
coração contrito e humilhado que, no seu pecado, tem a grandeza de
confessar o Deus fiel, que é maior do que o pecado”[2].
Tranquilizaremos na presença dele o nosso coração. Se
o nosso coração nos acusa, Deus é maior que o nosso coração e conhece todas as
coisas
O salmo miserere nos submerge na “mais
profunda meditação sobre a culpa e a graça”[3].
A tradição de Israel o põe nos lábios de Davi, quando o profeta Natã o
repreendeu, por parte de Deus, pelo adultério com Betsabé e o assassinato de
Urias[4].
O profeta não reprovou diretamente o rei pelo seu pecado: serviu-se de uma
parábola[5],
para que fosse o próprio Davi que o reconhecesse. Peccavi Domino,
“pequei contra o senhor” (2 S 12,13): o miserere – tem
misericórdia, misericordiai-me –, que sai
do coração de Davi, expressa também a sua desolação interior e a consciência da
dor que semeou à sua volta. A percepção do alcance do seu pecado –Deus,
os outros, ele mesmo – leva-o a buscar o seu refúgio e
a sua cura no Senhor, o único que pode endireitar as coisas: “tranquilizaremos
na presença dele o nosso coração. Se o nosso coração nos acusa, Deus é maior
que o nosso coração e conhece todas as coisas” (1 Jo 3,20).
Porque não sabem o que fazem
Em um primeiro momento, diante do pecado, vemos sobretudo a
libertação que parece prometer: emancipar-se de Deus, para sermos
verdadeiramente nós mesmos. Mas a aparente libertação – ilusão – se
converte logo depois em uma carga pesada. O homem forte e autônomo, que
acreditava poder silenciar sua consciência, chega cedo ou tarde a um momento em
que se desarma: a alma não pode mais, “não lhe bastam as explicações habituais,
não lhes satisfazem as mentiras dos falsos profetas”[6].
É o início da conversão, ou de uma das “sucessivas conversões” da nossa vida,
que são “ainda mais importante e mais difíceis”[7].
O processo nem sempre é tão rápido como na história do rei
Davi. A cegueira que precede e acompanha o pecado, e que cresce com o próprio
pecado, pode prolongar-se depois: enganamo-nos com justificativas, dizemo-nos
que a coisa não tem tanta importância… É uma situação que também encontramos
com frequência ao nosso redor, “Num mundo que demasiadas vezes é duro com o
pecador e brando com o pecado”[8]:
duro com o pecador, porque em sua conduta se percebe claramente como o pecado é
corrosivo, mas brando com o pecado, porque reconhecê-lo como tal significaria
proibir-se certas “liberdades”. Todos estamos expostos a este risco: ver o feio
do pecado nos outros, sem condenar o pecado em nós mesmos. Então não só falta
misericórdia: fazemo-nos também incapazes de recebê-la.
O ofuscamento do pecado e da tibieza tem uma dimensão de
autoengano, de cegueira desejada – queremos não
ver, fingimos que não vemos –, e por isso requer o
perdão de Deus. Assim Jesus vê o pecado quando pede na Cruz: “Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem” (Lc 23,34). Perderíamos a
profundidade dessa palavra do Senhor se a víssemos como uma mera desculpa
amável, que ocultasse o pecado. Quando nos afastamos de Deus, sabemos e não
sabemos o que fazemos. Damo-nos conta de que não agimos bem, mas
esquecemos que por esse caminho não vamos a nenhuma parte. O Senhor se
compadece de ambas as coisas, e também da profunda tristeza na qual ficamos
depois. São Pedro sabia e não sabia o que fazia quando negava ao Amigo. Depois
“chorou amargamente” (Mt 26, 75), e as lágrimas lhe deram um olhar
mais limpo, e mais lúcido.
“A misericórdia de Cristo não é uma graça fácil de obter,
não supõe uma banalização do mal. Cristo carrega no seu Corpo e na sua Alma
todo o peso do mal, toda a sua força destruidora. Ele queima e transforma o mal
no sofrimento, no fogo do seu amor sofredor”[9].
Sua palavra de perdão na Cruz – “não sabem o que fazem”– deixa
entrever seu projeto misericordioso: que voltemos à casa do Pai. Por isso
também na Cruz nos confia a proteção de sua Mãe.
A nostalgia da casa do Pai
“De certo modo, a vida humana é um constante retorno à casa
do nosso Pai”[10].
As conversões começam e recomeçam com a constatação de que ficamos de algum
modo sem lar. O filho pródigo sente a “saudade do pão fresco que os
assalariados de sua casa, a casa de seu pai, comem no café da manhã. A saudade,
a nostalgia é um sentimento poderoso. Tem a ver com a misericórdia, porque nos
alarga a alma (...). Em tal horizonte amplo da saudade, este jovem – diz o
Evangelho – caiu em si e sentiu-se miserável. E cada um de nós pode procurar ou
deixar-se levar àquele ponto em que se sente mais miserável. Cada um de nós tem
o seu segredo de miséria dentro…É preciso pedir a graça de encontrá-lo”[11].
Fora da casa do pai –repensa o filho
pródigo – está na verdade fora de sua própria casa. A
redescobre: o lugar que parecia um obstáculo para sua realização pessoal se
revela como o lar que nunca devia ter abandonado. Também aqueles que estão
dentro da casa do pai podem estar com o coração fora. Foi o que aconteceu com o
irmão mais velho da parábola: mesmo que não tivesse ido embora, seu coração
estava longe. Para ele também valem essas palavras do profeta Isaías, às quais
Jesus se referirá em sua pregação: “Este povo (...) me honra com os lábios, mas
seu coração está longe de mim” (Is 29, 13[12]).
O irmão mais velho nunca diz ‘pai’, nunca diz ‘irmão’, só pensa em si mesmo,
gaba-se de ter permanecido sempre ao lado do pai e de o ter servido (...).
Coitado do pai! Um filho foi embora e o outro nunca permaneceu realmente perto
dele! O sofrimento do pai é como o do Deus, o de Jesus quando nos afastamos ou
porque vamos embora ou porque estamos perto mas sem o estar deveras”[13].
Haverá momentos de nossa vida em que, mesmo que talvez não nos tenhamos
afastado como o filho mais novo, perceberemos mais fortemente até que ponto
somos como o filho mais velho. São momentos nos quais Deus nos dá mais luz: nos
quer mais perto de seu coração. São momentos de nova conversão.
Quando a vida interior se fecha nos próprios
interesses, deixa de haver espaço para os outros (...) já não se ouve a voz de
Deus
Na conversa entre o irmão mais velho e o pai[14],
chama a atenção, diante da ternura do coração do pai, a dureza do coração do
filho: sua resposta amarga mostra como havia perdido a alegria de estar na casa
de seu pai. Por isso mesmo havia perdido a capacidade de alegrar-se com ele e
com seu irmão. Tinha somente reprovações, tanto para um como para o outro: só
via suas falhas. “Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses,
deixa de haver espaço para os outros (...) já não se ouve a voz de Deus, já não
se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem.
Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes”[15].
O pai se surpreende também com essa dureza, e tenta abrandar
o coração daquele filho que, mesmo que tivesse permanecido com ele,
suspirava –talvez sem ser ele próprio muito consciente – pelo
egoísmo insensato do irmão menor. O seu era um egoísmo mais “razoável”, mais
sutil, e talvez mais perigoso. O pai tenta lhe dar explicações: “era preciso
festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver” (Lc 15,
32). Com fortaleza de pai e ternura de mãe, lhe repreende, como dizendo: Meu
filho, deverias te alegrar: o que acontece em teu coração? “Também ele tem
necessidade de descobrir a misericórdia do pai”[16]:
tem necessidade de descobrir essa saudade da casa do Pai, essa dor suave que
nos faz voltar.
Devolve-me a alegria de tua salvação
Tibi, tibi soli peccavi et malum coram te feci, – “contra
ti, só contra ti eu pequei, eu fiz o que é mal a teus olhos” (Sl 51,
6). O Espírito Santo, que “Ele convencerá o mundo quanto ao pecado”[17],
é quem nos faz ver essa saudade, esse mal-estar, não é só um desequilíbrio
interior, tem sua origem mais profunda em uma relação ferida: nos afastamos de
Deus, lhe deixamos só, e nos deixamos sós. “In multa defluximus”[18],
escreve Santo Agostinho: quando nos afastamos de Deus, nos dispersamos em
muitas coisas, e nossa casa fica deserta[19].
O Espírito Santo é quem nos move a voltar a Deus, que é o único que pode
perdoar os pecados[20].
Como pairava sobre as águas desde o início da criação[21],
assim paira agora sobre as almas. Ele moveu à mulher pecadora a aproximar-se,
sem palavras, de Jesus, e a misericórdia de Deus a acolheu sem que os
convidados entendessem o porquê das lágrimas, o perfume, os cabelos[22] :
Jesus, radiante, disse que a ela se havia perdoado muito porque havia amado
muito[23].
A saudade da casa do Pai é um desejo de proximidade, de
misericórdia divina, necessidade de voltar a pôr “o coração em carne viva,
humana e divinamente transido de um amor rijo, sacrificado, generoso”[24].
Se nos aproximamos, como o filho mais novo, até o regaço do Pai, ali
compreenderemos que o remédio para nossas feridas é Ele mesmo, o próprio Deus.
Entra então em cena um “terceiro filho”: Jesus, que nos lava os pés, Jesus, que
se fez servo por nós. Ele é “o que sendo de condição divina, ‘não considera
privilégio ser igual a Deus... aniquilou-se a si mesmo, tomando a condição de
servo’ (Fl 2, 6-7). Este Filho-Servo é Jesus! É a extensão dos
braços e do coração do Pai: Ele acolheu o pródigo e lavou os seus pés sujos,
Ele preparou o banquete para a festa do perdão”[25].
Cor mundum crea in me, Deus –“Cria
em mim, ó Deus, um coração puro” (Sl 50, 12). O salmo volta uma e
outra vez à pureza do coração[26].
Não é questão de narcisismo, nem de escrúpulo, porque “o cristão não é nenhum
colecionador maníaco de uma folha de serviços imaculada”[27].
É questão de amor: o pecador arrependido está disposto a fazer o necessário
para curar seu coração, para recuperar a alegria de viver com Deus. Redde
mihi laetitiam salutaris tui – “Devolve-me a alegria de
ser salvo” (Sl 51, 14): quando se veem assim as coisas, a confissão
não é uma questão fria, como uma espécie de trâmite administrativo. “Pode
fazer-nos bem questionarmo-nos: depois de me ter confessado, festejo? Ou passo
rapidamente para outra coisa, como quando, depois de ter ido ao médico, vemos
que as análises não deram um resultado assim tão ruim e fechamo-las de novo no
envelope, e passamos a outra coisa”[28].
Quem festeja, aprecia, agradece o perdão. E vê então a
penitência como algo mais que uma mera diligência para restabelecer a justiça:
a penitência é uma exigência do coração, que experimenta a necessidade de
respaldar suas palavras –pequei, Senhor, pequei – com
a vida. Por isso, São Josemaria aconselhava a todos a ter “espírito de
penitência”[29].
“Um coração contrito e humilhado” (Sl 51, 19) compreende que é
necessário um caminho de retorno, de reconciliação, que não se faz da noite
para o dia. Como é o amor que deve ser recomposto, para adquirir uma nova
maturidade, o remédio é o próprio amor: “amor com amor se paga”[30].
A penitência, pois, é o carinho que leva a querer sofrer – alegres,
sem nos dar importância, sem “coisas estranhas[31]” – por
tudo o que fizemos Deus e os outros sofrerem. Esse é o sentido de um dos modos
que o Ritual propõe ao sacerdote para se despedir do penitente após a
absolvição, o confessor nos diz: “tuas boas obras e tua paciência nas
adversidades sirvam de remédio para teus pecados”[32].
Além disso “que pouco é uma vida para reparar tudo isso!”[33] A
vida inteira é alegre contrição: com uma dor confiada – sem
angústias, sem escrúpulos – porque cor contritum et
humiliatum, Deus, non despicies (Sl 51 , 19) – “Não
desprezará Deus um coração contrito e humilhado”.
Texto: Carlos Ayxelá
Fotos: Santiago González Barros
[1] Cfr.
A. Vázquez de Prada, O Fundador do Opus Dei, tomo III,
Quadrante, Madrid 2003, p. 395.
[2] Francisco,
1ª meditação no Jubileu dos sacerdotes, 2-VI-2016.
[3] São
João Paulo II, Audiência, 24-X-2001.
[4] Cfr.
2 S 11, 2 ss.
[5] Cfr.
2 S 12, 2-4.
[6] São
Josemaria, Amigos de Deus, 260.
[7] São
Josemaria, É Cristo que passa, 57.
[8] Francisco,
Homilia, 24-XII-2015.
[9] Card.
Joseph Ratzinger, Homilia, Missa pro eligendo pontifice,
18-IV-2005.
[10] É
Cristo que passa, 64.
[11] Francisco,
1ª meditação no Jubileu dos sacerdotes, 2-VI-2016.
[12] Cfr.
Mt 15,8.
[13] Francisco,
Audiência, 11-V-2016.
[14] Cfr.
Lc 15,28-32.
[15] Francisco,
Ex. Ap. Evangelii gaudium (24-XI-2013), 2.
[16] Francisco,
Audiência, 11-V-2016.
[17] Cfr.
Jn 16,8. Assim traduz São João Paulo II essas palavras da oração sacerdotal de
Jesus, sobre as quais meditou profundamente na encíclica Dominum et
vivificantem (18-V-1986), 27-48.
[18] Santo
Agostinho, Confissões X.29.40.
[19] Cfr.
Mt 23,38.
[20] Cfr.
Lc 7,48.
[21] Cfr.
Gn 1,2.
[22] Cfr.
Lc 7,36-50.
[23] Cfr.
Lc 7,47.
[24] Amigos
de Deus, 232.
[25] Francisco,
Angelus, 6-III-2016.
[26] Cfr.
Sal 50 (51), 4, 9, 11, 12, 19.
[27] É
Cristo que passa, 75.
[28] Francisco,
Homilia, 24-III-2016.
[29] Cfr.
São Josemaria, Forja, 784; Amigos de Deus, 138-140, sobre o
espírito de penitência, e suas diversas manifestações.
[30] Forja,
442.
[31] Forja,
60.
[32] Ritual
da Penitência, 104.
[33] São
Josemaria, Via Sacra, VII estação.
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