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sábado, 25 de abril de 2020

Coronavírus: a oportunidade de uma economia menos consumista, analisa Gustavo Cerbasi

“Será um novo mundo e uma nova economia mais acessível a todos, menos consumista, menos poluente. Ao menos, temos a oportunidade de que seja assim, melhor para todos. Está em nossas mãos decidir esse rumo”, afirma Gustavo Cerbasi.

Pe. Arnaldo Rodrigues

A pandemia não somente trouxe o medo da contaminação, mas também grandes preocupações econômicas. Muitas pessoas estão assustadas e com grandes dúvidas. Com o objetivo de trazer algumas dicas para a superação também econômica destes desafios, o Vatican News conversou com um dos maiores economista brasileiro, Gustavo Cerbasi, autor de 16 livros e especialista e inteligência financeira. 
Vatican News - Estamos diante de um desafio mundial jamais imaginado pela nossa geração. Para o senhor, quais os maiores impactos econômicos que este tempo traz para a vida de cada pessoa? 
Gustavo Cerbasi - Sem dúvida, os impactos percebidos em um primeiro momento são os resultantes de perdas. Famílias desesperadas para manter a condição de moradia e alimento para os filhos, comerciantes perdendo seus negócios, empresas fechando e demitindo, sinais de desespero e de depressão nas famílias. As perdas estão e continuarão sendo muito significativas. Muitos negócios deixarão de existir e hábitos de consumo serão perdidos. Porém, há a outra face da moeda que será percebida depois de um certo tempo. O isolamento social exigido pela pandemia obrigou as pessoas a organizarem sua atividade econômica de forma mais eficiente, trabalhando e consumindo de dentro de casa. Essa não é uma situação provisória. Acredito que pelo menos um em cada três profissionais que se adaptaram ao home office irão continuar nessa condição após a pandemia, por perceber os benefícios do tempo economizado em deslocamento e da funcionalidade de consumir sem sair de casa. O consumismo deve perder força, e o consumo essencial deve ganhar importância no orçamento familiar. Com menos deslocamento e desperdícios, a contribuição para o meio ambiente já é percebida, com exemplos que correram o mundo como os patos e golfinhos nos canais de Venezia e as montanhas do Himalaia que voltaram a ser avistadas da Índia. A sociedade se mobilizou e se uniu como nunca havia feito antes. Refiro-me não apenas à sociedade de um município ou de um país, mas da união mundial em torno da necessidade de sobrevivência. Acredito que sairemos dessa situação mais unidos, mais conscientes, mais humildes, mais empáticos com a necessidade do próximo, mais fortalecidos como humanidade. Não sabemos ainda quanto tempo levaremos para perceber isso e quantas vidas ainda serão levadas e quantos negócios serão fechados, mas a lição já é evidente e muito forte.
VN - O senhor é a maior referência em educação financeira no Brasil. O que o nos aconselha para enfrentar este momento de grande perturbação também econômica?
GC - O primeiro passo é entender que nem todas as famílias e negócios foram impactados da mesma forma. Temos três situações claramente distintas nessa crise. A primeira é de famílias e empresas em desesperadora situação de falta de recursos para honrar seus compromissos. Quem está nessa situação deve cortar radicalmente seus gastos, preservar suas poucas reservas com muito cuidado e, principalmente, não se deixar abater por notícias e estatísticas ruins. É muito importante acionar suas redes sociais, trocar informações com outras pessoas que estão na mesma situação, buscar soluções criativas, anunciar sua disponibilidade, a disponibilidade de seus ativos (veículo, equipamentos, galpões, estoques) e se propor a fazer parcerias com concorrentes. Unindo forças, vários soldados podem vencer uma batalha. Fracos e sozinhos, dois soldados podem ambos tombar em uma luta concorrencial. 
A segunda situação é a de pessoas que tiveram seu equilíbrio pouco afetado, porque tinham reservas financeiras ou negócios que seguiram funcionando, mas que tiveram grandes perdas em investimentos ou em planos que foram frustrados. Esse é o grupo de pessoas que tende a desenvolver mais problemas psicológicos, normalmente tentando esconder da família grandes fracassos nos investimentos. A recomendação para esse grupo é ter a humildade de compartilhar com conhecidos suas perdas e seus medos, estudar sobre os planos e investimentos onde teve perdas e obter as lições desse aprendizado. A cada crise, os mais preparados normalmente são os que não se deixaram abater pelos erros de crises anteriores.
Finalmente, a terceira situação é a de pessoas que foram pouco ou nada afetadas pela pandemia ou até beneficiadas por ela. Trato aqui de investidores e de famílias e empresários que contavam com boas reservas financeiras e de quem tinha negócios apropriados à recomendação de isolamento social, como empresas de delivery, cursos on-line e segmentos de negócios que se beneficiaram da crise (produtores de álcool em gel, por exemplo). Para esses, cabe o alerta de que não se pode comemorar lucros ou proteção muito precocemente, pois, a médio prazo, uma economia enfraquecida poderá afetar também seus negócios e sua renda. Cabe a essas pessoas uma mobilização no sentido de se colocar no lugar dos dois grupos citados anteriormente e compartilhar ideias criativas, boas notícias e necessidades que surgem em seu negócio. Por exemplo, empresas de delivery podem fazer parcerias com motoristas de aplicativos e empresas de logística para aumentar o alcance de seus pedidos on-line. Essas parcerias, se derem certo, podem até se tornar definitivas após essa crise econômica. E, se bem sucedidas, acredito que é o melhor caminho para acelerar a recuperação das economias de todo o mundo.
VN - Falando de uma economia doméstica, como as famílias podem se organizar, de forma prática, neste período com os cintos apertados?
GC - Vou dividir minha reflexão em duas partes: o que poderia ter sido feito antes para minimizar as dificuldades, e o que pode ser feito agora, tanto para quem se planeja quanto para quem está com problemas financeiros.
É importante entender que existem técnicas de planejamento familiar que protegem as famílias de situações de dificuldades financeiras. A mais importante delas é manter uma reserva de emergências, equivalente a três a seis meses dos gastos mensais da família, investidos com segurança e prontos para ser sacada a qualquer momento. Outra técnica importante é adotar um orçamento resiliente ou flexível. Isso se faz adotando um estilo de vida mais simples do que a nossa renda pode pagar, destinando parte dela para gastos com lazer, cultura e experiências. O raciocínio básico é: se minha casa é menos espaçosa do que eu gostaria, então estarei fora de casa no fim de semana, consumindo cultura e experiências com amigos. Quem adota este estilo de uma vida mais simples e mais rica em experiências, tem menos dificuldade para manter as contas do lar em períodos de desemprego ou de inatividade.
Sobre o que pode ser feito agora, a minha orientação é que as famílias aproveitem a crise como argumento para mudar o seu estilo de vida. Já que fomos forçados a parar e pensar, que pensemos então em quais gastos podem ser diminuídos e o que pode ser melhorado no estilo de vida. Pesquise sobre práticas minimalistas, para adotar um estilo de consumo limitado apenas ao essencial (importante durante a pandemia). Quando a situação econômica começar a dar sinais de melhoria, muitos que adotaram o estilo de vida minimalista sentirão seus benefícios e desejarão mantê-lo. Outros perceberão a oportunidade de adotar um estilo de vida que chamo de especialista, com mais gastos com aquilo que é verdadeiramente importante para cada família: mais gastos com seu aprendizado, com seu esporte, com experiências, enfim, com um estilo de consumo que permita lidar melhor com situações de crise.
VN -  Muitos pequenos e médios comerciantes estão preocupados com os investimentos feitos, contas para pagar e funcionários para administrar. O que o senhor aconselharia para que se organizem de modo a manter um equilíbrio econômico e emocional,  e conseguirem resistir com seus negócios a esta pandemia?
GC - Há alguns passos a serem dados do ponto de vista financeiro do negócio. O primeiro deles é sentar em cima do caixa e cortar absolutamente tudo o que não for extremamente necessário. Deve-se negociar com fornecedores e credores, simplificar processos, cortar desperdícios e apagar luzes. O segundo passo, que ajuda muito a intensificar o primeiro, é estudar todas os produtos e serviços, identificar aqueles que trazem maior margem de lucro e passar a trabalhar SOMENTE com esses produtos. Na quase totalidade dos negócios, oferece-se um mix de produtos e serviços aos clientes em que muitos desses itens são vendidos com perdas, apenas para poder prestar o serviço. Essa pandemia é uma oportunidade de comunicar aos clientes que, por exemplo, seu restaurante estará entregando por delivery apenas os três ou quatro pratos mais pedidos do cardápio. Com menos pratos, o custo de manuseio e o desperdício são menores, a eficiência do serviço é maior e a margem de lucro também é maior. Cada empresa deve se tornar especialista naquilo que faz melhor. Então, surge a oportunidade de uma terceira mudança importante: formar parcerias com aqueles (muitas vezes concorrente há até pouco tempo) que são especialistas naquilo que sua empresa não é. Em vez de um restaurante especialista em carnes entregar carnes e massas, considerando que as massas seriam vendidas com prejuízo ou pouca margem, passa a vender apenas carnes e faz parceria com um especialista em massas, ganhando comissão pelas vendas feitas para o parceiro. As parcerias são essenciais, pois permitem focar no que somos bons, e também lucrar com comissões de vendas feitas em nome de parceiros que fazem melhor aquilo que antes nos trazia perdas.
VN - Sabemos que, após o término desta pandemia, a rotina de nossas vidas voltará de forma gradual e muito diferente. Certamente isto incidirá na economia da população (famílias, comerciantes etc). Quais os passos que o senhor indicaria para um pós-pandemia? Quais os cuidados que devemos ter também nestes momentos? 
GC - Certamente viveremos em um mundo muito diferente do que vivemos há até pouco tempo atrás. Recomendo que as pessoas não cultivem a ideia de que tudo passará em breve. Não, não ouviremos uma sirene nas ruas anunciando que chegou a hora de sairmos correndo de nossas casas para nos abraçarmos. A recuperação será lenta, exigindo cuidados redobrados. Por isso, quem pode deve ficar mais tempo em casa, valorizar sua estrutura de home office. Quem precisa sair deve redobrar seus cuidados com proteção, comunicar seus clientes sobre esses cuidados e sobre o custo maior que está tendo para proteger a saúde dos próprios clientes. Infelizmente, alguns setores da economia ainda sofrerão por meses em razão dessa recuperação lenta. Mas, como eu disse, acredito que estamos criando um mundo novo. Alguns segmentos de negócios, como restaurantes e compras, dependerão mais de vendas on-line e terão que diferenciar seus preços para entrega (mais baratos) daqueles cobrados pela experiência presencial, mais exclusiva. O setor de cultura e entretenimento também terá menos eventos presenciais, com menos público e preços mais altos pela exclusividade, mas deverá lucrar mais ao transmitir essas experiências para o público de casa a preços bem mais acessíveis, em um volume de público maior do que o que tinha antes. Acredito que será um novo mundo e uma nova economia mais acessível a todos, menos consumista, menos poluente. Ao menos, temos a oportunidade de que seja assim, melhor para todos. Está em nossas mãos decidir esse rumo.
Vatican News

Nova datação do Novo Testamento (Parte 6/11): a Epístola de Tiago


Bíblia - Tradição - Magistério

6. A EPÍSTOLA DE TIAGO
No início do Capítulo 5 (“A Epístola de Tiago”), Robinson afirma o seguinte:
  • “A Epístola de Tiago é um desses documentos aparentemente intertemporais que poderiam ser datados quase que em qualquer época e (…) na verdade, foi situado em praticamente todos os pontos na lista de escritos do Novo Testamento. Assim, Zahn e Harnack, escrevendo no mesmo ano de 1897, a situaram respectivamente como primeira e penúltima [posição], com um intervalo de quase 100 anos! Não contém referências a eventos públicos, movimentos ou catástrofes. As ‘guerras e lutas’ de que fala são aquelas perenes da agressividade pessoal (4,1s), não as datáveis guerras e rumores de guerra entre nações ou grupos. O seu calendário é determinado pelo ciclo natural da agricultura em tempos de paz (5,7) e o círculo social da pequena sociedade burguesa (4,11-5,6). Não há nomes de lugares, nem indicações de destinatário ou remessa, seja na forma de título, seja na forma de saudação. De fato, não há nomes próprios de espécie nenhuma, salvo o do próprio Tiago no versículo final e os de personagens comuns do Antigo Testamento como Abraão, Isaac, Raab, Jó e Elias. Também como forma de literatura, se encontra nessa tradição quase indatável da sabedoria prática judaico-cristã que inclui os Provérbios, o Eclesiástico, a Sabedoria de Salomão, os Testamentos dos Doze Patriarcas, o Manual de Disciplina de Qumran, a Epístola de Barnabé, o Pastor de Hermas e a Didaqué. No entanto, ainda que as relações, para trás e para frente, sejam evidentes, não há evidência decisiva de uma dependência literária em qualquer uma de ambas as direções que pudesse fixar a Epístola de Tiago no tempo ou no espaço. A única fronteira clara que cruza esta corrente da tradição é a que existe entre o Judaísmo e o Cristianismo e, inclusive, esta fronteira é menos marcante aqui do que em qualquer outro gênero de literatura” (pp.109-110).
O autor sublinha que a falta de polêmica contra o Judaísmo é um indício significativo para uma redação não-tardia. Os pecados que Tiago aponta são os mesmos que Jesus e os profetas acusam seus compatriotas. A oposição que os cristãos enfrentam não é uma perseguição sistemática mas a opressão e o desprezo dos ricos. Não há nada em Tiago que vá além do que está descrito na primeira metade dos Atos dos Apóstolos.
A carta de Tiago tampouco contém sinais de grandes desenvolvimentos doutrinais, litúrgicos ou hierárquicos. A doutrina de Tiago sobre a justificação pela fé e pelas obras não parece ser uma polêmica contra a doutrina de Paulo sobre a justificação pela fé; parece mais que Paulo tenha se aprofundado na reflexão levantada por Tiago.
Sobre a autoria da carta, Robinson pensa que a grande simplicidade com que se apresenta o autor (1,1: “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo”) é um forte argumento contra a pseudonímia. Na hipótese de pseudonímia, dificilmente se teria deixado de aludir a Tiago como “irmão do Senhor” e, se a redação da carta fosse mesmo tardia, muito provavelmente se teria acrescentado alguma referência a Tiago como “bispo de Jerusalém”.
Robinson refuta os principais argumentos contra a autenticidade da Epístola de Tiago:
1) A doutrina desta epístola sobre a Lei não concorda com a dos judaizantes adversários de Paulo; porém, segundo Atos, o próprio Tiago não era judaizante e, no Concílio de Jerusalém, sua posição pôde ser bem harmonizada com a de Paulo;
2) A escassa evidência externa da aceitação da epístola pela Igreja primitiva não é tão significativa, já que as citações e os testemunhos (e sua conservação) são fenômenos bastante fortuitos;
3) O fato de a língua empregada na epístola seja um grego elegante não prova que Tiago não tenha sido o autor. As investigações mais recentes demonstram que o conhecimento da língua grega entre os judeus da Palestina do século I era bem generalizado.
A seguir, Robinson assinala notáveis paralelos entre a Epístola de Tiago e o Discurso de Tiago e a Carta Apostólica de Atos 15.
No final do capítulo, o autor volta à questão da datação da carta. Tiago foi assassinado no ano 62, razão pela qual essa data assinala um limite superior. Deve-se notar que Tiago não alude em momento nenhum a missão entre os gentios, o que não implica que esta não existisse, mas sugere fortemente que ainda não tinha se convertido em causa de conflito entre os cristãos. Este fator aponta claramente para um redação não-tardia. Robinson se inclina pela hipótese de uma redação um pouco anterior ao Concílio de Jerusalém (entre 47 e 48). Esta datação não-tardia teve o apoio, surpreendentemente persistente, de muitos especialistas. Tiago seria assim o primeiro documento concluído e sobrevivente da Igreja.
Veritatis Splendor

Nova datação do Novo Testamento (Parte 5/11): os Atos dos Apóstolos e os Evangelhos Sinóticos

Os Atos dos Apóstolos e os Evangelhos Sinóticos

5. OS ATOS DOS APÓSTOLOS E OS EVANGELHOS SINÓTICOS
No início do Capítulo 4 (“Atos e Evangelhos Sinóticos”), Robinson trata brevemente da autoria do Evangelho de Lucas e dos Atos dos Apóstolos, concluindo que não vê razões decisivas contra a aceitação da atribuição tradicional de ambas as obras (ou melhor dizendo, de Lucas-Atos, uma obra conjunta composta de duas partes) a São Lucas.
Em seguida, o autor passa a considerar o problema da datação de Lucas-Atos, sustentando que os três principais fatores a se levar em conta são:
a) As profecias sobre a queda de Jerusalém, em Lucas;
b) A dependência do Evangelho de Lucas em relação ao Evangelho de Marcos (tema que se inscreve dentro do “problema sinótico”); e
c) A parte final de Atos.
Robinson já tratou do fator (a), concluindo que não há razão suficiente para supor que essas profecias tenham sido compostas depois do evento. Deixando para o final do capítulo a análise do problema sinótico, o autor passa a considerar o problema da parte final de Atos:
  • “As palavras finais de Atos são: ‘Paulo permaneceu 2 anos completos no lugar que havia alugado e recebia todos que vinham até ele. Pregava o Reino de Deus e ensinava o referente ao Senhor Jesus Cristo com toda liberdade e sem nenhuma perturbação'” (Atos 28,30-31).
A pergunta é: por que a narrativa termina aqui? Como disse Harnack (em “A Data de Atos” 95s):
  • “Ao longo de 8 capítulos inteiros, São Lucas mantém seus leitores intensamente interessados no progresso do julgamento de São Paulo, até que, simplesmente, no final, ele os desilude totalmente: eles (os leitores) não ficam sabendo nada sobre o resultado final do julgamento! Tal procedimento é escassamente menos indefensável que aquele que relatasse a história de Nosso Senhor e terminasse a narrativa com a entrega a Pilatos, pois Jesus tinha sido trazido agora até Jerusalém e tinha feito sua aparição diante do principal juiz da principal capital” (pp.82-83).
Várias explicações foram propostas para este final, mas nenhuma delas parece satisfatória, senão a mais simples (e a que se deveria prestar maior atenção): o relato de Atos termina aqui porque São Lucas escreveu Atos logo depois disto. É importante notar que Atos não menciona a perseguição aos cristãos por parte do imperador Nero, nem a morte no ano 62, por ordem do Sinédrio (que aproveitou um momento, após a morte do procurador Festo, para aplicar a pena capital sem a autorização de Roma) de Tiago, “o irmão do Senhor”, líder da comunidade cristã de Jerusalém. Ademais, Atos tampouco oferece qualquer indício da rebelião judaica contra os romanos. A partir da leitura de Atos, ninguém consegue perceber o violento enfrentamento que ocorreu pouco depois entre judeus e romanos.
Se Atos foi escrito na etapa em que sua narrativa termina (isto é, no início dos anos 60), isto implica que o Evangelho de Lucas (obviamente anterior, cf. Atos 1,1) foi escrito cerca de uns 30 anos antes do que geralmente se supõe. E se também supormos, com a grande maioria dos especialistas do Novo Testamento, a prioridade de Marcos, isto implica que Marcos foi escrito bem cedo, talvez por volta do ano 50.
Isto leva o autor a reconsiderar o “problema sinótico”, ou seja, o problema das relações, semelhanças e diferenças entre os três Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). Como se sabe, a solução mais comumente aceita deste problema é a “Hipótese dos 2 Documentos”. Esta hipótese sustenta que Mateus e Lucas dependem de dois documentos anteriores: Marcos e Q, sendo Q uma hipotética fonte de ditos de Jesus. Robinson afirma que o consenso em torno desta solução fundamental “começou a mostrar sinais de esgotamento. Ainda que esta seja todavia a hipótese dominante, contida nos manuais-texto, suas conclusões já não podem ser tidas por certas, entre os ‘resultados seguros’ da crítica bíblica” (p.86).
O autor defende a tese de que as interrelações entre os três Evangelhos Sinóticos são muito mais complexas do que as permitidas pela Hipótese dos 2 Documentos. Sua posição sobre o problema sinótico é representada pelo seguinte esquema provisório:
1. Formação das coleções de histórias e ditos (P, Q, M e L): anos 30 a 40+
2. Formação de “proto-Evangelhos”: anos 40 a 50+
3. Formação dos nossos Evangelhos Sinóticos: anos 50 a 60+
Robinson dá muita importância aos testemunhos da antiga tradição cristã sobre a redação dos Evangelhos. Em particular, ele sublinha que a Didaqué fala muitas vezes do Evangelho (no singular), como se fosse uma única obra literária. Também destaca que são bem numerosos os testemunhos antigos (Papias, Ireneu, Clemente de Alexandria, Jerônimo, Prólogo Antimarcionita) que relacionam o Evangelho de Marcos com a pregação de Pedro, de quem Marcos foi assistente e intérprete. Vários desses testemunhos afirmam que Marcos redigiu o seu Evangelho em Roma.
O autor conclui:
  • “Portanto, creio que alguém deve estar preparado para levar a sério a tradição de que Marcos – em cuja casa, em Jerusalém, Pedro buscou refúgio antes de sua apressada fuga (Atos 12,12-17) e a quem, mais tarde, em Roma, iria se referir a ele como seu ‘filho’ (1Pedro 5,13) – acompanhou Pedro até Roma no ano 42 como seu intérprete e catequista e, depois da partida de Pedro da capital, aceitou o reiterado pedido de registrar a pregação do Apóstolo, talvez por volta do ano 45” (p.106).
Veritatis Splendor

Nova datação do Novo Testamento (Parte 4/11): as Epístolas Paulinas

Bíblia - Tradição - Magistério

4. AS EPÍSTOLAS PAULINAS
No início do Capítulo 3 (“As Epístolas Paulinas”, Robinson afirma o seguinte:
  • “Se ignoramos as soluções excêntricas e a sombra das epístolas controversas, podemos dizer que há um consenso bastante geral sobre a datação da parte central do ministério e da carreira literária de São Paulo, com uma margem de diferença de pouco mais de dois anos para cima ou para baixo. Isto está longe de ser o caso de qualquer outra parte do Novo Testamento: os Evangelhos, os Atos, as demais Epístolas e o Apocalipse. As Epístolas Paulinas constituem, portanto, um importante ponto fixo e um marco, não apenas de cronologia absoluta como também de extensão relativa contra a qual é possível medir outros desenvolvimentos” (p.30).
Não obstante, por diversas razões que o autor explica, é impossível determinar com certeza absoluta as datas exatas dos atos da vida de São Paulo (cf. pp.30-32).
Robinson sustenta que se deve dar prioridade aos dados cronológicos trazidos pelos escritos de Paulo, preferindo-os aos [dados cronológicos] dos Atos dos Apóstolos; no entanto, afirma que ambos os testemunhos podem ser reconciliados muito bem.
Após estas e outras observações preliminares, o autor dedica quase 18 páginas (pp.33-50) a uma tentativa de esboço da cronologia da vida de Paulo, como marco de trabalho para o estudo da cronologia das suas cartas. Robinson parte do dado que considera mais confiável: uma inscrição descoberta em Delfos e publicada em 1905, que permite datar com grande exatidão o proconsulado de Galião na Acaia (cf. Atos 18,12):
  • “Com maior certeza podemos dizer que Galião assumiu o seu cargo no início do verão do ano 51 e que Paulo compareceu perante ele pouquíssimo tempo depois, provavelmente em maio ou junho” (p.33).
Pulando muitas páginas de argumentação erudita, que seria impossível resumir brevemente aqui, indicarei o resultado a que chegou o autor:
  • “Neste ponto, podemos resumir as nossas conclusões sobre o esboço da carreira de Paulo, recordando que as datas absolutas abaixo não podem ser mais do que aproximadas:
    33 – Conversão
    * 35 – 1ª visita a Jerusalém
    * 46 – 2ª visita a Jerusalém (para alívio da fome)
    * 47/48 – 1ª viagem missionária
    * 48 – Concílio de Jerusalém
    * 49/51 – 2ª viagem missionária
    * 52/57 – 3ª viagem missionária
    * 57 – Chegada a Jerusalém
    * 57/59 – Prisão em Cesareia
    * 60/62 – Prisão em Roma” (pp.49-50).
Na terceira e última parte do capítulo, Robinson tenta inserir cada uma das cartas de São Paulo dentro do marco geral anteriormente traçado. Após muitas páginas de argumentação erudita (pp.50-78), o autor resume assim as suas conclusões:
  • “Se as nossas conclusões estiverem corretas, a totalidade da literatura existente de Paulo (sem esquecer que logo em 2Tessalonicenses 3,17 ele fala de “todas as minhas cartas”) parece cair dentro de um período de 9 anos; na verdade, quanto às suas [duas] cartas primeiras cartas (aos Tessalonicenses), encontram-se dentro de um espaço assombrosamente pequeno de 4 anos e meio. Para esclarecer isto, podemos encerrar com um resumo de datas:
    * 50 (início) – 1Tessalonicenses
    * 50 (ou início de 51) –2Tessalonicenses
    * 55 (primavera) – 1Coríntios
    * 55 (outono) – 1Timóteo
    * 56 (início) – 2Coríntios
    * 56 (final) – Gálatas
    * 57 (início) – Romanos
    * 57 (final da primavera) – Tito
    * 58 (primavera) – Filipenses
    * 58 (verão) – Filemon, Colossenses e Efésios
    * 58 (outono) – 2Timóteo
    Deve-se enfatizar novamente que as datações absolutas poderiam se mover mais ou menos em 1 ano para cima ou para baixo e que o esquema é mais uma tentativa do que uma certeza. Porém, a importância destas conclusões, para as que não são particularmente polêmicas (exceto para as Epístolas Pastorais), é tripla:
    a) Elas fornecem um critério (ou escala de tempo) razoavelmente fixo para se comparar outras evidências;
    b) Se de fato a totalidade da carreira literária extremamente diversa de Paulo ocupou um lapso tão breve, isto nos oferece um critério objetivo sobre quanto tempo é necessário dar aos desenvolvimentos na teologia e na prática. Ainda que possa parecer, à primeira vista, extremamente curto, não deveríamos esquecer outras duas regras de medida: todo o ensinamento e ministério de Jesus (…) levou de três a quatro anos. E todo o desenvolvimento do pensamento e da prática do Cristianismo primitivo até a morte de Estêvão e a conversão de Paulo, incluindo a primeira exposição helenística do Evangelho, se deu dentro de um período de duração semelhante. Na verdade Hengel, em seu importante artigo “Christologie und neuetestamentliche Chronologie”, bem argumenta que a etapa crucial do entendimento básico da Igreja sobre Cristo e seu significado esteve representada por 4 ou 5 anos “explosivos”, entre 30 e 35 (…) Os argumentos a priori da Cristologia à cronologia e, na verdade, de qualquer “desenvolvimento” ao tempo por ele requerido são quase que totalmente não-confiáveis.
    c) A hipótese de trabalho que fizemos, de confiar em Atos até que se provasse o contrário, foi muito reinvindicada substancialmente. Não há praticamente nada no relato de Lucas que choque com a evidência paulina e, na última parte de Atos, as correspondências são notavelmente próximas. Inclusive, nos discursos atribuídos a Paulo e especialmente naqueles em que se pode presumir que Lucas esteve presente (Atos 20 e 22-25), há paralelos que sugerem que estão longe de serem composições puramente livres” (pp.78-79).
Como amostra, indicarei apenas alguns dos argumentos expostos por Robinson para chegar a estas conclusões:
  • “Agora não há quase ninguém que negue a autenticidade de Filemon. Há alguns, especialmente na Alemanha, que questionam Colossenses por razões estilísticas e teológicas. Porém, a interrelação próxima e complexa de nomes como Filemon aponta fortemente para o fato de que essas duas epístolas foram ditadas pela mesma pessoa, ao mesmo tempo, e enviadas para Colossos por Tíquico, na companhia de Onésimo (Colossenses 4,7-9; Filemon 12)” (p.57).
A autenticidade de Efésios é bem mais discutida do que a de Colossenses. As duas teses principais sobre esta questão são a tradicional (que atribui a autoria a Paulo) e a de que um discípulo da 2ª geração, que imita Paulo e expõe sua teologia após sua morte. Robinson pensa que é muito mais provável que o próprio Paulo tenha escrito uma carta como Efésios, que coincide em 90 a 95% com seu estilo habitual. A tese contrária enfrenta graves dificuldades: o autor deveria ter combinado uma imitação servil do estilo de Paulo com uma profunda originalidade teológica. Acrescento que seu gênio teológico se mostra, por exemplo, na profunda doutrina sobre o matrimônio (Efésios 5,21-23); os gênios desta magnitude não costumam passar pela história sem deixar outros rastros. Ademais, seria inexplicável o porquê de o imitador ter reproduzido somente a nota pessoal de Efésios 6,21-22 (cf. Colossenses 4,7-9) para acrescentar verossimilitude.
Robinson confessa que durante seu estudo sobre o tema mudou de opinião sobre as Cartas Pastorais (1Timóteo, 2Timóteo e Tito). Inicialmente ele, como a maioria dos críticos protestantes, pensava que estas três cartas tinham sido escritas no século II, porque manifestam sinais daquilo que esses críticos costumam denominar “protocatolicismo” (ênfase na sã doutrina, na hierarquia da Igreja etc.). No entanto, após analisar com cuidado o assunto, convenceu-se de que nessas três cartas não há nada que não possa ter sido escrito pelo próprio Paulo e que as numerosas referências pessoais que estas contêm permitem colocá-las, com muita segurança, dentro do marco cronológico da vida de Paulo.
Veritatis Splendor

Peritos denunciam falta de argumentos jurídicos para despenalização do aborto nos casos de Zika

Imagem referencial. Foto: Unsplashed.
REDAÇÃO CENTRAL, 24 Abr. 20 / 02:03 pm (ACI).- Especialistas afirmam que não há qualquer fundamento constitucional para descriminalizar o aborto para grávidas com zika vírus por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 5581. A ação foi inserida na pauta do Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal para ser votada hoje, sexta-feira, 24.
Segundo a União dos Juristas Católicos do Rio de Janeiro, a ADI não dispõe dos argumentos técnicos necessários para justificar sua legitimidade. A instituição destacou em nota oficial a inconsistência causal entre zika vírus e o surto de microcefalia ocorrida no Brasil e principalmente pela discriminação da pessoa portadora de deficiência.
“Esse tipo de pretensão, inclusive, de natureza eugênica, remete a períodos não distantes da história, que têm a reprovação veemente, justa e generalizada da consciência ética da humanidade”, conclui o documento.
Lenise Garcia, especialista em bioética e presidente do Movimento Cidadania pela Vida Brasil Sem Aborto, reforçou que a microcefalia acontece em no máximo 5% dos casos de grávidas infectadas com zika vírus.
“A imensa maioria das crianças nasce completamente normal. De qualquer modo, o fato de ter uma deficiência não justifica matar uma criança, isso é eugenia. Numa época em que os direitos das pessoas com deficiência são tão defendidos, pleitear um aborto porque uma criança poderá nascer com uma deficiência é uma atitude extremamente preconceituosa”, afirma Dra. Lenise.
Diagnósticos de zika vírus e microcefalia não são seguros
Segundo o obstetra da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Raphael Câmara, a ADI foi proposta em 2016 quando os conhecimentos sobre o zika eram incipientes.
“De lá para cá, temos respostas a muitas das questões trazidas na ADI que embasavam o pedido para a liberação do aborto. O primeiro dado é que os estudos recentes mostram taxas de acometimento de fetos de mães infectadas de somente 5 a 14%, sendo a maioria com problemas leves como mostram pesquisas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças -CDC e da FIOCRUZ”, afirmou.
“Além disso, um estudo recentemente divulgado pelo CDC mostrou que 73% dos laboratórios brasileiros têm baixa acurácia para o diagnóstico do zika vírus, dessa forma o pedido não tem sentido porque não podemos falar em ‘infectadas por zika’, mas sim em ‘talvez’ infectadas pelo zika. É baseado nesta imprecisão que iremos matar os fetos?”, questiona o Dr. Câmara.
Raphael Câmara chamou atenção sobre o fato de ter sido a Associação Nacional dos Defensores Públicos - ANADEP a ser a requerente da ADI 5581, já que o órgão não dispõe de técnica suficiente.
Ainda sobre o tema, a Dra. Lenise Garcia alerta que os associados da ANADEP não tinham conhecimento da finalidade real da ADI, porque foi dito apenas que seria uma ação para o cuidado com as grávidas diagnosticadas com zika vírus e para as crianças com microcefalia.
“Não se falou em aborto em momento algum durante a assembleia da ANADEP. A associação entrou com esse pedido sem a anuência de seus associados. Isso é um fato muito grave. A maior parte dos membros não estava nem sabendo o que estava sendo feito em nome deles”, denunciou a médica.
A iniciativa também foi julgada incoerente diante da atual pandemia causada pelo coronavírus, que tem levado o país a ações de cuidado e preservação da vida humana.
Vigília pela vida
Nesta quinta-feira, 23, das 20h até a meia-noite, ocorreu uma vigília de oração na Praça dos Três Poderes. A iniciativa é organizada pelos movimentos católicos de Defesa da Vida.
Nesta sexta, 24, das 14h às 17h, houve também uma carreata com o quadro de Jesus Misericordioso para pedir o cancelamento do julgamento do aborto pelo STF. Os participantes sairão da Catedral Metropolitana de Brasília.
ACI Digital

sexta-feira, 24 de abril de 2020

NA NOITE MAIS ESCURA

Wikipedia
Incontável é o número dos fiéis cristãos que, no decorrer dos séculos, enfrentaram perseguições, guerras, segregações, epidemias, e até o martírio, por fidelidade ao amor de Cristo. Essas pessoas são testemunhas de que “Deus, por ser soberanamente bom, nunca deixaria qualquer mal existir em suas obras se não fosse bastante poderoso e bom para fazer resultar do mal o bem”. (Santo Agostinho).
As perseguições e os martírios dos primeiros séculos, principalmente no Império Romano, evidenciam que pode haver momentos em que o ser humano, e em especial o cristão, não pode se esquecer de que deve abdicar de tudo, inclusive da própria vida, a fim de salvar a própria alma e, por isso, graças à fidelidade dos mártires, o cristianismo se expandiu, alcançando novos países e continentes.
Dando continuidade ao anúncio do Evangelho, no século XVI, a evangelização chegou ao Vietnã e muitos acolheram a mensagem de Cristo com alegria. Mas, rapidamente, começou uma perseguição brutal contra os cristãos. Desse modo, milhares de vietnamitas foram martirizados – decapitados, estrangulados, esquartejados, queimados vivos –  entre eles diversos missionários. Desse grupo de valentes cristãos, que morreram professando a certeza da ressurreição e a vida eterna, São João Paulo II canonizou 117 católicos cujos nomes foram identificados.
A vida desses mártires e de inúmeros outros, nos mais diversos períodos da nossa História, é a feliz comprovação de que “na noite mais escura, surgem os maiores profetas e os santos. Certamente, os eventos decisivos da história do mundo foram essencialmente influenciados por almas sobre as quais nada se diz nos livros de História”. (Santa Teresa Benedita da Cruz, vida escondida e epifania).
Na América Central, um dos santos mais populares é São Damião de Molokai, o sacerdote missionário que se tornou leproso para salvar os leprosos. Em pleno século XIX, diante do mal da hanseníase, que não tinha cura, a ilha de Molokai, no arquipélago do Havaí, se tornou um local de segregação e de morte quando passou a ser usada como colônia de leprosos abandonados à própria sorte. Para essa ilha eram enviados os doentes de hanseníase das outras ilhas do pacífico, a fim de morrerem lá, não contaminando outras pessoas das cidades com o mal da lepra.
Esse ato de desumanidade, esse ato de desamor, começou a ser reparado graças à heroica generosidade de São Damião que se ofereceu, se candidatou para ser pároco dos leprosos de Molokai. Chama ainda mais a nossa atenção o conhecimento de que não estava nos planos das autoridades da Igreja enviar um sacerdote para a ilha dos leprosos e, por isso, São Damião só convenceu o Bispo a aceitar o seu pedido quando ele afirmou, com determinação, que os leprosos estavam morrendo todos os dias, mas se estavam alcançando a vida eterna ninguém tinha conhecimento, pois não havia um único sacerdote que os orientasse retamente, anunciando o amor e a Pessoa de Cristo.
Em Molokai, São Damião conquistou a amizade dos leprosos por meio do cuidado nas pequenas coisas. Ali, ele motivou os leprosos a construírem um hospital e uma capela. Tudo muito simples e modesto, mas com sinais de cuidado. Sua entrega generosa fez com que, logo após a sua morte, dezenas de outros sacerdotes se oferecessem para servir os leprosos. Dia feliz para São Damião foi o dia em que, em uma homilia, abordando o episódio da cura dos leprosos, ele anunciou que também estava com lepra, dizendo: “Nós, os leprosos, devemos buscar muito mais do que a simples cura do corpo. Nós precisamos, em primeiro lugar, da cura da alma”. Pouco tempo depois, São Damião de Molokai morreu de lepra entre os leprosos, mas com a consciência de dever cumprido, pois Deus já estava presente naquela ilha onde incialmente só eram vistos sinais de morte e de abandono, um inferno de desespero entre cães que comiam cadáveres.
Muitos fiéis cristãos, homens e mulheres santos, também enfrentaram epidemias e pestes que se abateram sobre o mundo. Um exemplo desses santos foi São Luís Gonzaga, que morreu em consequência de uma peste que atingiu Roma, carregando nas costas um flagelado. Outro exemplo é São Carlos Borromeu que enfrentou a peste negra que ceifou quase um terço dos europeus no século XVI. Diante de tantos sinais de morte, o Cardeal Carlos Borromeu organizou os religiosos para alimentar e cuidar dos doentes e dos famintos.
São Carlos Borromeu, pessoalmente, visitava os que sofriam da peste negra e cuidava das feridas. Quando alguma pessoa tentava lhe persuadir a se afastar dos doentes, o Cardeal Borromeu, dizia: “Estou disposto a abandonar esta vida mortal e não as pessoas designadas para seus cuidados”. Apesar de estar na linha de frente junto aos doentes, o bom cardeal foi poupado da peste e permaneceu vivo como um sinal da Misericórdia divina.
O século XX é considerado o século em que a Igreja Católica teve o maior número de mártires. Leigos, religiosos, sacerdotes e bispos foram vítimas de todos os tipos de totalitarismo, de esquerda e de direita, nos diversos países do mundo. Boa parte desses mártires foram vítimas do nazifascismo, durante a Segunda Grande Guerra Mundial, pois muitos cristãos foram prisioneiros nos campos de concentração de Auschwitz e Birkenau, no sul da Polônia e de Dachau, no sul da Alemanha. Edith Stein e Maximiliano Maria Kolbe são dois exemplos desses santos que foram fiéis até o fim.
            Com a invasão da Polônia por parte da Alemanha nazista, Frei Maximiliano Maria Kolbe foi preso duas vezes pelo simples fato de ser um sacerdote católico, sendo que a prisão definitiva, ocorrida em 1941, levou-o para Varsóvia, na Polônia, e posteriormente para o campo de concentração em Auschwitz, onde ele heroicamente evangelizou com a vida e a morte.
Naqueles dias, aconteceu que diante da fuga de um prisioneiro, dez prisioneiros foram escolhidos para pagar com a morte, sendo que um, desesperadamente, caiu em prantos: “Minha mulher, meus filhinhos! Não os tornarei a ver! ”. Movido pelo amor que vence a morte, com a consciência de que não há maior amor do que dar a vida pelo irmão, o Frei Maximiliano Maria Kolbe dirigiu-se ao oficial e se ofereceu para substituir o pai de família e ajudar a morrer os outros nove prisioneiros. Seu oferecimento foi aceito de imediato, pois ele se identificou, afirmando: “Eu sou um Padre Católico! ”.
O oferecimento do Frei Maximiliano foi, naquele campo de concentração, o sinal visível de que a nossa vida só é plena, ampla e livre, quando somos capazes de salvar o próximo movidos por um amor incondicional por Deus. Graças a São Maximiliano Maria Kolbe, nós aprendemos que nenhuma renúncia e nenhum sacrifício é grande demais se for movido e impulsionado pela pertença a Deus e à Igreja.
Nessa noite escura da pandemia da Covid-19, que nós estamos enfrentando, é certo que inúmeras são as pessoas, os fiéis cristãos – leigos, religiosos e sacerdotes – que estão na linha de frente, no Brasil e no mundo, organizando doação de alimentos, arrecadando recursos para a compra do necessário material hospitalar e cuidando dos contaminados pelo novo coronavírus. Graças ao serviço e à entrega desses santos, que estão nos hospitais e nas ruas, nas periferias físicas e existenciais do mundo, nós estamos testemunhando o valor do sofrimento humano, o alcance da caridade e os sinais da luz que brilham mesmo em meio a essa noite escura que, no tempo oportuno, irá passar.
Quem são essas pessoas, esses santos que estão enfrentando essa pandemia com fortaleza? São todos aqueles que não fraquejaram na fé, não vacilaram na certeza do amor de Deus. São todas as pessoas que não estão na mídia, mas sim nas Igrejas domésticas e nos templos católicos, esforçando-se para manter a temperatura da fé elevada, mesmo que seja por meio das redes sociais. Enfim, os santos atuais são todos aqueles que estão escrevendo os acontecimentos decisivos desses dias com sabedoria, esperança e coragem. Qual é o nome deles? Eu direi apenas que são cristãos e isso é mais do que suficiente. Mas posso afirmar também que nós os conheceremos no Reino dos céus no dia em que tudo o que está oculto será revelado.
Aloísio Parreiras  
Arquidiocese de Brasília

Nova datação do Novo Testamento (Parte 3/11): a importância do ano 70 d.C.

Nova datação do Novo Testamento (Parte 3/11): a importância do ano 70 d.C.

3. A IMPORTÂNCIA DO ANO 70
No início do Capítulo 2 (“A Importância do Ano 70”), o autor enuncia uma das suas principais teses:
  • “Um dos fatos mais estranhos do Novo Testamento é que aquele, que em qualquer projeção pareceria ser o evento singular mais datável e culminante do período (a queda de Jerusalém no ano 70 d.C. e, com ela, o colapso do judaísmo institucional baseado no Templo), não é mencionado nem uma só vez como fato passado. É obviamente predito e, pelo menos em alguns casos, assume-se que essas predições foram escritas (ou redigidas) depois do evento; porém, o silêncio é de todas as maneiras tão significativo assim como para Sherlock Holmes em relação ao silêncio do cachorro que não ladrou” (p.14).
Em primeiro lugar, Robinson descarta a interpretação de S. G. F. Brandon: esse silêncio seria uma tentativa deliberada de ocultar a simpatia de Jesus e dos primeiros cristãos pelos zelotas revolucionários, cujo levante foi esmagado pelos romanos. Essa interpretação é totalmente arbitrária e recebeu críticas devastadoras por parte de Hengel, Cullmann e muitos outros acadêmicos.
Prossegue Robinson:
  • “Obviamente se tem tentado explicações quanto a esse silêncio. No entanto, a explicação mais simples de todas, de que talvez (…) haja extremamente pouco no Novo Testamento que seja posterior ao ano 70 e que os seus eventos não são mencionados porque ainda não tinham ocorrido, a meu juízo exige mais atenção do que recebeu nos círculos críticos” (p.15).
O restante do capítulo é dedicado a examinar a relação dos três Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas) com os eventos do ano 70.
Em primeiro lugar, Robinson analisa o discurso escatológico de Marcos 13, que começa assim:
  • “Ao sair do Templo, disse-lhe um dos seus discípulos: ‘Mestre: olha que pedras e que edifícios!’ Jesus lhe respondeu: ‘Vês estas grandes construções? Não restará aqui pedra sobre pedra que não seja derrubada’. E estando Jesus no Monte das Oliveiras, em frente ao Templo, perguntaram-lhe Pedro, Tiago, João e André: ‘Diga-nos quando se darão estas coisas e qual será o sinal de que tudo isto estará a ponto de chegar ao fim” (Marcos 13,1-4).
Robinson sublinha que a longa resposta de Jesus não faz qualquer referência à destruição do Templo; a única referência que faz em relação ao Templo é esta alusão implícita:
  • “Quando virdes a abominação da desolação erigida onde não deve – quem ler, que entenda – então os que estiverem na Judeia que fujam para os montes; quem estiver no telhado, que não desça para pegar nada em sua casa; e quem estiver no campo, que não retorne para pegar o seu manto” (Marcos 13,14-16).
É claro que “a abominação da desolação” não pode se referir à profanação e destruição do Templo no ano 70. Já nesse momento seria muito tarde para fugir para os montes da Judeia, porque estes já estavam em poder dos romanos desde o ano 67. É sabido que os cristãos de Jerusalém fugiram para Pela, uma cidade grega da Decápolis, por volta do ano 65, antes do início do sitiamento de Jerusalém.
Robinson mostra que o discurso de Marcos 13 é influenciado por dois livros do Antigo Testamento: 1Macabeus e Daniel; mostra também que nesse discurso, em que Jesus exorta os seus discípulos a estarem vigilantes durante os tempos de perseguição que viriam, não há nada que não possa encontrar um paralelo no perídio da História da Igreja coberto pelo livro dos Atos dos Apóstolos.
Em segundo lugar, o autor analisa o Evangelho de Mateus. Antes de mais nada, se detém na única passagem evangélica que foi quase unanimemente considerada pelos exegetas como uma profecia retrospectiva sobre a destruição de Jerusalém no ano 70:
  • “Então pegaram os servos, os maltrataram e mataram. O rei se encolerizou e enviou suas tropas para acabar com aqueles homicidas e incendiou a sua cidade” (Mateus 22,6-7).
Apoiando-se em estudos anteriores de K. H. Rengstorfhas e S. Pedersen, Robinson sustenta que Mateus 22,7 representa uma descrição fixa das antigas expedições militares de vingança, que é um lugar-comum na literatura do Oriente Próximo, do Antigo Testamento e dos rabinos, motivo pelo qual não se deve inferir que reflete um acontecimento em particular.
Robinson mostra que as verdadeiras profecias “ex eventu” (posteriores ao evento) da destruição de Jerusalém, como as do apocalipse judaico conhecido como 2Baruc e dos Oráculos Sibilinos, descrevem vários detalhes históricos. Assim, alguém procuraria em vão essa espécie de detalhes no Novo Testamento.
O autor sublinha que no discurso escatológico de Mateus (capítulo 24), paralelo com o de Marcos, a referência à “abominação da desolação” é explicitamente relacionada com o profeta Daniel (cf. Mateus 24,25).
Robinson também destaca que Mateus 24,20 (“Rogai para que a vossa fuga não se dê no inverno nem no sábado”) denota um ambiente palestinense primitivo e um apego à lei do sábado mais estrito do que aquele recomendado aos cristãos nesse mesmo Evangelho (cf. Mateus 12,1-14), no qual se tende a apoiar a hipótese de uma redação não-tardia de Mateus.
A seguir, o autor sustenta que, na hipótese de uma redação tardia de Mateus, não enxerga nenhuma razão para que o evangelista conservasse (nem mesmo inventasse) profecias de Jesus aparentemente não-cumpridas (como as de Mateus 10,23; 16,28 e 24,34), sem tentar dar alguma explicação da aparente discordância entre essas profecias e os fatos posteriores. Eu acrescento o seguinte: ainda que, a partir do ponto de vista teológico, essa discordância seja apenas aparente, este argumento de Robinson em favor de uma redação não-tardia é bastante forte.
Posteriormente, Robinson afirma que a referência de Jesus ao assassinato de “Zacarias, filho de Baraquias, morto entre o Templo e o altar” (Mateus 23,35) pode ser interpretada razoavelmente como uma referência a 2Crônicas 20,21: “Porém eles se conjuraram contra Zacarias e, por ordem do rei, o apedrejaram no átrio do Templo do Senhor”.
Finalmente o autor analisa o Evangelho de Lucas, detendo-se em duas passagens que parecem descrever detalhes do sitiamento de Jerusalém entre os anos 67 e 70:
  • “E quando se aproximou, ao ver a cidade, chorou por ela, dizendo: ‘Se tu também conhecesses neste dia o que te leva à paz! No entanto, agora está oculto aos teus olhos, porque virão dias sobre ti em que não somente os inimigos te rodearão com valas, te cercarão e te estreitarão por todos os lados, como te esmagarão contra o solo e também os teus filhos que estão dentro de ti; e não deixarão pedra sobre pedra em ti, porque não conheceste o tempo da visita que te foi feito” (Lucas 19,41-44);
  • “Quando virdes Jerusalém cercada por exércitos, sabei que já se aproxima a sua desolação. Então os que estiverem na Judeia, que fujam para os montes; e quem estiver dentro da cidade, que se ponha em marcha; e quem estiver nos campos, que não entre nela. Estes são dias de castigo para que se cumpra tudo o que está escrito. Ai daquelas que estiverem grávidas e das que estiverem criando [os filhos] nesses dias! Porque haverá uma grande calamidade sobre a terra e haverá ira contra este povo. Cairão ao fio da espada e serão levados cativos para todas as nações; e Jerusalém será pisoteada pelos gentios, até que se cumpra o tempo dos gentios” (Lucas 21,20-24).
No entanto, Robinson afirma que estes textos não fornecem mais do que descrições estereotipadas de operações militares da Antiguidade:
  • “Na narrativa de Josefo sobre a captura romana de Jerusalém há algumas características que são mais distintivas, tais como a fantástica luta de facções que permaneceu durante o sitiamento, os horrores da peste e da fome (que incluiu canibalismo) e, finalmente, o incêndio no qual o Templo e uma grande parte da cidade foram destruídos. Foram estes eventos que prenderam a imaginação de Josefo e, podemos supor, de todas as demais testemunhas. Nada disto é dito nesta passagem [bíblica]. Por outro lado, entre todas as barbaridades que Josefo relata, não diz que os conquistadores esmagaram crianças contra o solo (os menores de 17 anos foram vendidos como escravos). A expressão [de Jesus] (…) não é baseada em nada do que ocorreu entre os anos 66 e 70: é [apenas] um lugar comum da profecia hebraica” (pp.26-27).
Apoiando-se nos estudos de C. H. Dodd, Robinson afirma que as descrições de Jesus não se ajustam à tomada de Jerusalém por Tito no ano 70, mas a Nabucodonosor no ano 586 a.C.
Para concluir, acrescento outras duas considerações:
1) Se os Evangelhos Sinóticos tivessem sido escritos após o ano 70 e as profecias de Jesus sobre a destruição de Jerusalém fossem posteriores ao evento, não se explicaria o porquê neste caso (diferentemente de outros), os evangelistas não explicitaram que as profecias de Jesus tinham se cumprido;
2) Quanto à profecia de Jesus de que do Templo de Jerusalém não restaria pedra sobre pedra, ela começou a se cumprir no ano 70, mas o seu pleno cumprimento ocorreu no ano 363, quando uma série de acontecimentos extraordinários fez fracassar uma tentativa de reconstrução do Templo patrocinado pelo imperador romano Juliano, o Apóstata (cf. Stanley Jaki, “To Rebuild Or Not To Try?”, Editora Real View Books: Royal Oak-Michigan, 1999).
Veritatis Splendor

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF