TOLERÂNCIA EM UM MUNDO PLURAL
Dom João Santos Cardoso
Arcebispo de Natal (RN)
No mundo contemporâneo, marcado pela convivência de
múltiplas culturas, religiões e ideologias, a tolerância emerge como uma
virtude indispensável para promover o convívio pacífico, especialmente diante
do agravamento das polarizações ideológicas amplificadas pelas novas mídias de
comunicação e pelo controle exercido pelas Big Techs. Com base nas reflexões de
Tomáš Halík, em Quero que sejas. Podemos acreditar no Deus do Amor? (2018),
pode-se entender a tolerância ocidental moderna como um caminho para vivenciar
o respeito ao diferente e desenvolver a capacidade de acolher o outro.
A tolerância, conceito típico do Ocidente moderno, enraizado
no Iluminismo e nos conflitos religiosos decorrentes da Reforma Protestante,
foi explorado por John Locke e está associada à ideia de “suportar” ou
“aguentar” aquilo que nos desafia, como observa Tomáš Halík. Embora tenha se
mostrado eficaz na redução de conflitos abertos, essa forma de tolerância
muitas vezes não resolve o problema de fundo, resultando em guetos culturais
que promovem apenas um convívio lado a lado, sem construir comunidades verdadeiras.
No mundo contemporâneo, transformado em uma “aldeia global”, essa abordagem
torna-se insuficiente, pois a proximidade inevitável entre pessoas e culturas
intensifica os conflitos e demanda um modelo que vá além da mera convivência,
promovendo o respeito mútuo e o acolhimento genuíno da alteridade.
A tolerância de Locke, como lembra Ulrich Beck, funcionou em
contextos religiosos homogêneos, mas se mostra insuficiente no cenário
globalizado e multicultural. A “aldeia global” exige regras que vão além do
simples “não perturbar os círculos dos outros”. Precisamos de um modelo que
promova o diálogo e a cooperação genuína entre culturas e tradições diversas.
O multiculturalismo ocidental, fundamentado na tolerância,
enfrenta sérias dificuldades em sociedades marcadas por conflitos religiosos e
culturais intensos. Halík critica o que chama de “imperialismo do amor”, uma
postura que, em nome de uma fraternidade universal, busca minimizar as
diferenças ao enfatizar apenas as semelhanças. Um exemplo disso é o conceito de
“cristãos anônimos” de Karl Rahner, que, embora reconheça a bondade no outro e
sugira semelhanças entre tradições religiosas, pode ser percebido como uma
forma de arrogância. Essa abordagem, ao tentar enquadrar outras tradições nos
moldes do cristianismo, muitas vezes desconsidera a singularidade e a autonomia
espiritual do outro, reduzindo a riqueza da diversidade a uma uniformidade
superficial. Em vez de promover um diálogo autêntico e respeitoso, ela pode ser
interpretada como desrespeitosa, negando a alteridade e o direito do outro a
manter sua identidade própria.
A tolerância ocidental, em sua forma iluminista, muitas
vezes cai no relativismo, resumido no mantra “cada um tem sua própria verdade”.
No entanto, Halík nos adverte que esse relativismo pode obscurecer o verdadeiro
encontro com o outro. A verdade, como valor supremo, exige uma busca ativa, que
respeite as diferenças e permita o crescimento mútuo.
O modelo ideal de convivência deve ir além da mera
tolerância, que muitas vezes se limita a uma aceitação passiva, e do chamado
“imperialismo do amor”, que tenta homogeneizar as diferenças em nome de uma
fraternidade universal. A tradição cristã propõe algo mais profundo: o amor aos
inimigos. Esse amor, incondicional e universal, não busca assimilar ou negar o
outro, mas reconhecê-lo em sua dignidade e alteridade.
Esse desafio, mais complexo do que parece, exige um respeito
genuíno pela autonomia espiritual e cultural do próximo, como enfatiza o
filósofo Emmanuel Lévinas. O verdadeiro amor não reduz o outro à nossa visão ou
entendimento, mas valoriza a sua singularidade. Como sugere Tomáš Halík, um
amor autêntico é aquele que oferece espaço para o outro, respeitando sua
autonomia e promovendo uma integração que acolha as diferenças sem anulá-las.
Esse tipo de amor, fundamentado no respeito e na confiança mútuos, é indispensável
para a construção de uma convivência verdadeiramente humana. Em última análise,
no mundo atual, tão interconectado quanto vulnerável aos conflitos, é
imperativo ir além da tolerância entendida como mera “paz armada”. Precisamos
de uma ética do amor que reconheça o outro em sua singularidade e dignidade,
construindo pontes que integrem as diferenças sem apagá-las.
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