O cristianismo burguês
Ao comparar o reino de Deus com um tesouro pelo qual se
vende tudo, Jesus desvincula o cristianismo de valores como a segurança ou a
estabilidade, para centrá-lo no risco, na missão, na aventura de melhorar o
mundo.
12/09/2023
Numa das suas Cartas, São Josemaria faz um diagnóstico que
continua sendo atual: “É frequente, de fato, mesmo entre católicos que parecem
responsáveis e piedosos, o erro de pensar que só estão obrigados a cumprir seus
deveres familiares e religiosos, e não querem ouvir falar de deveres cívicos”[1].
Depois, esclarece que, habitualmente, “não se trata de egoísmo: é simplesmente
falta de formação, porque nunca ninguém lhes falou claramente que a virtude da
piedade - parte da virtude cardeal da justiça - e o sentido da solidariedade
cristã se concretizam também neste estar presente, neste conhecer e contribuir
para resolver os problemas que interessam a toda a comunidade”[2].
Um cristianismo individualista?
Estas faltas de formação da consciência cristã não se devem
apenas a problemas na catequese ou na educação religiosa, mas também são um
resultado das transformações mentais e sociais que surgiram com os tempos
modernos. Seriam, em grande medida, consequência de uma nova cultura que as
pessoas foram adquirindo por osmose, desde o nascimento.
É assim que Bento XVI explica na sua encíclica Spe
Salvi quando se pergunta como surgiu na modernidade a ideia de que “a
mensagem de Jesus é estritamente individualista e dirigida somente ao
indivíduo?”[3] ;
ou, também, como “ é que se chegou a interpretar a 'salvação da alma' como fuga
da responsabilidade geral e, consequentemente, a considerar o programa do
cristianismo como busca egoísta da salvação”[4].
Ambas as ideias, explica ele, seriam o resultado de uma secularização da noção
cristã de esperança. O que aconteceu é que nos tempos modernos as grandes
possibilidades abertas pelo progresso científico e pelas novas formas de
organização social levaram à crença de que o ser humano poderia restaurar,
apenas por seus próprios meios, o “paraíso perdido”. Desta forma, a redenção do
mundo tornou-se algo que já não se esperava, “da fé, mas da ligação
recém-descoberta entre ciência e prática”[5]:
a ciência e as estruturas políticas iriam trazer-nos o céu que a religião só
parecia capaz de prometer para a outra vida.
Neste processo de secularização, a religião não desaparece,
mas é privatizada; isto é, está confinada à esfera da vida individual. No
âmbito público e social, Deus não parece mais necessário para enfrentar os
desafios humanos. Além disso, com o passar do tempo, chega-se a afirmar que a
restrição da religião à vida privada garantirá a paz nas sociedades com
cidadãos que professem religiões diferentes ou que são ateus. Esta forma de
compreender o lugar da religião na vida social tem sido também frequentemente
interiorizada pelos próprios fiéis, a ponto de levá-los a adotar atitudes que
se tornaram alvo de uma das críticas mais comuns à religião nos tempos
modernos. Segundo esta crítica, a esperança cristã consistiria num “puro
individualismo, que teria abandonado o mundo à sua miséria e teria se refugiado
numa salvação eterna exclusivamente privada”[6].
Os cristãos são censurados porque o que realmente importa para eles não é esta
vida, mas garantir um lugar na vida futura.
No entanto, nada poderia estar mais longe da realidade do
Evangelho, que nos torna próximos de qualquer pessoa necessitada (cf. Lc
10,36-37). A nossa fé “implica sempre um desejo profundo de mudar o mundo, de
transmitir valores, de deixar algo melhor quando passamos pela terra”[7].
São Josemaria dizia-o com força: o cristão deve se esforçar “para que haja cada
dia menos pobres, menos ignorantes, menos almas sem fé, menos desesperados,
menos guerras, menos insegurança, mais caridade e mais paz”[8].
Ao mesmo tempo, como recordou o Papa Francisco, a Igreja não é uma ONG[9] e
deve estar alerta para evitar as diversas formas de mundanização, colocando
sempre Cristo no centro da sua atividade – inclusive a social.
O apelo a contribuir com o desenvolvimento do reino de Deus
necessita, portanto, harmonizar dois princípios: por um lado, a consciência de
que este reino é um dom[10],
e não algo que possamos alcançar com as nossas próprias forças; por outro, a
convicção de que Deus não é indiferente ao nosso desejo de dar-Lhe cada vez
mais espaço em nossa vida. Está verdadeiramente ao nosso alcance ajudar a
“abrir o mundo para que Deus possa entrar: a verdade, o amor e o bem. (…)
Podemos libertar as nossas vidas e o mundo de intoxicações e contaminações que
poderiam destruir o presente e o futuro”[11].
Além disso, ainda que “aparentemente não consigamos ou nos encontremos
impotentes perante a superioridade das forças hostis”[12],
a virtude da esperança permite-nos experimentar que é Deus quem, em última
instância, guia a História.
As crises mundiais
Desde o início do Opus Dei, São Josemaria convidava
aqueles que eram próximos a ele a dedicarem a sua própria vida ao trabalho pelo
Reino de Deus, com aquele lema ardente: Regnare Christum volumus!
Justamente numa homilia sobre a esperança cristã escreveu: “Não nos criou o
Senhor para construirmos aqui uma Cidade definitiva, porque este mundo é
caminho para o outro, que é morada sem pesar. No entanto, os filhos de Deus
não devem desinteressar-se das atividades terrenas, em que Deus os coloca para
santificá-las. (…) Esta tem sido a minha pregação constante desde 1928: urge
cristianizar a sociedade; levar a todos os estratos desta nossa humanidade o
sentido sobrenatural, de modo que todos nos empenhemos em elevar à ordem da
graça os afazeres diários, a profissão ou o ofício. Desta forma, todas as
ocupações humanas se iluminam com uma esperança nova”[13].
Para conseguir isso, é decisivo que Cristo reine no coração
de cada pessoa, pois o reino de Deus não se reduz a uma forma concreta de
organização social, nem é o resultado de um conjunto de estruturas humanas[14].
Para que os cristãos sejam sal e fermento na sociedade civil, eles devem
primeiro cultivar seu relacionamento com Deus. “O reino de Cristo deve se
estabelecer antes de tudo nos corações (...), mas não para que cada um dê
glória a Deus independentemente dos outros, mas em comunhão com eles na Igreja
(...) e na própria sociedade civil, onde os cristãos são chamados a ser sal e
fermento (...). Cristo só reina plenamente no coração de quem quer que Ele
reine também na sociedade em que vive”[15].
Um ponto conhecido de Caminho expressa esta convicção de
forma significativa: “Um segredo. Um segredo em voz alta: estas crises mundiais
são crises de santos. Deus quer um punhado de homens “seus” em cada atividade
humana. Depois... ‘pax Christi in regno Christi’ - a paz de Cristo no
reino de Cristo”[16].
Fica claro que São Josemaria não concebia a vida cristã como algo meramente
íntimo, mas como um impulso que abrange todas as dimensões humanas, incluindo
as sociais[17].
Em outro lugar escreve: “Esta é a tua tarefa de cidadão: contribuir para que o
amor e a liberdade de Cristo presidam a todas as manifestações da vida moderna
- a cultura e a economia, o trabalho e o descanso, a vida de família e o
convívio social”[18].
Ao respeitar a liberdade dos outros, os cristãos são chamados a levar a luz do
Evangelho a todos os cantos.
O núcleo da mensagem do Opus Dei, a busca de Deus no
trabalho e na vida cotidiana, pressupõe que o mundo é um lugar de encontro com
Deus. O Concílio Vaticano II recorda-nos isto ao ensinar que os cristãos são
chamados a redimir as estruturas temporais a partir de dentro, por meio do
trabalho profissional e da colaboração com outros cidadãos[19].
Na raiz deste ensinamento está a verdade da criação: “Se o mundo e tudo o que
nele existe - exceto o pecado - é bom, porque é obra de Deus Nosso Senhor, o
cristão, esforçando-se continuamente por evitar ofensas a Deus - um luta
positiva de amor - ,tem que se dedicar a tudo o que é terreno, lado a lado
com os demais cidadãos; deve defender todos os bens derivados da dignidade da
pessoa. E há um bem que deves sempre procurar especialmente: o da liberdade
pessoal”[20].
Ao falar do trabalho como lugar de encontro com Deus, São
Josemaria especificava que se trata de “santificar o seu trabalho,
santificar-se no trabalho e santificar os outros com o trabalho”[21].
O trabalho configura e transforma tanto quem o realiza quanto a realidade sobre
a qual atua, ou seja, o mundo[22]. Neste
sentido, pode-se dizer que a santificação do trabalho é, ao mesmo tempo, o
caminho para a pessoa se aproximar de Deus e resgatar estruturas temporárias:
colaborar nesse movimento pelo qual o Senhor atrai todos a si ( cf. Jo 12,32).
____________________
Notas:
[1] São
Josemaria, Carta 3, n. 46.
[2] Ibidem.
[3] Bento
XVI, Spe Salvi, n. 16
[4] Ibidem,
n. 16.
[5] Ibidem,
n. 17.
[6] Ibidem,
n. 13.
[7] Francisco, Evangelii
gaudium, n. 183.
[8] São
Josemaria, Carta 8, n. 1.
[9] Francisco,
Homilia, 16/05/2020.
[10] Spe
Salvi, n. 35.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem.
[13] São
Josemaria, Amigos de Deus, n. 210.
[14] Cfr. Spe
Salvi nn. 24-25.
[15] E.
Burkhart – J. López, Vida cotidiana y santidad en la enseñanza de São
Josemaria, Rialp, Madrid, 2011, vol. I, pp. 411-412.
[16] São
Josemaria, Caminho, n. 301.
[17] Cfr.
E. Burkhart – J. López, Vida cotidiana y santidad, vol. I, p. 412.
[18] São
Josemaria, Sulco, n. 302.
[19] Cfr.
Lumen Gentium, n. 36.
[20] São
Josemaria, É Cristo que passa, n. 184.
[21] São
Josemaria, Entrevistas, n. 55.
[22] Cfr.
São João Paulo II, Laborens Exercens, n. 5-6.
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