O cristianismo burguês
Ao comparar o reino de Deus com um tesouro pelo qual se
vende tudo, Jesus desvincula o cristianismo de valores como a segurança ou a
estabilidade, para centrá-lo no risco, na missão, na aventura de melhorar o
mundo.
12/09/2023
O risco do cristianismo burguês ou a perda do sentido de
missão
“Não te aburgueses”[23],
costumava dizer São Josemaria para alertar para um risco que existe na vida
espiritual: o de acabar evitando tudo o que exige esforço, ignorando a
exigência que atravessa todo o Evangelho. Estas linhas de Sulco retratam, com
um toque de ironia, esse cristianismo aburguesado: “Ideologicamente, és muito
católico. Agrada-te o ambiente dessa Residência universitária... Pena que a
Missa não seja ao meio-dia, e as aulas à tarde, para estudares depois de
jantar, saboreando um ou dois cálices de conhaque! - Esse teu
‘catolicismo’ não corresponde à verdade, fica em simples aburguesamento[24].
É importante ter em conta que também se pode falar de cristianismo
burguês em outro sentido, complementar a este primeiro. É uma
concepção da vida religiosa em que o forte sentido de missão da mensagem
evangélica foi obscurecido ou esquecido. Nesta abordagem, a vida espiritual
tende a ser reduzida ao cumprimento pessoal das normas morais e a uma série de
práticas piedosas. Parece que nos esquecemos daquela petição do Pai Nosso -
“venha a nós o vosso reino” - que leva os cristãos a transformar o mundo com o seu
trabalho e com a sua oração. Usando as palavras de São Josemaria, o apelo a
“santificar os outros através do trabalho” ficaria reduzido, no melhor dos
casos, a um apostolado individual, sem horizonte de transformação do mundo; ou
estaria escondido atrás das anteriores - “santificar o trabalho e santificar-se
com o trabalho”-, que por sua vez perderiam quase toda a sua razão de ser.
O cristianismo burguês, neste segundo sentido, seria uma das
manifestações da concepção individualista da religião para a qual alertou Bento
XVI. Mais uma vez, não estaríamos perante o resultado de uma escolha
individual, mas sim diante do resultado de uma concepção de vida que vem
moldando a mentalidade das pessoas de forma quase imperceptível, através da
cultura e da educação. Na verdade, embora a noção de burguês se refira a um
estatus social (pessoas de uma classe rica, que não sofreram grandes privações
em suas vidas ou não tiveram que fazer esforços especiais para conseguir o que
desejavam), o termo "cristianismo burguês" não significa que ele seja
específico desse grupo social. Trata-se, de fato, de uma mentalidade que pode
ser encontrada em pessoas que pertencem a diferentes classes sociais, segundo a
qual o valor supremo que deve ser perseguido na vida é a estabilidade. Nos seus
escritos, São Josemaria exorta-nos a enfrentar esta concepção: “Tens obrigação
de aproximar-te dos que estão à tua volta, de sacudi-los da sua modorra, de
rasgar horizontes diferentes e amplos à sua existência aburguesada e egoísta,
de lhes complicar santamente a vida, de fazer que se esqueçam de si mesmos e
compreendam os problemas dos outros”[25].
Do ponto de vista religioso, a mentalidade burguesa é
problemática, porque tende a extinguir o sentido de missão. O cristão burguês
procura acima de tudo moderação e segurança. Por outro lado, quem descobre que
tem uma missão, algo importante para fazer na vida, está disposto a correr
riscos e embarcar em aventuras com final incerto. O Evangelho é muito
ilustrativo a este respeito. Por exemplo, mostrando-nos como Pedro, Tiago e
João, “deixando tudo, o seguiram” (Lc 5,11); ao comparar o reino de Deus a um
tesouro escondido, pelo qual se está disposto a vender tudo (Mt 13,44); ou
retomando as palavras de Jesus ao escriba que diz estar disposto a segui-Lo
aonde quer que vá: “As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos, mas o Filho
do homem não tem onde descansar a cabeça” (Mt 8,20).
Certamente, as pessoas sempre precisam de um mínimo de
segurança, especialmente em tempos tão incertos como os atuais. O problema está
em fazer da segurança ou da estabilidade os valores dominantes, a meta a que
aspiramos na vida. Quem adota essa mentalidade dificilmente sente necessidade
de melhorar as coisas e tende a se contentar com o que está ali, pois não quer
complicar a vida. Pelo contrário, o sentido de missão que faz parte do DNA do
cristianismo leva a viver a vida como uma aventura, pensando na melhor forma de
servir a Deus e aos outros com a própria profissão.
O encontro de Jesus com o jovem rico não é menos eloquente
nesse aspecto. Este jovem seria o protótipo do cristão burguês: uma pessoa que
obedece aos mandamentos, tem boa vontade e até desejos nobres, mas que não é
capaz de correr o risco de seguir o chamado de Jesus. O obstáculo são as
riquezas, que podem ser entendidas tanto no sentido literal de bens materiais
como no sentido de posição social ou segurança alcançada. Quando Jesus lhe diz:
“Falta-te uma coisa. Vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres; depois vem e
segue-me” (Mc 10,21), convida-o a abandonar a sua segurança e a confiar
plenamente Nele.
O cristão é “essencialmente social”
A cena do jovem rico mostra que um dos principais problemas
do cristianismo burguês é que ele reduz o cristianismo à moralidade. Embora o
Evangelho seja expresso de forma moral e tenha consequências práticas, esse não
é o núcleo da vida cristã. A essência do cristianismo não consiste em ser “boa
pessoa”, mas em encontrar e identificar-se com uma pessoa, Jesus Cristo: o
único verdadeiramente bom (cf. Mc 10,18). O que moveu Pedro, Tiago e João a
abandonar tudo não foi um ideal ético, mas o fascínio que a descoberta do
Messias lhes causou.
Poderíamos dizer que no cristianismo burguês a vida
religiosa é algo enfadonho e previsível: algumas práticas de piedade,
sacramentos, a necessidade de lutar e a confissão como uma “lavanderia” para
tirar as manchas[26].
Por outro lado, a religiosidade genuína é sempre acompanhada de surpresa, das
sucessivas conversões e da descoberta de novos Mediterrâneos, que normalmente
não são fruto de experiências extraordinárias, mas de perseverança na relação
com Deus[27].
O cristianismo burguês também pode levar a uma distorção do
Evangelho que Bento XVI alerta na Spe Salvi: pensar que a única
coisa importante é que eu me salve[28].
Certamente, o Julgamento de Deus será pessoal e não podemos ser
responsabilizados pelas decisões que outra pessoa tomou livremente. Contudo, a
vida cristã não conduz a uma perfeição “egoísta”, que nos feche em nós mesmos,
mas coloca o centro da vida fora de nós mesmos: na dedicação, no serviço, na
renúncia, no seguimento. Uma pessoa não se salva sozinha, no sentido de que é
independente dos outros. Por isso, no Juízo pessoal seremos questionados sobre
como contribuímos para conduzir o mundo para Deus, envolvendo-nos na vida de
quem caminha ao nosso lado (cf. Mt 25, 31-46). Precisamos então perguntar-nos
como nos preocupamos com o bem do próximo: como os acompanhamos, os consolamos,
os encorajamos.
Na Carta citada no início, São Josemaria afirma que “um
cristão não pode ser individualista, não pode ignorar os outros, não pode viver
egoisticamente, de costas para o mundo: é essencialmente social, membro
responsável do Corpo Místico de Cristo (…). Nosso trabalho apostólico
contribuirá para a paz, para a colaboração dos homens entre si, para a justiça,
para evitar a guerra, evitar o isolamento, evitar o egoísmo nacional e os
egoísmos pessoais: porque todos perceberão que formam parte de toda a grande
família humana, que está dirigida por vontade de Deus à perfeição. Assim
contribuiremos para tirar esta angústia, este temor por um futuro de rancores
fratricidas, e para confirmar nas almas e na sociedade a paz e a concórdia: a
tolerância, a compreensão, o trato, o amor”[29].
Nessas mesmas páginas, São Josemaria compartilha um dos seus
grandes desejos: “gostaria que, no catecismo da doutrina cristã para as
crianças, se ensinasse claramente quais são estes pontos firmes, nos que não se
pode ceder, ao atuar de um modo ou de outro na vida pública; e que se
afirmasse, ao mesmo tempo, o dever de atuar, de não se abster, de prestar a
própria colaboração para servir com lealdade, e com liberdade pessoal, ao bem
comum”[30].
São estes, de fato, os canais pelos quais discorre a
doutrina social da Igreja, evitando uma concepção de vida cristã que se
concentra nos deveres religiosos e familiares, mas negligencia os deveres
cívicos[31].
A vida espiritual não é algo “íntimo”, e o chamado a realizar o Reino de Deus
não pode ser identificado apenas com o empenho apostólico pessoal. É preciso
também ter vontade de melhorar o mundo através do próprio trabalho, seja na
esfera pública ou em casa. E isso exige conceber a própria profissão como um
serviço, isto é, como um meio de servir a Deus e aos outros. “Necessitamos que
o Senhor dilate o nosso coração, que nos dê um coração à sua medida, para que
nele entrem todas as necessidades, as dores, os sofrimentos dos homens e das
mulheres do nosso tempo, especialmente dos mais fracos”[32].
O fato de algumas leis e modos de vida terem se afastado da
mensagem evangélica deveria levar-nos a pensar no que mais podemos fazer. E,
também, o que poderíamos ter feito melhor: porque talvez em algumas ocasiões
deixamos de ser fermento, sal, luz. Na medida em que, como indica São
Josemaria, isso não se deva ao egoísmo ou à má vontade, é simplesmente falta de
formação[33],
cabe perguntar-se: o que poderia faltar na transmissão da fé? Onde quer que o
cristianismo burguês tenha se difundido, será conveniente despertar o sentido
de missão, para colocar-se ao serviço desse reino de Deus que já está entre nós[34].
_______________________
Notas:
[23] São
Josemaria, Forja, n. 936.
[24] São
Josemaria, Sulco, n. 716.
[25] Forja,
n. 900.
[26] Cfr.
Francisco, Homilia, 21/03/2017.
[27] Cfr. Forja,
n. 570.
[28] Spe
Salvi, nn. 13-14.
[29] São
Josemaria, Carta 3, nn. 37-38.
[30] Ibidem,
n. 45.
[31] Ibidem,
n. 46.
[32] Mons.
F. Ocáriz, À luz do Evangelho
[33] São
Josemaria, Carta 3, n. 46.
[34] Cfr.
Lc 17,20.
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