“Vai e faz tu o mesmo”: A lei de Deus e a misericórdia
Quem é meu próximo? O Senhor responde a essa pergunta de um doutor da lei com a parábola do bom samaritano. Dessa forma abre para ele – e para nós –, o horizonte das bem-aventuranças, que mostram a profundidade da lei de Deus. Novo editorial sobre a misericórdia.
01/08/2016
Em certa ocasião, um doutor da lei se aproximou de Jesus
para perguntar o que devia fazer para conseguir a vida eterna. Na realidade,
ele queria testar a ortodoxia do rabi de Nazaré, de quem, ao que parece, não
sabia o que pensar[1].
Mas Jesus não se incomodou. Aceitou o diálogo e lhe devolveu a pergunta «O que
está escrito na lei? Como é que lês?»[2].
O doutor respondeu com umas palavras do Shemá Israel, Escuta Israel[3],
que todo israelita aprendia desde pequeno: «Amarás o Senhor teu Deus de todo o
teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu
pensamento»[4] e
acrescentou com o livro do Levítico: «e a teu próximo como a ti mesmo»[5].
Nessas duas fórmulas estão sintetizadas toda a lei e os
profetas[6],
de modo que o Senhor diz: «Respondeste bem. Faz isto e viverás»[7].
O doutor não esperava que sua pergunta se solucionasse com essa simplicidade
desconcertante. «Querendo justificar-se»[8] insiste
com uma nova questão: «E quem é o meu próximo?»[9].
Jesus não se rende, pois quer ganhar a confiança de seu interlocutor. Fala-lhe
então ao coração e, com ele, a todos os homens e mulheres de todos os tempos,
com sua linguagem, ao mesmo tempo simples e solene: é a parábola do bom
samaritano.
“Fazer-se próximo”
No pobre homem assaltado no caminho de Jerusalém a
Jericó, os Padres da Igreja viam Adão, e com ele – porque seu nome significa
precisamente “homem” – viam a humanidade maltratada pelo seu próprio pecado,
pelo nosso próprio pecado.
No pobre homem assaltado no caminho de Jerusalém a Jericó,
os Padres da Igreja viam Adão, e com ele – porque seu nome significa
precisamente “homem” – viam a humanidade maltratada pelo seu próprio pecado,
pelo nosso próprio pecado. No bom samaritano reconheciam Jesus, que vem com
paciência para nos curar, depois de que aqueles que não eram capazes de trazer
a salvação ao mundo passassem longe. Ele, por outro lado, pode e quer. Uma
antiga e venerável homilia imagina assim o encontro de Cristo com Adão – que é
também o encontro com cada um de nós – ao descer para os infernos: «Eu sou o
teu Deus, quem por tua causa fiz-me teu filho; por causa de ti, e por causa
daqueles que nasceriam de ti, a todos aqueles que eram escravos, digo-o eu:
“Saí”, e aos que se encontram nas trevas: “Iluminai-vos”, e aos que dormem:
“Levantai-vos!”»[10].
Com Jesus, os cristãos, seus ungidos, são chamados a levar a
sua salvação – a serem bons samaritanos. Como seu Senhor, também eles devem
curar as feridas dos homens e derramar azeite e vinho sobre
elas[11]:
devem ser bons estalajadeiros até a volta do Samaritano. «Essa pousada, se
notáreis bem, é a Igreja. Agora é pousada porque nossa vida é um estar
de passagem. Será casa que nunca abandonaremos quando tenhamos chegado
curados ao reino dos céus. Enquanto isso, aceitamos com gosto o tratamento na
pousada»[12].
Este é o horizonte que o Senhor quer abrir ao doutor da lei, e com ele, a todos
os cristãos, e a todos os seres humanos. Não o repreende por sua estreiteza:
faz-lhe pensar primeiro, e depois, sonhar: «Vai e faz tu o mesmo»[13].
Como acontece com frequência nos Evangelhos, é bom não passar muito depressa
por cima da concisão do relato. A resposta à pergunta de Jesus: - «quem foi seu
próximo?» – é certamente óbvia: «Aquele que usou de misericórdia para com ele.»[14].
O que não é evidente, porém, é por que o Senhor faz essa pergunta que vira do
avesso a colocação do doutor da lei: «Jesus inverte a perspectiva: não se trata
de reconhecer o outro como meu semelhante, mas de ser capaz de fazer-me
semelhante ao outro»[15].
Diante de uma atitude estreita, que delimita o campo de ação para fazer o bem –
considerando, por exemplo, se os outros pertencem ao meu grupo, se depois me
devolverão o favor –, o Senhor responde convidando a levantar a vista, a ser
ele mesmo próximo.
A palavra próximo converte-se assim, da
qualificação de um tipo de pessoas que mereceriam minha atenção, a uma
qualidade do coração. É a pedagogia de Deus, que dá uma virada à pergunta “a
quem fazer o bem” e a transfigura: o que era matéria de discussão e casuística
nas escolas rabínicas – onde estava o limite? Até onde tenho que compadecer-me
dos outros? – converte-se em um desafio audaz. O cristão, dizia São João Paulo
II, «não se pergunta a quem deve amar, porque perguntar-se “quem é meu
próximo?” já implica colocar limites e condições (...). A pergunta legítima não
é “quem é meu próximo?”, mas sim “de quem devo fazer-me próximo?”. E a resposta
é: qualquer um que sofre necessidade, ainda que me seja um desconhecido,
converte-se para mim em próximo, ao que eu devo ajudar”[16].
É a proximidade[17],
neologismo do Papa Francisco que nos lembra nossa vocação de ser próximos do
nosso próximo, a ser «ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença»[18].
O caminho até a plenitude da Lei
Com Jesus, os cristãos, seus ungidos, são chamados a
levar a sua salvação – a serem bons samaritanos. Como seu Senhor, também eles
devem curar as feridas dos homens e derramar azeite e vinho.
Poderíamos dizer que este diálogo com o doutor da lei resume
o caminho que vai desde os ensinamentos morais do Antigo Testamento até a
plenitude da vida moral em Cristo. E que, como nos lembra São Paulo, a lei do
povo escolhido é boa e santa[19],
mas não definitiva. Ordenava-se, principalmente, a preparar os corações para a
chegada de Jesus. A pergunta do fariseu – «qual é o principal mandamento da
Lei?»[20] –
parece refletir certa angústia diante dos inúmeros preceitos que, com uma visão
legalista, foram se introduzindo na vida religiosa israelita. Em outro momento,
Jesus Cristo se queixa dos doutores da lei «que carregais os homens com pesos
que não podem levar, mas vós mesmos nem sequer com um dedo vosso tocais os
fardos»[21].
E mais ainda: em algumas ocasiões, as tradições humanas
terminaram por tornar-se uma desculpa para não se sujeitar a um mandato divino,
assim, Jesus denuncia a atitude de quem se escudava com as ofertas do Templo
para não ajudar a seus pais[22].
Por isso, Jesus Cristo aponta para o fundamental: o Amor a
Deus e ao próximo. Deste modo, se cumpre o que Ele diz de si mesmo: que não
veio «abolir a lei ou os profetas (...), mas sim para levá-los à perfeição»[23].
A Aliança que Deus celebrou com seu povo incluía umas
prescrições que não tinham o sentido original de impor-lhes cargas, mas sim,
muito ao contrário, o de levar-lhes por caminhos de liberdade: «Olha que hoje
ponho diante de ti a vida com o bem, e a morte com o mal. Mando-te hoje que
ames o Senhor (...) para que vivas e te multipliques, e que o Senhor, teu Deus,
te abençoe na terra em que vais entrar para possuí-la»[24].
A terra prometida aos hebreus simboliza um lugar os homens e
as mulheres de todos os tempos podem entrar, se vivem os mandamentos de Deus em
seu autêntico sentido. É uma porta para chegar à comunhão com Deus, porque,
fora dela, qualquer outra terra parece inóspita: «O que é preciso para
conseguir a felicidade não é uma vida cômoda, mas um coração enamorado»[25].
Se, por um lado, os preceitos rituais e legais do povo de
Israel terminaram com a vinda de Jesus Cristo, por outro, os Dez Mandamentos,
conhecidos também como o Decálogo, são perenes: recolhem os princípios
fundamentais para poder amar a Deus – colocando-o por cima de tudo, respeitando
seu santo nome, dedicando-lhe os dias de festa, como os cristãos fazemos no
domingo – e aos outros – alimentando o carinho e reverência aos pais,
protegendo a vida, a pureza de coração, etc. Quantas gerações de israelitas meditaram
a verdade e a solicitude do Pai que estão nessas dez palavras! «Minha herança
eterna são as vossas prescrições, porque fazem a alegria de meu coração»[26],
uma amostra da misericórdia divina, que não quer que nos extraviemos, que
deseja que tenhamos uma vida plena. O mundo pode se rebelar às vezes contra os
Mandamentos, como se fossem imposições ultrapassadas, próprias de um estágio
infantil da humanidade. Mas não faltam exemplos de como as sociedades e as
pessoas se desmoronam quando creem que podem ignorá-los. As dez palavras do
Senhor são as constantes do universo interior do ser humano. Se são alteradas,
seu coração se desfigura.
Para que sejais filhos do vosso Pai
O Decálogo se engloba na nova lei que Jesus Cristo instaurou
ao salvar-nos dando sua vida na Cruz. Essa nova lei é a graça do Espírito
Santo concedida mediante a fé em Cristo[27].
Agora, portanto, não temos somente um horizonte moral a que aspirar: trata-se
de viver em Jesus, de parecer-nos cada vez mais com Ele, deixando que o
Espírito Santo nos transforme, para cumprir assim seus mandamentos.
Como ser mais parecidos com Jesus Cristo? Onde podemos ver
seu modo de ser? O Catecismo diz que «As bem-aventuranças desenham o rosto de
Jesus Cristo e descrevem sua caridade»[28].
Nesses ensinamentos recolhidos pelos evangelhos, vemos o retrato de Nosso
Senhor, seu rosto que revela o amor compassivo do Pai a todos os homens. Elas
recolhem as promessas feitas ao Povo Eleito, mas as aperfeiçoam ordenando-as
não somente à posse da terra, mas ao Reino dos Céus[29].
No evangelho de Mateus, as primeiras quatro bem-aventuranças
se referem a uma atitude ou forma de ser que tem seu centro nas palavras de
Jesus[30]:
«Bem-aventurados os pobres de espírito», «os que choram», «os mansos», «os que
têm fome e sede de justiça». Convidam a confiar totalmente em Deus e não nos
nossos recursos humanos, a enfrentar com sentido cristão os sofrimentos, a ser
pacientes dia a dia. A estas bem-aventuranças se acrescentam outras que põem o
acento na ação: «Bem-aventurados os misericordiosos», «os limpos de coração»,
«os pacíficos», e outras mais que nos advertem que, para seguir Jesus, temos
que sofrer algumas contradições [31],
sempre com alegria, pois «a felicidade do Céu é para os que sabem ser felizes
na terra»[32].
As bem-aventuranças certamente manifestam a misericórdia de
Deus, que se empenha em dar um júbilo sem limites àqueles que O seguem:
«Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus, pois
assim perseguiram os profetas que vieram antes de vós.»[33] Elas
não são, no entanto, uma coleção de aforismos para imaginar um utópico mundo
melhor que alguém se ocupará de fazer possível, ou para
consolar-se falsamente diante das dificuldades do momento. Por isso, as
bem-aventuranças são também chamadas exigentes de Deus ao coração de cada ser
humano. Elas nos empurram a comprometer-se a trabalhar pelo bem e a justiça já
nesta terra.
Considerar com frequência as bem-aventuranças, talvez na
oração pessoal, ajuda a saber como aplicá-las na vida diária. Por exemplo, a
mansidão se concretiza tantas vezes no «sorriso amável para quem te incomoda,
aquele silêncio ante a acusação injusta, a tua conversa afável com os maçantes
e os inoportunos, o não dar importância cada dia a um pormenor ou outro,
aborrecido e impertinente, das pessoas que convivem contigo...»[34].
Ao mesmo tempo, quem procura viver segundo o espírito das
bem-aventuranças, vai incorporando à sua personalidade umas atitudes e modos de
julgar as coisas que lhe dão maior facilidade para cumprir os mandamentos. A
limpeza de coração lhe permite ver a imagem de Deus em cada pessoa,
considerando-a como alguém digna de respeito e não como objeto para satisfazer
uns desejos retorcidos. Ser pacíficos leva-nos a viver como filhos de Deus e a
reconhecer os outros como seus filhos, seguindo esse «caminho mais excelente»[35] da
caridade, que «tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta»[36],
transformando os agravos em uma ocasião de amar e rezar por aqueles que
prejudicam[37].
Em resumo, ser pacíficos nos leva a modelar o nosso coração segundo os
contornos que traçam as bem-aventuranças, torna realidade o ideal que Jesus
Cristo nos propõe de ser misericordiosos como o «Pai celestial é
misericordioso»[38].
Transformamo-nos em portadores do amor de Deus, aprendemos a ver nos outros
esse próximo que necessita nossa ajuda. Somos, em Cristo, esse
bom samaritano que sabe se conduzir pela misericórdia, para cumprir em
plenitude a lei da caridade. Então, nosso coração se expande, como aconteceu
com o coração de Nossa Senhora.
Carlos Ayxelá – Rodolfo Valdés
[1] Cfr.
Lc 10, 25.
[2] Lc 10,
26.
[3] O Shema‘
Israel é o nome que os israelitas usam para se referir ao texto
bíblico do livro do Deuteronômio, que recitam diariamente nas suas
orações: “Ouve, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor
teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas
forças” (Dt 6,4-5).
[4] Deut 6,5
[5] Lev 19,18
[6] Mt 22,
40
[7] Lc 10,
28
[8] Lc 10,
29
[9] Lc 10,
29
[10] Homilia
sobre o grande e santo Sábado (PG 43, 462).
[11] Lc 10,
34.
[12] Santo
Agostinho, Sermão 131, 6
[13] Lc 10,37
[14] Lc 10,
37
[15] Francisco, Mensagem,
24-I-2014.
[16] São
João Paulo II, Discurso, 2-II-1999.
[17] Francisco,
Ex.Ap. Evangelii Gaudium (24-XI-2013), nº 169.
[18] Francisco, Mensagem, 4-X-2014.
[19] Cfr. Rom 7,
12.
[20] Mt
22,36
[21] Lc 11,46
[22] Mt 15,
3-6
[23] Mt
5, 17
[24] Deut 30,
15-18
[25] São
Josemaria, Sulco, nº 795
[26] Salmo 119
(118), 111.
[27] Cfr.
São Tomás de Aquino, Summa Theologica I-II, q. 106, a.1, c. e
ad 2, cit. Em São João Paulo II, Enc. Veritatis Splendor,
6-VIII-1993, nº 24.
[28] Catecismo
da Igreja Católica, nº 1717.
[29] Idem,
nº 1718.
[30] Cfr. Mt 5,3-12.
[31] Cfr. Mt 5,
10-12
[32] São
Josemaria, Forja, nº 1005.
[33] Mt 5,12.
[34] São
Josemaria, Caminho nº 173.
[35] 1
Cor 12,31.
[36] 1
Cor 13, 7.
[37] Cfr Mt 5,
44-45.
[38] Lc 6,
36.
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