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sexta-feira, 14 de março de 2025

O cristianismo burguês (I)

O cristianismo burguês (Opus Dei)

O cristianismo burguês

Ao comparar o reino de Deus com um tesouro pelo qual se vende tudo, Jesus desvincula o cristianismo de valores como a segurança ou a estabilidade, para centrá-lo no risco, na missão, na aventura de melhorar o mundo.

12/09/2023

Numa das suas Cartas, São Josemaria faz um diagnóstico que continua sendo atual: “É frequente, de fato, mesmo entre católicos que parecem responsáveis e piedosos, o erro de pensar que só estão obrigados a cumprir seus deveres familiares e religiosos, e não querem ouvir falar de deveres cívicos”[1]. Depois, esclarece que, habitualmente, “não se trata de egoísmo: é simplesmente falta de formação, porque nunca ninguém lhes falou claramente que a virtude da piedade - parte da virtude cardeal da justiça - e o sentido da solidariedade cristã se concretizam também neste estar presente, neste conhecer e contribuir para resolver os problemas que interessam a toda a comunidade”[2].

Um cristianismo individualista?

Estas faltas de formação da consciência cristã não se devem apenas a problemas na catequese ou na educação religiosa, mas também são um resultado das transformações mentais e sociais que surgiram com os tempos modernos. Seriam, em grande medida, consequência de uma nova cultura que as pessoas foram adquirindo por osmose, desde o nascimento.

É assim que Bento XVI explica na sua encíclica Spe Salvi quando se pergunta como surgiu na modernidade a ideia de que “a mensagem de Jesus é estritamente individualista e dirigida somente ao indivíduo?”[3] ; ou, também, como “ é que se chegou a interpretar a 'salvação da alma' como fuga da responsabilidade geral e, consequentemente, a considerar o programa do cristianismo como busca egoísta da salvação”[4]. Ambas as ideias, explica ele, seriam o resultado de uma secularização da noção cristã de esperança. O que aconteceu é que nos tempos modernos as grandes possibilidades abertas pelo progresso científico e pelas novas formas de organização social levaram à crença de que o ser humano poderia restaurar, apenas por seus próprios meios, o “paraíso perdido”. Desta forma, a redenção do mundo tornou-se algo que já não se esperava, “da fé, mas da ligação recém-descoberta entre ciência e prática”[5]: a ciência e as estruturas políticas iriam trazer-nos o céu que a religião só parecia capaz de prometer para a outra vida.

Neste processo de secularização, a religião não desaparece, mas é privatizada; isto é, está confinada à esfera da vida individual. No âmbito público e social, Deus não parece mais necessário para enfrentar os desafios humanos. Além disso, com o passar do tempo, chega-se a afirmar que a restrição da religião à vida privada garantirá a paz nas sociedades com cidadãos que professem religiões diferentes ou que são ateus. Esta forma de compreender o lugar da religião na vida social tem sido também frequentemente interiorizada pelos próprios fiéis, a ponto de levá-los a adotar atitudes que se tornaram alvo de uma das críticas mais comuns à religião nos tempos modernos. Segundo esta crítica, a esperança cristã consistiria num “puro individualismo, que teria abandonado o mundo à sua miséria e teria se refugiado numa salvação eterna exclusivamente privada”[6]. Os cristãos são censurados porque o que realmente importa para eles não é esta vida, mas garantir um lugar na vida futura.

No entanto, nada poderia estar mais longe da realidade do Evangelho, que nos torna próximos de qualquer pessoa necessitada (cf. Lc 10,36-37). A nossa fé “implica sempre um desejo profundo de mudar o mundo, de transmitir valores, de deixar algo melhor quando passamos pela terra”[7]. São Josemaria dizia-o com força: o cristão deve se esforçar “para que haja cada dia menos pobres, menos ignorantes, menos almas sem fé, menos desesperados, menos guerras, menos insegurança, mais caridade e mais paz”[8]. Ao mesmo tempo, como recordou o Papa Francisco, a Igreja não é uma ONG[9] e deve estar alerta para evitar as diversas formas de mundanização, colocando sempre Cristo no centro da sua atividade – inclusive a social.

O apelo a contribuir com o desenvolvimento do reino de Deus necessita, portanto, harmonizar dois princípios: por um lado, a consciência de que este reino é um dom[10], e não algo que possamos alcançar com as nossas próprias forças; por outro, a convicção de que Deus não é indiferente ao nosso desejo de dar-Lhe cada vez mais espaço em nossa vida. Está verdadeiramente ao nosso alcance ajudar a “abrir o mundo para que Deus possa entrar: a verdade, o amor e o bem. (…) Podemos libertar as nossas vidas e o mundo de intoxicações e contaminações que poderiam destruir o presente e o futuro”[11]. Além disso, ainda que “aparentemente não consigamos ou nos encontremos impotentes perante a superioridade das forças hostis”[12], a virtude da esperança permite-nos experimentar que é Deus quem, em última instância, guia a História.

As crises mundiais

Desde o início do Opus Dei, São Josemaria convidava aqueles que eram próximos a ele a dedicarem a sua própria vida ao trabalho pelo Reino de Deus, com aquele lema ardente: Regnare Christum volumus! Justamente numa homilia sobre a esperança cristã escreveu: “Não nos criou o Senhor para construirmos aqui uma Cidade definitiva, porque este mundo é caminho para o outro, que é morada sem pesar. No entanto, os filhos de Deus não devem desinteressar-se das atividades terrenas, em que Deus os coloca para santificá-las. (…) Esta tem sido a minha pregação constante desde 1928: urge cristianizar a sociedade; levar a todos os estratos desta nossa humanidade o sentido sobrenatural, de modo que todos nos empenhemos em elevar à ordem da graça os afazeres diários, a profissão ou o ofício. Desta forma, todas as ocupações humanas se iluminam com uma esperança nova”[13].

Para conseguir isso, é decisivo que Cristo reine no coração de cada pessoa, pois o reino de Deus não se reduz a uma forma concreta de organização social, nem é o resultado de um conjunto de estruturas humanas[14]. Para que os cristãos sejam sal e fermento na sociedade civil, eles devem primeiro cultivar seu relacionamento com Deus. “O reino de Cristo deve se estabelecer antes de tudo nos corações (...), mas não para que cada um dê glória a Deus independentemente dos outros, mas em comunhão com eles na Igreja (...) e na própria sociedade civil, onde os cristãos são chamados a ser sal e fermento (...). Cristo só reina plenamente no coração de quem quer que Ele reine também na sociedade em que vive”[15].

Um ponto conhecido de Caminho expressa esta convicção de forma significativa: “Um segredo. Um segredo em voz alta: estas crises mundiais são crises de santos. Deus quer um punhado de homens “seus” em cada atividade humana. Depois... ‘pax Christi in regno Christi’ - a paz de Cristo no reino de Cristo”[16]. Fica claro que São Josemaria não concebia a vida cristã como algo meramente íntimo, mas como um impulso que abrange todas as dimensões humanas, incluindo as sociais[17]. Em outro lugar escreve: “Esta é a tua tarefa de cidadão: contribuir para que o amor e a liberdade de Cristo presidam a todas as manifestações da vida moderna - a cultura e a economia, o trabalho e o descanso, a vida de família e o convívio social”[18]. Ao respeitar a liberdade dos outros, os cristãos são chamados a levar a luz do Evangelho a todos os cantos.

O núcleo da mensagem do Opus Dei, a busca de Deus no trabalho e na vida cotidiana, pressupõe que o mundo é um lugar de encontro com Deus. O Concílio Vaticano II recorda-nos isto ao ensinar que os cristãos são chamados a redimir as estruturas temporais a partir de dentro, por meio do trabalho profissional e da colaboração com outros cidadãos[19]. Na raiz deste ensinamento está a verdade da criação: “Se o mundo e tudo o que nele existe - exceto o pecado - é bom, porque é obra de Deus Nosso Senhor, o cristão, esforçando-se continuamente por evitar ofensas a Deus - um luta positiva de amor - ,tem que se dedicar a tudo o que é terreno, lado a lado com os demais cidadãos; deve defender todos os bens derivados da dignidade da pessoa. E há um bem que deves sempre procurar especialmente: o da liberdade pessoal”[20].

Ao falar do trabalho como lugar de encontro com Deus, São Josemaria especificava que se trata de “santificar o seu trabalho, santificar-se no trabalho e santificar os outros com o trabalho”[21]. O trabalho configura e transforma tanto quem o realiza quanto a realidade sobre a qual atua, ou seja, o mundo[22]. Neste sentido, pode-se dizer que a santificação do trabalho é, ao mesmo tempo, o caminho para a pessoa se aproximar de Deus e resgatar estruturas temporárias: colaborar nesse movimento pelo qual o Senhor atrai todos a si ( cf. Jo 12,32).

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Notas:

[1] São Josemaria, Carta 3, n. 46.

[2] Ibidem.

[3] Bento XVI, Spe Salvi, n. 16

[4] Ibidem, n. 16.

[5] Ibidem, n. 17.

[6] Ibidem, n. 13.

[7] Francisco, Evangelii gaudium, n. 183.

[8] São Josemaria, Carta 8, n. 1.

[9] Francisco, Homilia, 16/05/2020.

[10] Spe Salvi, n. 35.

[11] Ibidem.

[12] Ibidem.

[13] São Josemaria, Amigos de Deus, n. 210.

[14] Cfr. Spe Salvi nn. 24-25.

[15] E. Burkhart – J. López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de São Josemaria, Rialp, Madrid, 2011, vol. I, pp. 411-412.

[16] São Josemaria, Caminho, n. 301.

[17] Cfr. E. Burkhart – J. López, Vida cotidiana y santidad, vol. I, p. 412.

[18] São Josemaria, Sulco, n. 302.

[19] Cfr. Lumen Gentium, n. 36.

[20] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 184.

[21] São Josemaria, Entrevistas, n. 55.

[22] Cfr. São João Paulo II, Laborens Exercens, n. 5-6.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/o-cristianismo-burgues/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF