Translate

sábado, 15 de março de 2025

O cristianismo burguês (II)

O cristianismo burguês (II)

O cristianismo burguês

Ao comparar o reino de Deus com um tesouro pelo qual se vende tudo, Jesus desvincula o cristianismo de valores como a segurança ou a estabilidade, para centrá-lo no risco, na missão, na aventura de melhorar o mundo.

12/09/2023

O risco do cristianismo burguês ou a perda do sentido de missão

“Não te aburgueses”[23], costumava dizer São Josemaria para alertar para um risco que existe na vida espiritual: o de acabar evitando tudo o que exige esforço, ignorando a exigência que atravessa todo o Evangelho. Estas linhas de Sulco retratam, com um toque de ironia, esse cristianismo aburguesado: “Ideologicamente, és muito católico. Agrada-te o ambiente dessa Residência universitária... Pena que a Missa não seja ao meio-dia, e as aulas à tarde, para estudares depois de jantar, saboreando um ou dois cálices de conhaque! - Esse teu ‘catolicismo’ não corresponde à verdade, fica em simples aburguesamento[24].

É importante ter em conta que também se pode falar de cristianismo burguês em outro sentido, complementar a este primeiro. É uma concepção da vida religiosa em que o forte sentido de missão da mensagem evangélica foi obscurecido ou esquecido. Nesta abordagem, a vida espiritual tende a ser reduzida ao cumprimento pessoal das normas morais e a uma série de práticas piedosas. Parece que nos esquecemos daquela petição do Pai Nosso - “venha a nós o vosso reino” - que leva os cristãos a transformar o mundo com o seu trabalho e com a sua oração. Usando as palavras de São Josemaria, o apelo a “santificar os outros através do trabalho” ficaria reduzido, no melhor dos casos, a um apostolado individual, sem horizonte de transformação do mundo; ou estaria escondido atrás das anteriores - “santificar o trabalho e santificar-se com o trabalho”-, que por sua vez perderiam quase toda a sua razão de ser.

O cristianismo burguês, neste segundo sentido, seria uma das manifestações da concepção individualista da religião para a qual alertou Bento XVI. Mais uma vez, não estaríamos perante o resultado de uma escolha individual, mas sim diante do resultado de uma concepção de vida que vem moldando a mentalidade das pessoas de forma quase imperceptível, através da cultura e da educação. Na verdade, embora a noção de burguês se refira a um estatus social (pessoas de uma classe rica, que não sofreram grandes privações em suas vidas ou não tiveram que fazer esforços especiais para conseguir o que desejavam), o termo "cristianismo burguês" não significa que ele seja específico desse grupo social. Trata-se, de fato, de uma mentalidade que pode ser encontrada em pessoas que pertencem a diferentes classes sociais, segundo a qual o valor supremo que deve ser perseguido na vida é a estabilidade. Nos seus escritos, São Josemaria exorta-nos a enfrentar esta concepção: “Tens obrigação de aproximar-te dos que estão à tua volta, de sacudi-los da sua modorra, de rasgar horizontes diferentes e amplos à sua existência aburguesada e egoísta, de lhes complicar santamente a vida, de fazer que se esqueçam de si mesmos e compreendam os problemas dos outros”[25].

Do ponto de vista religioso, a mentalidade burguesa é problemática, porque tende a extinguir o sentido de missão. O cristão burguês procura acima de tudo moderação e segurança. Por outro lado, quem descobre que tem uma missão, algo importante para fazer na vida, está disposto a correr riscos e embarcar em aventuras com final incerto. O Evangelho é muito ilustrativo a este respeito. Por exemplo, mostrando-nos como Pedro, Tiago e João, “deixando tudo, o seguiram” (Lc 5,11); ao comparar o reino de Deus a um tesouro escondido, pelo qual se está disposto a vender tudo (Mt 13,44); ou retomando as palavras de Jesus ao escriba que diz estar disposto a segui-Lo aonde quer que vá: “As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos, mas o Filho do homem não tem onde descansar a cabeça” (Mt 8,20).

Certamente, as pessoas sempre precisam de um mínimo de segurança, especialmente em tempos tão incertos como os atuais. O problema está em fazer da segurança ou da estabilidade os valores dominantes, a meta a que aspiramos na vida. Quem adota essa mentalidade dificilmente sente necessidade de melhorar as coisas e tende a se contentar com o que está ali, pois não quer complicar a vida. Pelo contrário, o sentido de missão que faz parte do DNA do cristianismo leva a viver a vida como uma aventura, pensando na melhor forma de servir a Deus e aos outros com a própria profissão.

O encontro de Jesus com o jovem rico não é menos eloquente nesse aspecto. Este jovem seria o protótipo do cristão burguês: uma pessoa que obedece aos mandamentos, tem boa vontade e até desejos nobres, mas que não é capaz de correr o risco de seguir o chamado de Jesus. O obstáculo são as riquezas, que podem ser entendidas tanto no sentido literal de bens materiais como no sentido de posição social ou segurança alcançada. Quando Jesus lhe diz: “Falta-te uma coisa. Vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres; depois vem e segue-me” (Mc 10,21), convida-o a abandonar a sua segurança e a confiar plenamente Nele.

O cristão é “essencialmente social”

A cena do jovem rico mostra que um dos principais problemas do cristianismo burguês é que ele reduz o cristianismo à moralidade. Embora o Evangelho seja expresso de forma moral e tenha consequências práticas, esse não é o núcleo da vida cristã. A essência do cristianismo não consiste em ser “boa pessoa”, mas em encontrar e identificar-se com uma pessoa, Jesus Cristo: o único verdadeiramente bom (cf. Mc 10,18). O que moveu Pedro, Tiago e João a abandonar tudo não foi um ideal ético, mas o fascínio que a descoberta do Messias lhes causou.

Poderíamos dizer que no cristianismo burguês a vida religiosa é algo enfadonho e previsível: algumas práticas de piedade, sacramentos, a necessidade de lutar e a confissão como uma “lavanderia” para tirar as manchas[26]. Por outro lado, a religiosidade genuína é sempre acompanhada de surpresa, das sucessivas conversões e da descoberta de novos Mediterrâneos, que normalmente não são fruto de experiências extraordinárias, mas de perseverança na relação com Deus[27].

O cristianismo burguês também pode levar a uma distorção do Evangelho que Bento XVI alerta na Spe Salvi: pensar que a única coisa importante é que eu me salve[28]. Certamente, o Julgamento de Deus será pessoal e não podemos ser responsabilizados pelas decisões que outra pessoa tomou livremente. Contudo, a vida cristã não conduz a uma perfeição “egoísta”, que nos feche em nós mesmos, mas coloca o centro da vida fora de nós mesmos: na dedicação, no serviço, na renúncia, no seguimento. Uma pessoa não se salva sozinha, no sentido de que é independente dos outros. Por isso, no Juízo pessoal seremos questionados sobre como contribuímos para conduzir o mundo para Deus, envolvendo-nos na vida de quem caminha ao nosso lado (cf. Mt 25, 31-46). Precisamos então perguntar-nos como nos preocupamos com o bem do próximo: como os acompanhamos, os consolamos, os encorajamos.

Na Carta citada no início, São Josemaria afirma que “um cristão não pode ser individualista, não pode ignorar os outros, não pode viver egoisticamente, de costas para o mundo: é essencialmente social, membro responsável do Corpo Místico de Cristo (…). Nosso trabalho apostólico contribuirá para a paz, para a colaboração dos homens entre si, para a justiça, para evitar a guerra, evitar o isolamento, evitar o egoísmo nacional e os egoísmos pessoais: porque todos perceberão que formam parte de toda a grande família humana, que está dirigida por vontade de Deus à perfeição. Assim contribuiremos para tirar esta angústia, este temor por um futuro de rancores fratricidas, e para confirmar nas almas e na sociedade a paz e a concórdia: a tolerância, a compreensão, o trato, o amor”[29].

Nessas mesmas páginas, São Josemaria compartilha um dos seus grandes desejos: “gostaria que, no catecismo da doutrina cristã para as crianças, se ensinasse claramente quais são estes pontos firmes, nos que não se pode ceder, ao atuar de um modo ou de outro na vida pública; e que se afirmasse, ao mesmo tempo, o dever de atuar, de não se abster, de prestar a própria colaboração para servir com lealdade, e com liberdade pessoal, ao bem comum”[30].

São estes, de fato, os canais pelos quais discorre a doutrina social da Igreja, evitando uma concepção de vida cristã que se concentra nos deveres religiosos e familiares, mas negligencia os deveres cívicos[31]. A vida espiritual não é algo “íntimo”, e o chamado a realizar o Reino de Deus não pode ser identificado apenas com o empenho apostólico pessoal. É preciso também ter vontade de melhorar o mundo através do próprio trabalho, seja na esfera pública ou em casa. E isso exige conceber a própria profissão como um serviço, isto é, como um meio de servir a Deus e aos outros. “Necessitamos que o Senhor dilate o nosso coração, que nos dê um coração à sua medida, para que nele entrem todas as necessidades, as dores, os sofrimentos dos homens e das mulheres do nosso tempo, especialmente dos mais fracos”[32].

O fato de algumas leis e modos de vida terem se afastado da mensagem evangélica deveria levar-nos a pensar no que mais podemos fazer. E, também, o que poderíamos ter feito melhor: porque talvez em algumas ocasiões deixamos de ser fermento, sal, luz. Na medida em que, como indica São Josemaria, isso não se deva ao egoísmo ou à má vontade, é simplesmente falta de formação[33], cabe perguntar-se: o que poderia faltar na transmissão da fé? Onde quer que o cristianismo burguês tenha se difundido, será conveniente despertar o sentido de missão, para colocar-se ao serviço desse reino de Deus que já está entre nós[34].

_______________________

Notas:

[23] São Josemaria, Forja, n. 936.

[24] São Josemaria, Sulco, n. 716.

[25] Forja, n. 900.

[26] Cfr. Francisco, Homilia, 21/03/2017.

[27] Cfr. Forja, n. 570.

[28] Spe Salvi, nn. 13-14.

[29] São Josemaria, Carta 3, nn. 37-38.

[30] Ibidem, n. 45.

[31] Ibidem, n. 46.

[32] Mons. F. Ocáriz, À luz do Evangelho

[33] São Josemaria, Carta 3, n. 46.

[34] Cfr. Lc 17,20.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/o-cristianismo-burgues/

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF