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Canção Nova |
Autor: Martin
J. Scott, sj
Tradução: Carlos
Martins Nabeto
Fora da Igreja Católica existe, na maioria das
vezes, uma ideia mais ou menos confusa sobre o que é a fé. Mesmo entre os
católicos, que de um modo geral têm um entendimento correto da fé, existem
alguns que, se questionados por um não católico a explicar o que é a fé, não
conseguiriam fazê-lo satisfatoriamente. Pode-se afirmar que a falta da correta
compreensão sobre a fé é a responsável por muitas das noções errôneas que
prevalecem na religião. Algumas pessoas imaginam que a religião revelada é um
assunto para a sua pessoal aprovação ou desaprovação; portanto, elas mesmas dão
o veredicto sobre o que aceitam ou rejeitam. Elas não percebem que a religião
revelada, como religião de Cristo, é uma comunicação de Deus para o homem. O
homem tem o direito de saber se a comunicação é de Deus, mas uma vez que ele
sabe que é de Deus, o seu dever é aceitá-la e não julgá-la com vistas à sua
aceitação ou rejeição. O próprio significado da palavra “revelação” quer
dizer “mostrar ou manifestar algo”. “Revelação divina” significa “mostrar algo de Deus, direta ou indiretamente”. O fato
de Deus dar a conhecer alguma coisa é prova de que o que Ele dá a conhecer é
verdadeiro, uma vez que Deus não pode enganar nem ser enganado.
Portanto, “fé” significa “crer naquilo que Deus nos declara”, não porque a
entendemos, nem porque a aprovamos, mas simplesmente porque o Deus que fala é a
própria Verdade que não pode enganar nem declarar o que é errado. Pelo fato de
admitirmos uma revelação, admitimos que Deus declarou algo para nós.
Como dito anteriormente, “revelação” significa “mostrar algo”. Significa “tirar o véu, para ver o que está debaixo dele”.
“Revelação divina” significa “tirar o véu divino para que
nos mostre algo sobre Deus” e que de outra forma não
saberíamos.
Podemos
conhecer Deus em certo grau a partir da Sua obra no universo, pelo processo de
raciocínio. Mas este é um conhecimento muito limitado:
–
“Dificilmente adivinhamos corretamente as coisas que estão na terra; e com
muito trabalho encontramos as coisas que estão diante de nós. Mas as coisas que
estão no céu, o que procurarão? E quem conhecerá o teu pensamento, senão a quem
deres sabedoria e envies do alto teu Espírito Santo?” (Sabedoria 9,16-17).
Pela
revelação, Deus nos deu conhecimento das coisas além da nossa capacidade de
aprendermos por nós mesmos, iluminando-nos sobre as coisas divinas. Por isso,
São Paulo, referindo-se à sua missão, diz:
– “Minha fala e minha pregação não estavam nas
palavras persuasivas da sabedoria humana, mas na demonstração do Espírito e do poder”.
E, novamente, ele diz:
– “Dou-vos a entender que o Evangelho que foi
pregado por mim não é segundo o homem, pois nem o recebi de homem e nem o
aprendi, senão pela revelação de Jesus Cristo”.
Nosso
Divino Senhor claramente declara o fato da revelação:
– “Ninguém jamais viu a Deus. O único Filho gerado,
que está no seio do Pai, Ele o declarou”.
Fé,
portanto, significa crer no que a revelação divina nos declara. Na fé, a nossa
crença não se baseia na nossa compreensão ou entendimento do que é revelado,
mas na veracidade de Deus, que o revela.
. . .
Deus
é verdade. Por isso, quando os judeus ficaram surpresos com a afirmação de
Cristo, que disse: “Se não credes em Mim, pelo menos crede nas obras que faço:
elas dão testemunho de Mim”, Ele então passou a fazer o que somente Deus podia
fazer. Pelo seu próprio poder, deu vista aos cegos, fez os coxos andarem, curou
o leproso, ressuscitou os mortos, predisse o futuro e comandou a natureza. Ele
estabeleceu assim o Seu direito de falar como Deus e de ser crido como Deus.
Tendo apresentado Suas credenciais divinas dessa maneira, Ele nos revelou
certas coisas sobre Deus e o nosso destino futuro que nunca seríamos capazes de
adquirir pelo esforço humano. Ele retirou o véu da divindade, até certo ponto,
dando-nos uma visão de Deus, dos Seus atributos e do relacionamento entre Ele
mesmo e nós.
Ele
nos disse que Deus não era apenas o Criador, que criou todas as coisas do nada,
mas que Ele também é nosso Pai. Além disso, Ele nos informou que Deus nos amou
a ponto de dar o Seu Filho Unigênito para a nossa salvação. Ele declarou ainda
que se vivermos como Ele manda, poderemos nos tornar filhos de Deus,
participantes da natureza divina, membros da família divina:
– “Para todos que O recebem, Ele dá o poder de se
tornarem filhos de Deus”.
Mas
Ele também afirma que Deus deve julgar toda a humanidade e que aqueles que não
viverem como Ele manda serão banidos para sempre da Sua presença. Essas e
muitas outras coisas nos são ensinado pela revelação.
Além disso, Cristo, tendo estabelecido a Sua
reivindicação divina, fundou uma Igreja para perpetuar a Sua missão e dotou
esta Igreja com garantias divinas. Pelo mesmo poder divino, pelo qual Ele
manifestou Deus à humanidade, Ele garantiu que a Sua Igreja deveria ensinar
somente a verdade. De fato, ele fez isso de tal modo que proclamou que a Sua
Igreja ensinava com a mesma autoridade que a Sua, ao dizer: “Quem vos ouve, ouve a Mim”.
Portanto,
o significado da fé é que o que a revelação ensina e o que a Igreja ensina
devem ser cridos por nós com muita firmeza, como se Deus nos tivesse dirigido
pessoalmente. A fé não é uma “alta probabilidade”, nem uma “alta persuasão”,
mas uma firme convicção. E essa convicção não se baseia no fato de a crença ser
compreendida por nós, nem em evidências no Nome [de Jesus], nem em Seu apelo
razoável para conosco, mas apenas na veracidade de Quem revela – a saber, Deus
-, que não pode enganar nem ser enganado.
A
Encarnação, por exemplo, não é compreendida por nenhuma inteligência mortal. A
Encarnação significa que Deus se fez homem. Como isso foi realizado, não
sabemos; mas a revelação afirma que Deus Filho, a 2ª. Pessoa da Santíssima
Trindade se fez homem. Nós cremos nisso e, se necessário, morreríamos por nossa
crença, não porque compreendemos esse mistério, mas porque Deus assim nos revelou.
O
mesmo se dá com a Eucaristia. Ninguém entende como, pelas palavras da
consagração, o pão e o vinho se tornam o Corpo e o Sangue de Cristo. Não há
evidências dessa mudança e, além disso, ela está totalmente além da nossa
compreensão, mas cremos na Palavra de Deus. Isso é fé, crendo não no testemunho
dos sentidos, não na evidência, não no entendimento, mas na veracidade de Deus.
É a maior honra que podemos prestar a Deus, pois por nossa crença sacrificamos
a nossa mais alta faculdade, o nosso julgamento, no altar de Sua veracidade.
De
tamanha importância é esse culto à fé, que as Escrituras declaram que “sem a fé
é impossível agradar a Deus”. O próprio Deus Todo-Poderoso atribui um valor tão
alto [à fé], a ponto de dizer: “Desposarei contigo na fé”. A partir disso,
resta evidente que a característica essencial da religião é a fé. Não podemos
prestar maior honra ao próximo do que acreditar nele, mesmo quando ele nos diz
que não podemos entender nem provar. Se você tem provas para acreditar numa
declaração, está obrigado a consentir, pois as provas obrigam ao consentimento.
Deus quer que confiemos Nele e cremos Nele simplesmente porque Ele é Deus. Se
Ele revelasse apenas o que coincidisse com a nossa compreensão ou aprovação,
haveria pouco ou nenhum crédito na nossa crença. Mas quando, como nos mistérios
da fé, cremos sem provas e sem compreender, crendo apenas na Palavra de Deus,
estamos verdadeiramente prestando a Ele uma honra que é mais digna Dele e mais
aceitável a Ele.
. . .
Nosso
conhecimento das coisas, portanto, pode ser adquirido pela experiência pessoal
ou pelo testemunho de outras pessoas. A maior parte do nosso conhecimento
depende do testemunho de outras pessoas. Todo o nosso conhecimento da História
depende do testemunho humano. Até o conhecimento de um evento tão recente como
a Guerra de Independência americana de 1776, repousa na fé do testemunho humano.
Nenhum homem que hoje vive testemunhou essa guerra. Temos fé naqueles que a
registraram e nessa fé repousa o nosso conhecimento. A maior parte do nosso
conhecimento depende da fé em outras pessoas. Até certa idade, tomamos quase
tudo da palavra dos nossos pais. Depois, tomamos como certo o que os nossos
professores e livros didáticos nos transmitem. Mais tarde, depositamos fé nos
nossos empregadores, médicos, advogados e sócios. A vida seria impossível e o
conhecimento seria quase nulo a menos que depositemos fé no testemunho humano e
na natureza humana.
É
claro que nossa fé nas pessoas pode ocasionalmente receber um choque terrível.
Mas isso é prova de que tal experiência foi inesperada, fora do comum e
contrária à regra. Por isso, diz-se que “as exceções provam a regra”. Se,
portanto, a humanidade depende tanto da fé para obter conhecimento e bem-estar,
não devemos nos surpreender que a fé seja um elemento importante no nosso
relacionamento com Deus. E se depositamos fé no testemunho humano, estamos mais
prontos para depositarmos fé no testemunho divino: Deus é o Criador do homem;
Ele tem direito à nossa confiança (e muito mais do que o homem falível!); por
isso, o Apóstolo diz:
– “Se recebermos o testemunho dos homens, o
testemunho de Deus é maior” (1João 5,9).
E
novamente ele declara:
–
“Quem crê no Filho de Deus tem em si mesmo o testemunho de Deus”.
Deus
é espírito. Nenhum homem mortal jamais viu a Deus, como Deus. Nós O vimos em
alguns dos Seus efeitos: Seu poder demonstrado nos elementos da natureza, Sua
bondade e beleza manifestadas na Criação, Seu conhecimento e grandeza como
exibidos no firmamento. Finalmente, vimos Seu amor e Sua misericórdia pela
revelação de Si mesmo na pessoa de Jesus Cristo, o Deus-Homem. Cristo é chamado
nas Escrituras de “Palavra”:
– “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava
com Deus, e a Palavra era Deus… E a Palavra se fez carne e habitou entre nós”.
Para
o homem, uma palavra é a manifestação da mente invisível. Então Cristo, a
Palavra, é a manifestação visível do Deus invisível:
– “Ninguém jamais viu a Deus: o Filho Unigênito,
que está no seio do Pai, Ele o declarou” (João 1,18).
A
misericórdia, a ternura e o amor de Jesus pela humanidade são as manifestações
da misericórdia, da ternura e do amor de Deus. Cristo realizou Suas obras
divinas a fim de mostrar que Ele era realmente Deus. Já que Ele falou com a
autoridade de Deus, reivindicou a lealdade devida a Deus e ordenou que fosse
adorado como Deus, necessariamente teve que apresentar as credenciais de Deus.
E isso Ele o fez, não apenas por Sua personalidade, mas também e especialmente
pelos Seus milagres, o selo divino na Sua missão. Portanto, João, ao concluir o
seu Evangelho, diz:
– “Muitos outros sinais fez também Jesus aos seus
discípulos, que não estão escritos neste livro. Mas estes são escritos para que
possais crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus e, crendo, possais ter vida
em Seu Nome”.
Portanto,
a fé em Cristo significa a crença absoluta no que Ele ensinou, porque Ele a
ensinou:
– “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo aquele que Nele crer não pereça, mas tenha a vida
eterna” (João 3,16).
Fé – deixe-me repetir – não é prova, não é a
conclusão de um processo de raciocínio, não é uma inferência lógica, mas é
simplesmente a crença absoluta na revelação divina, simplesmente porque é
divina. Nós, podemos empregar todas as nossas faculdades para ter certeza de
que houve uma revelação divina, mas uma vez que admitimos que a revelação é um
fato o nosso dever é crer, não debater. E diga-se enfaticamente que, se não
houve revelação divina, o Cristianismo é a maior fraude já cometida na
humanidade. Contudo, se houve uma revelação divina, ela deve ser aceita em sua
totalidade e com a mais firme crença. Não há espaço para perguntas ou dúvidas
depois do que Deus falou. É por isso que a fé católica é tão forte e tão
absoluta. Não pode haver vacilação ou hesitação, nem “se”, “e”, “ou” e “mas” quando
a revelação declara algo. Portanto, fé significa “o firme consentimento da vontade com o que a revelação ensina”.
A fé não é seletiva, não permite aceitar uma parte e rejeitar a outra parte do
que é revelado. Se qualquer parte da revelação é falsa, tudo é falso, pois nada
que contenha o mínimo erro pode provir de Deus. Ao contrário, se nem tudo é
verdade, deve-se dizer que não é revelação.
. . .
A
fé é uma virtude. Como toda virtude, ela deve ser testada. Se Deus nos
revelasse apenas o que aprovamos, não praticaríamos a fé, mas a censura. E é
isso que muitas pessoas estão fazendo agora em nome da religião: ao invés de
crer em Deus, censuram a Deus. Eles estão dispostos a crer que Deus é amor, mas
não que Ele é justo e pune os iníquos; eles estão dispostos a crer no Céu, mas não
no Inferno. Em outras palavras: eles creem em si mesmos, não em Deus. Fé não é
isso! Fé é a crença firme no que Deus declara, porque é Ele quem declara.
Sendo
uma virtude sobrenatural, a sua recepção e prática exige a graça de Deus. Mas a
graça de Deus está ao alcance de todos aqueles que têm boa vontade e fazem sua
parte para corresponder à graça.
A
revelação tem boas credenciais, como qualquer fato histórico. Os Evangelhos
estão entre os documentos mais autênticos da humanidade. Os maiores estudiosos de
todos os credos concordam que os Evangelhos são História genuína. O Cristo dos
Evangelhos é um personagem histórico. Seus milagres são suas credenciais. Se
rejeitarmos a revelação, devemos rejeitar a Cristo e considerá-Lo um impostor.
Aqueles que fazem isso devem estar preparados para fazê-lo quando enfrentarem
Deus no Julgamento. Mas se a revelação for aceita, cada parte dela deve ser
crida; e tão firmemente crida que, se necessário, morreremos pela nossa crença.
Essa é a fé dos Santos, a fé dos Mártires, a fé das centenas de milhões de
pessoas que, em todas as gerações, viveram de acordo com a revelação e estavam
preparadas para morrer por ela.
Cristo é a luz do mundo: Sua
revelação é o farol da vida eterna. Bem-aventurados os que são guiados por essa
luz, pois ela os conduz à própria casa de Deus e à filiação na família de Deus.
(Partes).
Veritatis Splendor