Chamei-vos amigos (5): Vejam que bons amigos
A amizade que um cristão oferece a aqueles que o rodeiam foi
sempre motivo de admiração. Com o passar do tempo surgem sempre novas
circunstâncias e novos desafios.
08/09/2020
Correm os últimos anos do século II. Os cristãos que vivem
no Império Romano são perseguidos com violência. Um jurista chamado Tertuliano,
que pouco tempo antes havia abraçado o cristianismo, sai em defesa de seus
irmãos na fé, fé que ele agora conhece melhor. E ele o faz através de um
tratado no qual procura informar os governadores das províncias romanas sobre a
verdadeira vida daqueles que eram acusados injustamente. Ele mesmo os havia
admirado, especialmente os mártires, antes de tornar-se cristão; mas agora,
acolhendo a opinião de muitos, Tertuliano resume em um único comentário o que
se diz sobre aquelas pequenas comunidades: “Vede como se amam!”[1].
São muitos os testemunhos desta amizade que os primeiros
cristãos viviam. Pouco antes, no início do mesmo século, o bispo Santo Inácio
de Antioquia, enquanto se dirigia a Roma para o seu martírio, escreveu uma
carta ao jovem bispo Policarpo. Entre vários conselhos, exorta-o a aproximar-se
“com mansidão” daqueles que estão longe da Igreja, já que não teria mérito amar
só “os bons discípulos”[2].
Sabemos, com efeito, que Cristo se faz presente na história através da sua
Igreja, dos seus sacramentos, da Sagrada Escritura, mas também através da
caridade com que nós, cristãos, tratamos aqueles que nos rodeiam. A amizade é
um desses “caminhos divinos da terra”[3] que
Deus abriu ao ter-se feito homem, amigo de seus amigos. Trata-se de um terreno
no qual se apalpa, de modo especial, essa cooperação misteriosa entre a
iniciativa de Deus e a nossa correspondência.
A CONFIANÇA ENTRE OS AMIGOS CRESCE GERALMENTE NO MEIO
DE UMA ATIVIDADE COMUM
Por isso, para que Cristo chegue aos outros através de
nossas relações, é importante crescer na virtude e na arte da amizade;
desenvolver a capacidade de amar aos outros e de amar
com os outros; deixar que a nossa vida seja moldada por esse desejo de
compartilhá-la com outros. Procuramos, portanto, que o nosso caráter se forme –
ou se reforme – para tornar-nos amáveis e construir pontes. Queremos inclusive
que os nossos gestos, o nosso modo de falar, de trabalhar ou de mexer-nos,
favoreçam o encontro com os outros. Tudo isto, contando sempre com a nossa
própria maneira de ser e com as nossas limitações pessoais, já que existem
infinitos modos de ser bom amigo.
Um ao lado do outro
Dizia C. S. Lewis que imaginamos os apaixonados “com o rosto
voltado um para o outro, mas amigos estarão lado a lado; seus olhos voltados
para a frente”[4],
para algo a fazer, a alcançar juntos. Um amigo não ama somente o amigo,
ama com ele; apaixona-se pelas atividades, projetos e ideais
valiosos da outra pessoa. Aquela amizade brota muitas vezes simplesmente
compartilhando tarefas que são verdadeiros bens comuns e, assim, os amigos
crescem juntos nas virtudes necessárias para alcançá-los.
Neste sentido como ajuda entusiasmar-se por coisas boas, ter
ambições nobres. Pode ser um empreendimento profissional ou acadêmico; ou uma
iniciativa cultural, educativa ou artística, desde ler ou ouvir música em
grupo, até promover atividades para o grande público; formas de serviço social
ou cívico; pode também tratar-se de uma iniciativa de formação, como um clube
juvenil ou familiar, ou uma atividade destinada à difusão da mensagem cristã. A
amizade se consolida também compartilhando tarefas domésticas como decoração,
cozinha, artesanato, jardinagem e, evidentemente, em meio à prática de algum
esporte, excursões, jogos e outros hobbies. Todas estas atividades
constituem ocasião de divertir-se com outros, daí crescem pouco a pouco a
confiança e a abertura mútua para outras dimensões da própria vida. É difícil
afinal – e inclusive, talvez, desnecessário – saber se fazemos todas estas coisas
para estar com nossos amigos ou se temos amigos para fazer coisas boas com
eles.
Pelo contrário, quem enfrenta a vida de um modo meramente
funcional, encarando tudo do ponto de vista prático, terá a sua capacidade de
fazer amigos muito diminuída. Poderá ter, no máximo, colaboradores em certas
tarefas úteis ou cúmplices para passar o tempo. É então que se instrumentaliza a
amizade, já que ela é posta somente a serviço de um projeto focado em si mesmo.
“Assim deveria ser”
Mas a amizade não é apenas fazer coisas juntos. Deve
ser “amizade ‘pessoal’ sacrificada, sincera: de tu a tu, de coração a coração”[5].
Embora entre os amigos não sejam necessárias com frequência palavras, conversar
é próprio de amigos. Constitui toda uma arte aprender a suscitar boas
conversas, com uma ou várias pessoas. Por isso, quem quer crescer em amizade,
evita o ativismo frenético e procura momentos propícios para estar com os
amigos, sem olhar o relógio nem o celular. Se procuramos proporcionar este
intercâmbio pessoal, o lugar, o ambiente tampouco são indiferentes. Por isso é
de grande ajuda dispor de espaços comuns, com recantos que tornem aconchegantes
os encontros entre as pessoas. São Josemaria dava grande importância à
decoração dos centros da Obra, que deviam facilitar materialmente o ambiente de
amizade, com o bom gosto e o ar familiar.
AS BOAS CONVERSAS, SEM PRESSA, SÃO MOMENTOS DE
FELICIDADE E DE ABERTURA MÚTUA DE HORIZONTES
Convidar alguém para aproximar-se de um grupo de amigos,
para que compartilhe uma experiência inspiradora ou reflexões sobre um tema
interessante, contribui normalmente para que essa pessoa melhore com
naturalidade o nível de sua conversa. Ajuda igualmente empreender leituras em
comum, já que isso implica participar desse grande debate com os autores do
presente e do passado onde se congregam tantos possíveis novos companheiros de
viagem. Não menos importante – e reflete uma profunda verdade sobre o homem – é
o fato de que a amizade nos reúne com frequência em torno de uma mesa, para
usufruir juntos de boa comida e de uma bebida que torne mais leve o espírito.
Tantas vezes, naquelas longas conversas, antecipamos o céu: “De repente
percebemos algo: sim, isto seria precisamente a verdadeira ‘vida’, assim
deveria ser”[6].
Mas a verdadeira amizade não se satisfaz apenas com a
conversa entre os que formam um grupo de amigos. Requer também momentos de
solidão, de certa intimidade, onde se possa falar de “coração a coração”. Os
bons amigos e familiares compreendem essa necessidade e abrem esse espaço sem
inveja nem desconfiança. É assim que se cria o contexto propício para as
“discretas indiscrições”[7],
para o mútuo conselho, para a confidência. Deus se serve também desses momentos
para acompanhar espiritualmente as almas e inclusive para abrir “insuspeitáveis
horizontes de zelo”[8],
aos amigos, como pode ser compartilhar uma missão divina no mundo.
A amizade em um mundo agitado
É bom considerar também, com realismo, alguns traços da
cultura contemporânea que representam um desafio para o modo como vivemos a
amizade. É preciso dizer, em primeiro lugar, que não se trata de obstáculos
intransponíveis. Por um lado, porque temos toda a graça de Deus. Mas também
porque é fácil ver que, onde a amizade é menos frequente e profunda, é mais
necessária e desejada de modo mais intenso pelos corações dos homens e das
mulheres. Parafraseando São João da Cruz, poderíamos dizer: “Onde não há amizade,
põe amizade e tirarás amizade”.
Pensemos, por exemplo, no tom excessivamente competitivo de
algumas profissões ou ambientes. Isto se traduz, às vezes, numa mentalidade
pragmática ou desconfiada, embora envolvida em uma boa educação meramente
externa. Parece que, se trabalhássemos com outra atitude, os outros se
aproveitariam de nós. Não podemos, sem dúvida, ser ingênuos, mas tal ambiente
precisa ser purificado a partir de dentro, por pessoas que mostrem um modo
diferente de viver. Não é preciso pressionar, gritar, enganar ou aproveitar-se
dos outros, para atingir metas profissionais. Um cristão lembra sempre que o
trabalho é um serviço. Por isso, aspira a ser um chefe, um colega, um cliente
ou um professor de quem se pode chegar a ser um bom amigo, sem que se deixe de
respeitar as normas próprias de cada profissão.
ONDE NÃO HÁ AMIZADE, PÕE AMIZADE E TIRARÁS AMIZADE
Poderemos igualmente criar ambientes propícios para amizade
evitando que sejam contagiados por estresse excessivo, ativismo ou dispersão. É
verdade que, em nosso mundo agitado, é difícil às vezes conseguir a serenidade
necessária para ter novas amizades; e isso também porque, inclusive quando se
descansa, a correria costuma ser acompanhada de modos de desconexão. Esta
é precisamente uma oportunidade para – com humildade e conhecimento de nossa
fragilidade – oferecer aos outros um exemplo atraente próprio de quem “lê a
vida de Jesus Cristo”[9]:
andar com tranquilidade, sorrir, desfrutar do momento, contemplar, descansar
com coisas simples, ter criatividade para planos alternativos, etc. [10].
Ter esperança no que nos une
Manter uma “atitude positiva e aberta diante da
transformação atual das estruturas sociais e das formas de vida”[11],
como recomendava São Josemaria, facilita a amizade com muitas pessoas, também
quando há distância de gerações. Além disso, é preciso um profundo amor à
liberdade alheia, sem cair na rigidez quando algo admite pontos de vista
diferentes. “certas maneiras de se expressar – recorda o prelado do
Opus Dei – podem atrapalhar ou dificultar a criação de um ambiente de
amizade. Por exemplo, ser categórico demais ao expressar a própria opinião,
dando a impressão de que achamos que nossas colocações são as definitivas, ou
não se interessar ativamente pelo que os outros dizem, são maneiras de agir que
nos fecham em nós mesmos”[12].
É verdade que, em vários lugares, estendeu-se uma visão da
vida na qual é difícil aceitar alguns princípios básicos da lei moral. Isto
implica que, às vezes, se negue, inclusive, a própria possibilidade do amor de
benevolência: desejar o bem do outro por si mesmo. Talvez esta visão veja nas
relações humanas apenas um cálculo de utilidade ou sentimentos de simpatia sem
muito fundamento. Isto, logicamente, pode vir a ser fonte de incompreensão e
até de conflito. É importante, diante desta situação, não confundir o diálogo
próprio da amizade com a argumentação filosófica, jurídica ou política; o
diálogo amistoso não implica tentar convencer o outro de nossas ideias,
inclusive quando essas ideias forem formulações clássicas ou magistrais de
algum tipo de verdade. E isto não significa “não chamar as coisas por seu nome”
ou perder a capacidade de discernir o bem do mal. O que acontece é que nossos
raciocínios têm valor dentro de um diálogo só quando se parte de algum
princípio ou autoridade comum[13].
Embora na amizade também haja tempo para a conversão pessoal, é melhor
normalmente procurar pontos de acordo em vez de destacar o que nos separa; é o
momento para oferecer nossa própria experiência, sem grandes elaborações
intelectuais, com toda a força de quem compartilha as suas preocupações,
tristezas e alegrias. E é sempre importante ouvir, porque a amizade – como
dizia São Josemaria – mais do que em dar, está em compreender[14].
O DIÁLOGO ENTRE AMIGOS É UM LUGAR IDÔNEO PARA
TRANSMITIR A PRÓPRIA EXPERIÊNCIA, PARA FORTALECER OS PONTOS QUE NOS UNEM AOS
DEMAIS
Pode ser útil notar que a maioria das pessoas, na maior
parte do tempo, vive movida pelos desejos profundos de todo coração humano:
amar e ser amada. Esse desejo insaciável de sentido, de unidade, de plenitude,
embora possa ser anestesiado durante muito tempo por múltiplas razões, volta
sempre a manifestar-se. O bom amigo – embora não seja sempre plenamente
correspondido – sabe esperar; sabe estar perto quando os próprios esquemas
entram em crise e o coração se abre à luz que intuiu precisamente no carinho do
outro.
Uma imagem da paciência de Deus
São Paulo, no famoso hino à caridade de sua Epístola aos
coríntios, declara que “a caridade é paciente” (1 Cor 12, 4). Por isso, o
prelado do Opus Dei recorda que “uma amizade tem muito de dom inesperado,
por isso também requer paciência. Às vezes, certas más experiências ou
preconceitos podem fazer com que o relacionamento pessoal com alguém que temos
perto leve algum tempo para se tornar amizade. Isso também pode ser dificultado
pelo temor, respeito humano ou uma atitude de prevenção. É bom tentar se colocar
no lugar dos outros e ser pacientes”[15].
São Josemaria animava sempre a andar “com o ritmo de Deus”.
Em sua vida é inegável a audácia apostólica com que vivia, a ousadia – também
humana – com que saía ao encontro das pessoas, mesmo que estivessem muito
longe, mesmo pondo em perigo a sua própria vida. Basta pensar naquela conversa
com Pascual Galbe, um juiz amigo que tinha conhecido durante seus estudos
universitários; eram tempos de perseguição religiosa e o Padre esquivou-se de
vários perigos ao ir à sua casa em Barcelona unicamente com a intenção de
reencontrar seu amigo. Em uma conversa prévia, pelas ruas de Madri, Galbe lhe
tinha perguntado: “O que você quer de mim, Josemaria?” Ao que o fundador do
Opus Dei respondeu: “O que eu quero é você. Não preciso de nada. Só desejo
que você seja um homem bom e justo”. E a mesma coisa voltou a dizer-lhe na vez
seguinte, quando foi ouvir suas confidências naqueles momentos difíceis, sem
deixar de ajudá-lo a encontrar a verdade[16].
O fundador do Opus Dei não deixava de recomendar aquela
paciência “que nos impulsiona a ser compreensivos com os outros, persuadidos de
que as almas, como o bom vinho melhoram com o tempo”[17];
devemos procurar ter com os outros a mesma paciência que Deus tem conosco. A
verdade é que, como lembrava Bento XVI, “o mundo é redimido pela paciência de
Deus e destruído pela impaciência dos homens”[18].
Ter paciência não quer dizer que não soframos às vezes, por falta de
correspondência de outras pessoas a nosso carinho, ou porque vemos algum amigo
empreender caminhos que provavelmente não saciarão os seus desejos de
felicidade. Trata-se, na verdade, de sofrer com o coração de Jesus,
identificando-nos cada vez mais com seus sentimentos, sem nos deixarmos levar
pela tristeza ou a desesperança.
A experiência do perdão dos amigos é motivo de esperança nos
momentos mais obscuros da vida. A certeza de que um amigo nos espera, apesar
das nossas indelicadezas, constitui para nós a viva imagem de Deus: esse
primeiro amigo que aguarda que voltemos para seus braços de Pai e que nos
perdoa sempre.
Ricardo Calleja
[1] Tertuliano, Apologético, XXXIX.
[2] Cfr.
Santo Inácio de Antioquia, Carta a Policarpo, II.
[3] São
Josemaria, Amigos de Deus, n. 314.
[4] C.S.
Lewis, Os quatro amores, Thomas Nelson, Rio de Janeiro, 2017, p.
94.
[5] São
Josemaria, Sulco, n. 191.
[6] Bento
XVI, Carta encíclica Spe Salvi, n. 11.
[7] Cfr.
São Josemaria, Caminho, n. 973 .
[8] Ibid.
[9] São
Josemaria, Caminho, n. 2.
[10] Cfr.
Francisco, Carta encíclica Laudato si’ , nn. 222-223.
[11] São
Josemaria, Sulco, n. 428.
[12] Mons.
Fernando Ocáriz, Carta 1-XI-2019,
n. 9.
[13] São
Tomás de Aquino, Quodlibet IV , .9 , a. 3.
[14] Cfr.
São Josemaria, Sulco, n. 463.
[15] Mons.
Fernando Ocáriz, Carta 1-XI-2019,, n.
20.
[16] Cfr
Jordi Miralbell, Días de espera en guerra, Palabra, Madri,
2017, pp. 75, 97 e ss.
[17] São
Josemaria, Amigos de Deus, n. 78.
[18] Bento
XVI, Homilia 24-IV-2005, Missa de início de seu pontificado.
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