O pecado e a misericórdia de Deus
A perda do sentido do pecado levou à perda da necessidade de
salvação, e daí ao esquecimento de Deus por causa da indiferença. No entanto, o
triunfo de Cristo é expressão de sua misericórdia para com o ser humano, uma expressão
de que “o amor é mais forte do que o pecado”. A misericórdia é a lei
fundamental que habita no coração de cada pessoa quando olha para o irmão que
encontra no caminho da vida.
01/10/2022
O mistério da misericórdia
Ao lado das grandes conquistas da nossa civilização, o
panorama do mundo contemporâneo também apresenta sombras e vacilações nem
sempre superficiais. Porque “os desequilíbrios que atormentam o mundo moderno
estão vinculados com aquele desequilíbrio fundamental radicado no coração do
homem”[1].
A pessoa humana como criatura experimenta múltiplas
limitações. Ao perceber a impossibilidade de responder ao mal, ao sofrimento e
à injustiça, pode surgir em muitos uma atitude, não de súplica ao Deus
misericordioso, mas uma espécie de acusação, resultado de uma indignação. A
experiência do mal e do sofrimento torna-se assim uma forma justificada de se
afastar de Deus, questionando a sua bondade misericordiosa. Alguns, inclusive,
chegam a ver o sofrimento como um castigo divino que recai sobre o pecador, distorcendo
ainda mais a misericórdia de Deus.
Isso cria um círculo vicioso. Nas palavras de São João Paulo
II, o “coração do drama vivido pelo homem contemporâneo é o eclipse do
sentido de Deus e do homem”[2].
Parece que Deus não é relevante, e não é relevante porque não pode resolver
nossos problemas. Por um lado, não nos parece claro que precisamos de uma
salvação, mas certamente a salvação oferecida pela Igreja de Jesus Cristo não
parece pertinente.
A consequência final desse eclipse de Deus seria a rejeição
social da necessidade de recorrer ao perdão e à misericórdia de Deus. Deste
modo, a perda do sentido do pecado leva à perda da necessidade de salvação, e
como consequência, ao esquecimento de Deus, por causa da indiferença.
Portanto, quanto mais a consciência humana, rendendo-se à
secularização, perde o sentido da palavra misericórdia, mais a Igreja sente o
direito e dever imperativo de pregar o Deus da misericórdia. O mistério da fé
cristã parece encontrar a sua síntese nesta palavra. A missão evangelizadora é
o anúncio em voz alta de que em Cristo crucificado, morto e ressuscitado, se
realiza a plena e autêntica libertação do mal, do pecado e da morte [3].
Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. “É como se
Cristo quisesse revelar que o limite imposto ao mal, cuja causa e vítima acaba
por ser o homem, é, em última análise, a Divina Misericórdia”[4].
O triunfo de Cristo é expressão da sua misericórdia para com
o homem, expressão de que “o amor é mais forte que o pecado”, “mais forte que a
morte e todo o mal”[5].
O mundo só alcançará a paz sobre a guerra, a violência, quando invocar a
misericórdia: “Jesus, eu confio em Vós”[6].
Não é fácil responder à evidência do mal no mundo. Talvez
porque o mal não seja um problema, mas um mistério. Um mistério no qual estamos
pessoalmente envolvidos. Um mistério que não se resolve teoricamente, mas com
atitudes vitais ou existenciais.
Devemos sempre contemplar o mistério da misericórdia: a
relação entre sofrimento, injustiça, pecado, homens e Deus. Porque, como afirma
o Papa Francisco[7],
a misericórdia é a lei fundamental que habita no coração de cada pessoa quando
olha para o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia é a palavra que
revela o mistério da Santíssima Trindade. A misericórdia é o último e supremo
ato com o qual Deus vem ao nosso encontro. E, portanto, a misericórdia é o
caminho que une Deus e o homem.
Na vida da Igreja, a misericórdia é uma realidade
permanente. Mas há momentos em que somos chamados a fixar o olhar na
misericórdia de forma mais intensa.
Compreendemos o pecado a partir da misericórdia
“Deus é infinitamente bom e todas as suas obras são boas.
Todavia, ninguém escapa à experiência do sofrimento, dos males existentes na
natureza que aparecem ligados às limitações próprias das criaturas e,
sobretudo, à questão do mal moral” (Catecismo, 385). “O pecado está
presente na história do homem: seria inútil tentar ignorá-lo ou dar a esta
realidade obscura outros nomes” (Catecismo, 386). Mas de onde vem o mal,
especialmente o pecado?
Para responder a esta pergunta devemos olhar para o mistério
de Deus, porque o pecado só pode ser entendido a partir da misericórdia de
Jesus Cristo. “‘O mistério [...] da iniquidade’ (2Ts 2,7) só se explica à luz
do ‘mistério da piedade’ (1 Tim 3,16). A revelação do amor divino em Cristo
manifestou ao mesmo tempo a extensão do mal e a superabundância da graça (cf.
Rm 5,20). Precisamos, pois, abordar a questão da origem do mal fixando o olhar
de nossa fé naquele que, e só Ele, é o Vencedor do mal. (cf. Lc 11,21-22; Jo
16,11; 1 Jo 3,8)” (Catecismo, nº 385). Como afirma Pascal em seus
Pensamentos, o conhecimento de Deus sem o conhecimento da necessidade de nossa
redenção é enganoso, assim como o reconhecimento de nossa miséria sem conhecer
o Redentor [8].
A partir deste vínculo profundo entre o homem e Deus,
podemos compreender que o pecado é um abuso da liberdade que Deus concede às
pessoas criadas para que possam amar a si e uns aos outros (cf. Catecismo,
386).
Para esclarecer a realidade do pecado, a luz da Revelação
divina nos fala particularmente do pecado das origens. Mas o ponto de partida
para compreendê-lo é a mensagem da misericórdia divina revelada por Jesus.
Pecado original: uma verdade essencial da fé
“A doutrina do pecado original é, por assim dizer, ‘o
reverso’ da Boa Notícia de que Jesus é o Salvador de todos os homens, de que
todos têm necessidade da salvação e de que a salvação é oferecida a todos
graças a Cristo.
O relato da queda (Gn 3) utiliza uma linguagem feita de
imagens, mas afirma um acontecimento primordial, um fato que ocorreu no início
da história do homem (cf. GS 13,1). A Revelação dá-nos a certeza de fé de que
toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente
pelos nossos primeiros pais (cf. Concílio de Trento: DS 1513; Pio XII, Humani
generis: ibid., 3897; Paulo VI, discurso 11/07/1966)” (Catecismo, n.
389-390).
“Por trás da opção de desobediência de nossos primeiros pais
há uma voz sedutora que se opõe a Deus (cf. Gn 3,1-5) que, por inveja, os faz
cair na morte (cf. Sab 2,24). A Escritura e a Tradição da Igreja veem neste ser
um anjo destronado, chamado Satanás ou diabo (cf. Jo 8,44; Ap 12,9). A Igreja
ensina que ele foi primeiro um anjo bom, criado por Deus” (Catecismo, n.
391).
“O homem, tentado pelo diabo, deixou morrer em seu coração a
confiança no seu Criador (cf. Gn 3,1-11) e, abusando da sua liberdade,
desobedeceu ao mandamento de Deus. Foi nisto que consistiu o primeiro pecado do
homem (cf. Rom 5,19). Todo pecado, daí em diante, será uma desobediência a Deus
e uma falta de confiança em sua bondade” (Catecismo, 397).
“A Escritura mostra as consequências dramáticas desta
primeira desobediência. Adão e Eva perdem de imediato a graça da santidade
original (cf. Rm 3,23). Têm medo deste Deus (cf. Gn 3,9-10) do qual fizeram uma
falsa imagem, a de um Deus enciumado de suas prerrogativas (cf. Gn 3,5)” (Catecismo,
399).
Como consequência, “a harmonia na qual estavam, estabelecida
graças à justiça original, está destruída; o domínio das faculdades espirituais
da alma sobre o corpo é rompido (cf. Gn 3,7); a união entre homem e a mulher é
submetida a tensões (cf. Gn 3,11-13); suas relações serão marcadas pela cupidez
e pelo domínio (cf. Gn 3,16)” (Catecismo, 400).
A harmonia com a criação também fica destruída; “a criação
visível tornou-se para o homem estranha e hostil (cf. Gn 3,17.19). Por causa do
homem, a criação está submetida ‘à servidão da corrupção’ (Rom 8,21).
Finalmente, vai realizar-se a consequência explicitamente anunciada para o caso
de desobediência (cf. Gn 2,17): o homem ‘voltará ao pó do qual é formado’ (Gn
3,19). A morte entra na história da humanidade (cf. Rom 5,12)” (Catecismo,
400).
“A partir do primeiro pecado, uma verdadeira ‘invasão’ do
pecado inunda o mundo: o fratricídio cometido por Caim contra Abel (cf. Gn
4,3-15); a corrupção universal em decorrência do pecado (cf. Gn 6,5.12; Rom
1,18-32); na história de Israel, o pecado se manifesta frequentemente e
sobretudo como uma infidelidade ao Deus da Aliança e como transgressão da Lei
de Moisés; e mesmo após a Redenção de Cristo, entre os cristãos, o pecado se
manifesta de muitas maneiras (cf. 1 Cor 1-6; Ap 2-3)” (Catecismo, 401).
Pablo Martí del Moral
Bibliografia
— Catecismo da Igreja Católica, nn. 374-421.
— São João Paulo II, Creio em Deus Pai. Catequese
sobre o Credo (I), Paulus, São Paulo.
— Francisco, Misericordiae
Vultus, 11-IV-2015.
Notas:
[1] Concílio
Vaticano II, Gaudium et spes, n. 10.
[2] São
João Paulo II, Evangelium vitae, n. 21
[3] Cf.
São João Paulo II, Redemptoris missio, n. 44.
[4] São
João Paulo II, Memória e Identidade, Sextante, São Paulo.
[5] Estas
expressões aparecem repetidas vezes em São João Paulo II, Dives in
Misericordia.
[6] Santa
Faustina, Diário de Santa Faustina. A Misericórdia Divina na minha
alma. Apostolado da Divina Misericórdia.
[7] Cfr.
Francisco, Misericordiae Vultus, n. 2.
[8] Blaise
Pascal, Pensamentos, n. 556 e n. 449, Martins Fontes, São Paulo.
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