Arquivo 30Giorni n. 03 - 2000
“Só o fato do perdão permite o reconhecimento do pecado”
Respostas do Cardeal Joseph Ratzinger às perguntas dos jornalistas durante a conferência de imprensa
No ambiente eclesiástico há dúvidas sobre a eficácia
da mensagem que está sendo lançada. Dizem que o nosso é o tempo da
superficialidade e da pressa. Muitos crentes não sabem nada sobre teologia. O
nosso também é o tempo das simplificações jornalísticas por vários motivos. Os
fiéis dizem: «Se a Igreja de hoje se arrepende dos erros da Igreja do passado,
a Igreja de amanhã poderá arrepender-se dos erros da Igreja de hoje. Então, que
credibilidade devemos dar à Igreja hoje?
JOSEPH RATZINGER: A Igreja de hoje, com este documento, não condena a Igreja do
passado; ela reconhece as raízes das suas próprias deficiências do passado, e o
faz precisamente para lançar luz sobre a situação atual, sobre a necessidade de
se arrepender, de se converter.
A Igreja tem plena consciência de que o pecado se encontra dentro dela e sempre
lutou contra a ideia de uma Igreja somente de santos. Sabemos das grandes lutas
contra os donatistas, os cátaros, etc. Justamente para nos fazer reconhecer isso,
o Senhor está no barco com os pecadores desde o início.
Os Evangelhos também recordam o pecado da queda de Pedro. Esta é uma confissão
de pecado repetido, o que deve ter feito Pedro corar. Nós o encontramos no
Evangelho de Marcos, que foi inspirado pelo próprio São Pedro, e é a confissão
mais dura desse pecado.
Portanto, a Igreja de hoje, com este ato de arrependimento, não diz que o pecado ficou no passado e que somos puros, e depois espera até amanhã que nossos pecados sejam descobertos, mas diz: no coração da Igreja, e sobretudo em mim, encontra-se o pecado, e para que a Igreja seja penetrável pela graça divina, eu mesmo devo abrir-me a esta graça e confessar publicamente que os pecados, já enraizados no passado, constituem o meu presente. Contudo, o Senhor sabe agir e faz o bem, por meio da Igreja. Este pequeno navio sempre será seu, e até mesmo o campo com as ervas daninhas continuará sendo seu. Mesmo que as ervas daninhas sejam muitas, mesmo que a rede contenha peixes ruins e inferiores, ela continua sendo sua. Reconhecer o pecado é um ato de sinceridade por meio do qual podemos fazer as pessoas entenderem que o Senhor é mais forte que nossos pecados.
Vem à mente uma anedota contada sobre o Cardeal Consalvi, Secretário de Estado de Pio VII. Foi-lhe dito: "Napoleão pretende destruir a Igreja". O cardeal responde: "Não conseguirá, nem mesmo nós conseguimos destruí-lo."
Como pode esta grande cerimónia, esta confissão de mea culpa, ajudar
também o impulso de ré-evangelização com que se abre o terceiro milénio?
O primeiro dos pecados é a divisão entre os cristãos, por isso, há poucos
dias, no Sinai, o Papa reiterou com força a necessidade deste diálogo com os
chefes de outras Igrejas e com os teólogos de outras Igrejas para reestudar as
formas do ministério papal. Depois de Ut unum sint, o que
foi feito em termos concretos para esse diálogo, ou o que será feito para
garantir que haja esse diálogo com os chefes de outras Igrejas cristãs, para
rever as formas de exercício do ministério papal?
RATZINGER: Provavelmente não sou a pessoa mais competente para responder à segunda pergunta, mas refiro-me imediatamente ao primeiro ponto.
Penso que este ato de purificação da memória, de autopurificação, de abertura à
graça do Senhor, que nos impele a agir bem, serve também para nos tornar
credíveis diante do mundo.
Todos veem e sabem, mesmo sem a nossa confissão, que fizemos o mal e que somos
pecadores, mas também veem que existe o dom do perdão e, portanto, existe uma
força de reconciliação que vai além das deficiências permanentes da humanidade.
Penso que a sinceridade desta confissão, a sinceridade em nos apresentarmos não
como se fôssemos os grandes heróis do mundo, mas como pessoas de boa vontade,
ainda que pecadoras, com a mensagem que não é feita por nós, mas que vem do
Outro, pode provocar mais eficazmente as forças de reconciliação de que o
mundo, em toda a parte, tanto necessita. Parece-me, portanto, que a
dimensão do perdão e da reconciliação, a capacidade de renovação depois de cada
pecado, brilha intensamente neste ato. Certamente será um elemento importante
da evangelização, que é sempre reconciliação com Deus e entre os homens. Quando
os homens se reconciliam com Deus, eles também encontram paz entre si. São
Paulo, na segunda carta aos Coríntios, exorta-nos, com o grito do evangelista:
«Reconciliai-vos com Deus!»; «Reconciliai-vos com Deus!» ( 2 Cor 5,
20). Este é o sinal de reconciliação oferecido a todos nós. Quanto ao
diálogo ecumênico, vimos no Sinai os dois aspectos da situação atual: por um
lado, a grande e comovente hospitalidade e amizade dos monges, que nos faz
entender que são verdadeiramente pessoas que vivem no espírito de Cristo, e por
outro lado, a barreira que, por enquanto, não nos permite rezar juntos com o
Papa. Vimos, portanto, a situação atual em seu drama e em suas esperanças.
Posso dizer que tanto o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos
Cristãos como cada uma das conferências episcopais, com os seus instrumentos,
fazem todo o possível para manter vivo o diálogo com os irmãos separados e para
favorecer o encontro mútuo, onde, juntamente com as memórias do passado, surge
o espírito de reconciliação, de que todas as partes têm necessidade; a
purificação da memória; a necessidade de um novo começo. Somente com a
disposição de nos purificarmos desse passado, daquilo que dissemos uns contra
os outros, poderemos nos abrir para uma renovação da reconciliação à qual todos
aspiramos.
Penso, portanto, que tanto do ponto de vista institucional como do ponto de
vista das pessoas envolvidas, fazemos todo o possível para aderir ao gesto do
Senhor de convidar todos para uma mesa comum.
Você acha que este documento é mais amplo do que aquele intitulado Nós Lembramos: Uma Reflexão sobre a Shoah ? Aquele documento falava dos pecados dos irmãos e irmãs da Igreja, mas não da Igreja. Você acha que este documento é uma confissão mais ampla? Ratzinger: São dois documentos muito diferentes, tanto em termos de autoridade (era um documento da Santa Sé) quanto em termos de assunto (era voltado para o problema deste passado recente). O documento da Comissão Teológica Internacional, como foi dito, é um documento de teólogos, não do Magistério. Sua finalidade é acompanhar e aprofundar com uma reflexão teológica o fato deste ato de penitência do Santo Padre. Parece-me que é um serviço da comunidade teológica aos cristãos, para que possam ler e interpretar melhor a profundidade e a extensão deste gesto, sem qualquer pretensão de ser completo. Muito mais poderia ser dito, mas ele oferece uma chave para entender melhor as necessidades pastorais da Igreja hoje.
O temporalismo da Igreja nas
formas do passado constitui uma falha? Ratzinger: Falando do
chamado temporalismo, eu havia mencionado Dante, que vê de Constantino a
Filipe, o Belo, uma cadeia de pecados na aliança com o poder. Geralmente
sabemos bem que a relação entre a Igreja que vive no mundo e o poder temporal
apresenta problemas e, portanto, sempre implica a possibilidade de posições
errôneas, mas, ao mesmo tempo, devemos confessar que a Igreja (e este para mim
é o sinal decisivo) sempre permaneceu a Igreja dos mártires (os mártires são,
portanto, a verdadeira apologia da Igreja), apesar dos pecados que todos nós
conhecemos. A Igreja permaneceu unida ao Senhor crucificado e não se opõe
fundamentalmente ao Estado, mas reconhece o Estado. Hoje lemos no
Evangelho: “Dai a César o que é de César” ( Mt 22,21). A
Igreja sempre reconheceu o Estado como uma ordem necessária a ser respeitada.
Ao mesmo tempo, porém, ele também reconheceu que há um limite para o poder
imperial mundano, contra o qual a Igreja deve se opor ao testemunho do
martírio. Apesar de todas as deficiências ocorridas, a Igreja, por um lado,
sempre soube reconhecer os direitos do Estado, mas também sempre teve, com a
graça do Senhor, a força para o martírio. Essa dinâmica de pedir
perdão, de reconhecer pecados, deve ser acompanhada de perdão. Então, como
podemos saber que a Igreja recebe perdão dessa confissão?
RATZINGER: Está na consciência fundamental da Igreja que o Misereator responde
ao rito litúrgico do Confiteor . É uma oração que contém a
certeza de que se a nossa confissão for sincera o Senhor nos aceita. É a
certeza do perdão que permite a franqueza da confissão. Se não há perdão, o que
resta? Até o pecado não tem mais explicação e talvez possamos encontrar refúgio
na psicanálise para devolver a paz à nossa alma abatida. Parece-me, ao
contrário, que só o perdão, o fato do perdão, permite a franqueza de reconhecer
o pecado. Além disso, a certeza de que Deus nos perdoa, nos renova, é parte
essencial do Evangelho.
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