Translate

quarta-feira, 12 de março de 2025

O pecado e a misericórdia de Deus (II)

O pecado e a misericórdia de Deus (Opus Dei)

O pecado e a misericórdia de Deus

A perda do sentido do pecado levou à perda da necessidade de salvação, e daí ao esquecimento de Deus por causa da indiferença. No entanto, o triunfo de Cristo é expressão de sua misericórdia para com o ser humano, uma expressão de que “o amor é mais forte do que o pecado”. A misericórdia é a lei fundamental que habita no coração de cada pessoa quando olha para o irmão que encontra no caminho da vida.

01/10/2022

Consequências do pecado original para a humanidade

A existência humana mostra a evidência do pecado em nossas vidas, juntamente com a realidade de que o pecado não é o resultado de sermos maus por natureza, mas vem da livre escolha do mal. O mal moral não pertence, portanto, à estrutura humana, não provém nem da natureza social do homem nem de sua materialidade, nem obviamente de Deus ou de um destino imóvel. O realismo cristão coloca o homem diante da sua própria responsabilidade: ele pode fazer o mal por causa da sua liberdade, e o responsável por isso não é outro senão ele mesmo (cf. Catecismo, 387).

“O que a Revelação divina nos dá a conhecer, concorda com os dados da experiência. Quando o homem olha para dentro do próprio coração, descobre-se inclinado também para o mal, e imerso em muitos males, que não podem provir de seu Criador, que é bom. Muitas vezes, recusando reconhecer Deus como seu princípio, perturbou também a devida orientação para o fim último e, ao mesmo tempo, toda a sua ordenação quer para si mesmo, quer para os demais homens e para toda a criação” (GS 13.1).

Ao longo da história, a Igreja formulou o dogma do pecado original em contraste com o otimismo exagerado e o pessimismo existencial (cf. Catecismo, 406). Frente a Pelágio, que afirmou que o homem só pode fazer o bem com suas forças naturais, e que a graça é um mero auxílio externo, minimizando assim tanto o alcance do pecado de Adão quanto a redenção de Cristo — reduzida a um mero exemplo mau ou bom, respectivamente — o Concílio de Cartago (418), seguindo Santo Agostinho, ensinou a prioridade absoluta da graça, pois o homem depois do pecado foi prejudicado (cf. DH 223.227; cf. também o Concílio II de Orange, no ano 529: DH 371-372). Ao contrário de Lutero, que sustentava que depois do pecado o homem é essencialmente corrompido em sua natureza, que sua liberdade é anulada e que há pecado em tudo o que ele faz, o Concílio de Trento (1546) afirmou a relevância ontológica do batismo, que apaga o pecado original. Embora suas sequelas permaneçam — entre elas, a concupiscência, que não deve ser identificada, como fez Lutero, com o próprio pecado — o homem é livre em seus atos e pode merecer com boas obras, sustentado pela graça (cf. DH 1511-1515).

No fundo da posição luterana, e de algumas interpretações recentes de Gn 3, está em jogo uma compreensão adequada da relação entre 1) natureza e história, 2) o plano existencial-psicológico e o plano ontológico, 3) o individual e o coletivo.

1) Embora existam alguns elementos de natureza mítica no Gênesis (compreendendo o conceito de “mito” em seu melhor sentido, ou seja, como palavra-narração que dá origem e está, portanto, na base da história posterior), seria um erro interpretar a história da queda como uma explicação simbólica da original condição humana pecaminosa. Essa interpretação transforma um fato histórico em natureza, mitificando-o e tornando-o inevitável: paradoxalmente, o sentimento de culpa que leva a reconhecer-se “naturalmente” como pecador conduziria a atenuar ou eliminar a responsabilidade pessoal pelo pecado, pois o homem não poderia evitar aquilo a que ele tende espontaneamente. O correto, porém, é afirmar que a condição pecaminosa pertence à historicidade do homem, e não à sua natureza original.

2) Como após o batismo ficaram algumas sequelas do pecado, o cristão pode experimentar fortemente a tendência ao mal, sentindo-se profundamente pecador, como ocorre na vida dos santos. No entanto, esta perspectiva existencial não é a única, nem a mais fundamental, pois o batismo realmente apagou o pecado original e nos fez filhos de Deus (cf. Catecismo 405). Ontologicamente, o cristão em graça é justo diante de Deus. Lutero radicalizou a perspectiva existencial, compreendendo toda a realidade a partir dela, que se tornava, assim, marcada ontologicamente pelo pecado.

3) O terceiro ponto leva à questão da transmissão do pecado original, “um mistério que não somos capazes de compreender plenamente” (Catecismo, 404). A Bíblia ensina que nossos primeiros pais passaram o pecado para toda a humanidade. Os capítulos seguintes do Gênesis (cf. Gn 4-11; cf. Catecismo, 401) narram a progressiva corrupção do gênero humano. Estabelecendo um paralelismo entre Adão e Cristo, São Paulo afirma: “Assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só [Cristo] todos se tornarão justos” (Rm 5,19). Este paralelismo ajuda a compreender corretamente a interpretação que se costuma dar ao termo adamáh como de um coletivo específico: como Cristo é um só ao mesmo tempo cabeça da Igreja, assim Adão é um e ao mesmo tempo cabeça da humanidade[9]. “Em virtude desta ‘unidade do gênero humano’, todos os homens estão implicados no pecado de Adão, como todos estão implicados na justiça de Cristo” (Catecismo, 404).

A Igreja entende de forma analógica o pecado original dos primeiros pais e o pecado herdado pela humanidade. Adão e Eva cometem um pecado pessoal, mas este pecado será transmitido por propagação à humanidade inteira, isto é, pela transmissão de uma natureza humana privada da santidade e da justiça originais. E é por isso que o pecado original é denominado “pecado” de maneira analógica: é um pecado “contraído” e não “cometido”, um estado e não um ato (Catecismo, 404). Assim, “embora próprio a cada um, o pecado original não tem, em nenhum descendente de Adão, um caráter de falta pessoal (Catecismo, 405)[10].

Para algumas pessoas é difícil aceitar a ideia de um pecado herdado[11] , principalmente se têm uma visão individualista da pessoa e da liberdade. O que eu tenho a ver com o pecado de Adão? Por que eu deveria pagar as consequências do pecado dos outros? Essas questões refletem uma ausência do sentimento de solidariedade real que existe entre todos os homens como criados por Deus. Paradoxalmente, essa ausência pode ser entendida como manifestação do pecado transmitido a cada um. Ou seja, o pecado original obscurece a compreensão daquela profunda fraternidade da raça humana que torna possível sua transmissão.

Diante das lamentáveis consequências do pecado e da sua difusão universal, vale perguntar: “Mas por que Deus não impediu o primeiro homem de pecar? São Leão Magno responde: ‘A graça inefável de Cristo deu-nos bens melhores do que aqueles que a inveja do Demônio nos havia subtraído’ (sermão 73,4). ‘Nada obsta’ a que a natureza humana tenha sido destinada a um fim mais elevado após o pecado. Com efeito, Deus permite que os males aconteçam para tirar deles um bem maior. Donde a palavra de São Paulo: ‘Onde abundou o pecado superabundou a graça’ (Rm 5,20). E o canto do Exultet: ‘Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor’ (Summa Theologiae, III, 1, 3, ad 3)” (Catecismo, 412).

A vida como combate

Este olhar sobre o pecado a partir da Redenção de Cristo proporciona um realismo lúcido sobre a situação do homem e seu agir no mundo. O cristão deve estar consciente tanto da grandeza de ser filho de Deus quanto de ser pecador. Este realismo:

a) Adverte tanto contra o otimismo ingênuo quanto o pessimismo desesperado e “propicia um olhar de discernimento lúcido sobre a situação do homem e de sua ação no mundo [...]. Ignorar que o homem tem uma natureza lesada, inclinada ao mal, dá lugar a graves erros no campo da educação, da política, da ação social e dos costumes” (Catecismo, 407).

b) Dá uma serena confiança em Deus, Criador e Pai misericordioso, que não abandona a sua criatura, perdoa sempre e tudo conduz para o bem, mesmo nas adversidades. “Repete: ‘Omnia in bonum!’, tudo o que sucede, ‘tudo o que me sucede’, é para meu bem... Por conseguinte - e esta é a conclusão acertada-, aceita isso, que te parece custoso, como uma doce realidade”[12].

c) Desperta uma atitude de profunda humildade, que leva a reconhecer sem surpresa os próprios pecados e a entristecer-se por eles serem uma ofensa a Deus e não tanto porque supõem ser frutos de um defeito pessoal.

d) Ajuda a distinguir o que é próprio da natureza humana enquanto tal do que é consequência da ferida do pecado na natureza humana. Depois do pecado, nem tudo que experimentamos como espontâneo é bom. A vida humana tem, portanto, o caráter de um combate: é preciso lutar para se comportar de maneira humana e cristã (cf. Catecismo, 409). “Ao longo de toda a tradição da Igreja, retratam-se os cristãos como milites Christi, soldados de Cristo. Soldados que levam a serenidade aos outros, enquanto combatem continuamente contra as más inclinações pessoais”[13]. O cristão que se esforça para evitar o pecado não perde nada daquilo que torna a vida boa e bela. Perante a ideia de que é necessário que o homem pratique o mal para experimentar a sua liberdade autônoma, pois no fundo uma vida sem pecado seria aborrecida, ergue-se a figura de Maria, concebida imaculada, mostrando que uma vida totalmente entregue a Deus, longe de produzir tédio, torna-se uma aventura cheia de luz e infinitas surpresas[14].

A Ternura de Deus: Pecado, Salvação, Misericórdia

Diante da realidade do pecado, levanta-se imponente a misericórdia de Deus. Jesus Cristo é o rosto desta misericórdia, como podemos ver na sua atitude para com os pecadores (“não vim chamar os justos, mas os pecadores”) como Zaqueu, o paralítico, a mulher adúltera, a samaritana, Maria Madalena, o bom ladrão, Pedro, e inúmeros outros personagens.

De maneira especialmente relevante, vemos nas parábolas de misericórdia, como a do filho pródigo, que realmente completam todo o ensino do Antigo Testamento sobre o Deus “compassivo e misericordioso, lento para a cólera, rico em bondade e em fidelidade” (Ex 34,6). Os salmos referem-se a isso repetidamente: o Senhor é “bondoso e compassivo; lento para a ira, cheio de clemência e fidelidade” (Sl 85,15); “bom e misericordioso, lento para a cólera e cheio de clemência” (Sl 102,8); “clemente e justo, o nosso Deus é compassivo” (Sl 116,5); “clemente e compassivo, generoso e cheio de bondade” (Sl 145, 8).

Na Paixão de Jesus, toda a sujeira do mundo entra em contato com o Puríssimo, com o Filho de Deus[15]. Se o normal é que o impuro contagie e contamine em contato com o Puro, aqui temos o contrário: pois onde o mundo, com toda sua injustiça e com suas crueldades que o contaminam, entra em contato com o imensamente Puro, nesse contato, a sujeira do mundo é realmente absorvida, anulada, transformada pelo amor infinito.

A realidade do mal, da injustiça que deteriora o mundo e ao mesmo tempo contamina a imagem de Deus, é uma realidade que existe, e por nossa culpa. Não pode simplesmente ser ignorada, tem que ser eliminada. Mas não é que um Deus cruel exija algo infinito. É justamente o contrário: o próprio Deus se coloca como lugar de reconciliação e, em seu Filho, assume o sofrimento. O próprio Deus introduz sua pureza infinita no mundo como um dom. O próprio Deus “bebe o cálice” de tudo o que é terrível, e assim restaura a lei pela grandeza do seu amor, que através do sofrimento transforma as trevas.

Jesus na Paixão clama ao Pai com todas as suas forças. De alguma forma, “todas as misérias da humanidade de todos os tempos, escrava do pecado e da morte, todos os pedidos e intercessões história da salvação estão recolhidos neste Grito do Verbo encarnado. Eis que o Pai os acolhe e, indo além de todas as esperanças, ouve-os, ressuscitando seu Filho”[16] . Este sofrimento concentra a miséria, o pecado e a morte dos homens, todo o mal da história. E o supera, o redime, o salva.

A Cruz é a última palavra do amor de Cristo por nós. Mas não é a última palavra do Deus da aliança. Esta última palavra será pronunciada na madrugada de domingo: “Ele ressuscitou”. Deus ressuscita seu Filho Jesus Cristo, e em Cristo nos dá a vida cristã para sempre.

Pablo Martí del Moral


Bibliografia

— Catecismo da Igreja Católica, nn. 374-421.

— São João Paulo II, Creio em Deus Pai. Catequese sobre o Credo (I), Paulus, São Paulo.

— Francisco, Misericordiae Vultus, 11-IV-2015.

Notas:

[9] Esta é a principal razão pela qual a Igreja sempre tenha lido a história da queda em uma perspectiva de monogenismo (origem do gênero humano de um único casal). A hipótese oposta, o poligenismo, pareceu se impor como dado científico (e até exegético) por alguns anos, mas hoje em dia, em nível científico, a descendência biológica de um único casal é considerada mais plausível (monofiletismo). Do ponto de vista da fé, o poligenismo é problemático, pois não se vê como possa se conciliar com a Revelação sobre o pecado original (cf. Pio XII, Humani Generis, DH 3897), embora seja uma questão que ainda precisa ser investigada e refletida.

[10] Nesse sentido, tem-se tradicionalmente feito uma distinção entre o pecado original originário (o pecado pessoal cometido por nossos primeiros pais) e pecado original originado (o estado de pecado em que nascemos seus descendentes).

[11] Cf. São João Paulo II, Audiência Geral, 24/09/1986, n. 1.

[12] São Josemaria, Sulco, 127.

[13] São Josemaria, É Cristo que passa, 74.

[14] Cf. Bento XVI, Homilia, 8-XII-2005

[15] Este comentário sobre a pureza de Cristo e a imundície do pecado encontra-se em Bento XVI, Jesus de Nazaré, v. 2, Planeta, São Paulo.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br/article/10-o-pecado-e-a-misericordia-de-deus/

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF