III Parte:
17 - Não ceder ao escândalo. Evitar os hereges
(1) Porém não nos impressione nem perturbe essa desmedida e temerária perfídia de muitos. Ao contrário, torne-se mais forte a nossa fé ao constatarmos a verdade do que foi profetizado. Alguns fizeram-se traidores, porque assim fora predito; os demais irmãos, em virtude da mesma profecia, acautelem-se contra essas coisas, escutando a voz do Senhor, que diz: "Vós, porém, acautelai-vos, porque eis que eu vos predisse tudo" (Mc 13-23).
(2) Evitai, pois, eu vo-lo peço, irmãos, esses homens e repeli, de vosso lado e de vossos ouvidos suas perniciosas conversas, como se repele um contágio mortífero. Está escrito: "Cerca os teus ouvidos com uma sebe de espinhos e não ouças a língua maldosa" (Eclo 28,24). E ainda: "As péssimas conversas corrompem até as pessoas de boa índole" (1Cor 15,33). O Senhor nos recomenda que evitemos essa gente. "São cegos, diz ele, e guias de cegos. Quando é um cego que conduz outro cego, caem juntos na fossa" (Mt 15,14).
(3) Convém estar longe e fugir de qualquer um que se separou da Igreja. É um transviado, um culpado, ele se condena por si próprio [Cf Ti 3,11]. Poderá pensar que está com Cristo aquele que está tramando contra os sacerdotes de Cristo e se separa da comunidade do seu clero e do seu povo? Ele levanta armas contra a Igreja e resiste às ordens de Deus. Adversário do altar, rebelde contra o Sacrifício de Cristo, traidor na fé, sacrílego na religião, servo intratável, filho ímpio, irmão inimigo, despreza os bispos e abandona os sacerdotes de Deus e ousa erguer um outro altar, pronunciar com voz ilícita uma outra prece, profanar, com falsos sacrifícios, a Hóstia do Senhor, e esquece que quem vai contra as ordens de Deus será punido com os divinos castigos pela sua atrevida audácia.
[Nota: Parece até intolerância de S. Cipriano, mas defender a fé não é intolerância. A culpa não é tanto estar fora da Igreja "in-fidelis", mas em ter saído da Igreja e teimar numa fé espúria e pervertida "perfídia". S. Cipriano deseja defender os que permanecem na Igreja, das falsas doutrinas dos hereges, e não incitar um preconceito gratuito].
18 - Castigos dos profanadores do culto
(1) Assim Coré, Datã e Abirão receberam, sem demora, o castigo da sua presunção, porque, violando as ordens de Moisés e do sacerdote Aarão, pretenderam usurpar o direito de oferecer sacrifícios [Cf Num 16,31-35]. A terra perdeu a sua firmeza, fendeu-se numa profunda voragem, e o chão, assim aberto, os engoliu vivos e em pé. A justiça indignada de Deus não atingiu só os autores daquele gesto, mas também os outros duzentos e cinqüenta, seus companheiros, que foram cúmplices e solidários com eles. De repente saiu do Senhor um fogo punitivo e os consumiu. Isto deve valer como demonstração e sinal de que foi ofensa contra Deus tudo o que aqueles perversos tentaram, com suas vontades humanas, para frustrar as ordens do próprio Deus.
(2) Assim aconteceu também ao rei Ozias, quando segurou o turíbulo e, com violência, pretendeu oferecer ele mesmo o incenso, violando a lei de Deus e desobedecendo ao sacerdote Azarias, que a isto se opunha [Cf 2Crôn 26,16-20]. Lá mesmo foi confundido pela divina indignação e acometido por uma espécie de lepra na fronte. Pela sua ofensa a Deus, foi punido justamente naquela parte do corpo, onde recebem o sinal (da cruz) os eleitos de Deus.
(3) Também os filhos de Aarão, por ter colocado no altar um fogo profano, contra os preceitos do Senhor, foram mortos no mesmo instante pela divina vingança [Cf Lev 10,1-2; Num 3,4].
19 - Menos grave é o pecado dos lapsos*
(1) São esses os exemplos que seguem e imitam os que buscam doutrinas estranhas, introduzem ensinamentos de invenção humana e desprezam a divina tradição. A eles aplicam-se as repreensões e as censuras do Evangelho: "Rejeitais o mandamento de Deus para apegar-vos à vossa própria tradição (pagã)" (Mc 7,90).
(2) Este crime é pior do que aquele que se pensa terem cometido os lapsos, ao menos se falarmos dos que estão arrependidos e rogam a Deus perdão do seu pecado, dispostos a dar completa satisfação. Os lapsos, com súplicas, procuram a Igreja, os cismáticos combatem-na. Os primeiros podem ter sido vítimas de alguma pressão, os segundos erram no pleno uso da sua liberdade. O lapso, pecando, se prejudicou unicamente a si mesmo, ao passo que aquele que tenta criar heresias e cismas engana a muitos, arrastando-os à sua seita. Lá há detrimento de uma só alma, aqui o perigo é de muitos. O lapso reconhece que certamente pecou, disto lamenta-se e chora, o cismático, cheio de orgulho no seu coração e comprazendo-se dos seus próprios erros, arranca os filhos à mãe, afasta, com aliciamentos, as ovelhas do Pastor, arrasa os divinos Sacramentos.
(3) O lapso pecou só uma vez, o outro continua pecando a cada dia. Por fim, o lapso, mais tarde, poderá enfrentar o martírio e conseguir as promessas do Reino, o cismático, ao contrário, se for morto enquanto está fora da Igreja, não alcançará os prêmios da Igreja.
[nota: * Lapsos era o nome dado aos cristãos que durante a perseguição tinham sacrificado incenso aos ídolos, o que significava renúncia à fé. Para serem reintegrados na comunidade da Igreja deviam se submeter às penitências prescritas].
20 - Confessores* que não perseveraram
(1) Não deveis estranhar, irmãos diletíssimos, que até entre os confessores haja alguns que caíram nestes crimes. Acontece também que alguns deles cometam outros pecados graves e vergonhosos. A confissão da fé não torna uma pessoa imune das ciladas do demônio. A quem ainda vive neste mundo ela não comunica uma perpétua segurança contra as tentações, os perigos e o ímpeto dos ataques mundanos. Se assim fosse, não veríamos, em confessores, os roubos, os estupros e os adultérios, que agora, com imensa tristeza, devemos lamentar em alguns deles.
(2) Quem quer que seja um confessor, ele não poderá ser maior, melhor e mais amigo de Deus que Salomão. Entretanto, este, durante o tempo em que se manteve nos caminhos do Senhor, conservou a benevolência com que o mesmo Senhor o tinha favorecido, mas quando se desviou destes caminhos, perdeu também a benevolência do Senhor [3Rs 11,9].
(3) Por isto diz a Escritura: "Segura o que tens, para que um outro não tome a tua coroa" (Ap 3,11). Se lá o Senhor ameaça tirar a alguém a coroa da justiça, é sinal que quem renuncia à justiça fica privado também da coroa.
[nota: * Os confessores eram os cristão que afirmavam a fé perante os perseguidores, e por um motivo ou outro, não eram condenados a morte. Alguns deles, cheios de soberba pelo ato de fé que praticou, achavam que tinham o direito de dar o aval aos lapsos (ver nota acima) e reintegrá-los na comunidade sem as penitências. Alguns confessores se tornaram cismáticos].
21 - A honra da "confissão" aumenta o dever do bom exemplo
(1) A confissão da fé é um preâmbulo da glória, mas não é ainda a posse da coroa. Não é a glória definitiva, mas só o início do mérito. Está escrito: "O que perseverar até o fim, este será salvo" (Mt 10,22). Tudo pois o que fazemos antes do fim é só um passo com o qual vamos subindo ao monte da salvação, mas só ao fim da subida chegaremos à posse perfeita do cume.
(2) Trata-se de um confessor? Ora, depois da confissão da fé, o perigo torna-se maior, porque o adversário está mais enraivecido contra ele.
(3) É confessor? Por isto, mais do que nunca, deve permanecer fiel ao Evangelho do Senhor, ele que pelo Evangelho conseguiu esta honra. Diz o Senhor: "A quem muito é dado, muito será pedido e a quem é concedida maior dignidade, deste exigem-se maiores serviços" (Lc 12,48). Ninguém se deixe levar à perdição pelo mau exemplo de algum confessor. Ninguém aprenda, do seu modo de proceder, a injustiça, a arrogância ou a perfídia.
(4) É confessor? Seja humilde e tranqüilo em todo o seu comportamento, seja disciplinado e modesto, de modo que, como é chamado confessor de Cristo, imite também aquele Cristo que confessa "Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado" (Lc 18,14). Assim disse ele, e foi exaltado pelo Pai, porque, sendo ele a Palavra, a Virtude e a Sabedoria de Deus Pai, se humilhou a si mesmo na terra. E como poderia amar a altivez, ele que, com a sua lei nos preceituou a humildade, e, em prêmio da sua humildade, recebeu do Pai o nome mais sublime? [Cf Flp 2,9]
(5) Alguém foi confessor de Cristo? Muito bem, mas, depois, por sua culpa, não sejam blasfemadas a majestade e a santidade do próprio Cristo. A língua que confessou a Cristo não seja maldizente nem sediciosa, não se ouça vociferando em altercações e brigas; depois de palavras tão divinas de louvor não vá vomitando veneno de serpente contra os irmãos e contra os sacerdotes de Deus.
(6) Em suma, se alguém, depois da confissão, se tornou culpável e detestável, se aviltou a sua confissão com maus comportamentos, se manchou a sua vida com torpezas indignas, se, afinal, abandonou a Igreja, na qual se tornara confessor, e, quebrando a harmonia da unidade, trocou a fé de então com a perfídia, um tal homem não pode lisonjear-se, presumindo da sua confissão, de ser como que predestinado ao prêmio da glória. Ao contrário, por isto mesmo, aumentaram seus títulos para o castigo.
22 - Elogio dos confessores
(1) Vemos também que chamou a Judas entre os Apóstolos, e este Judas, em seguida, traiu o Senhor. A fé e a perseverança dos Apóstolos não esmoreceram pelo fato que Judas traidor tinha pertencido ao seu grupo. Igualmente em nosso caso: a santidade e a dignidade dos confessores não ficam destruídas, se naufragou a fé em alguns deles.
(2) O bem-aventurado apóstolo Paulo diz numa das suas cartas: "Se alguns decaíram da fé, será que a sua infidelidade tornou vã a fidelidade de Deus? De modo algum. De fato, Deus é verídico e todo homem é mentiroso" (Rom 3,3-4; Sl 115,11).
(3) A maioria e a parte melhor dos confessores mantém-se no vigor da sua fé e na verdade da lei e da disciplina do Senhor. Lembrando-se de ter alcançado a graça e a benevolência de Deus na Igreja, não se afastam da paz da mesma Igreja. Nisto merecem mais amplo louvor pela sua fé, porque, desligando-se da perfídia daqueles que já foram seus companheiros na confissão, resistiram ao contágio do mal. Iluminados pela luz verdadeira do Evangelho, brilhando na pura e cândida claridade do Senhor, mostram-se tão dignos de encômio na conservação da paz de Cristo, quanto o foram no combate, quando se tornaram vencedores do demônio.
23 - Apelo aos que foram enganados
(1) Quanto a mim, irmãos diletíssimos, não deixo de exortar e insistir, porque desejo que, se for possível, nenhum dentre os irmãos pereça, e a mãe feliz (a Igreja) abranja no seu regaço o seu povo, unido na concórdia como um só corpo. Se, todavia, este salutar conselho não consegue reconduzir ao caminho da salvação certos chefes de cismas e certos autores de dissensão, preferindo eles obstinar-se em sua cega demência, ao menos os demais, os que foram surpreendidos na sua simplicidade, ou se deixaram desviar por algum equívoco, ou foram enganados pelo ardil de uma astúcia dissimulada, ao menos vós sacudi os laços falaciosos, livrai dos erros os vossos passos extraviados, sabei reconhecer o caminho reto que conduz ao céu.
(2) Ouvi a voz do Apóstolo, que clama: "Em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, nós vos mandamos, diz ele, que vos afasteis de todos os irmãos que andam desordenadamente e não segundo a tradição que receberam de nós" (2Tes 3,6). E de novo: "Ninguém vos engane com vãs palavras. Por causa disto veio a ira de Deus sobre os filhos da contumácia. Não estejais, pois, ao lado deles" (Ef 5,6-7).
(3) Deveis evitar os delinqüentes e até fugir deles, para que não aconteça que, juntando-se aos que trilham os caminhos do erro e do crime, alguém se desvie também da verdade e se torne culpado de igual delito.
(4) Deus é um, Cristo é um, uma é a sua Igreja, uma a fé e o povo (cristão) é também um, aglutinado pela concórdia como na compacta unidade de um corpo. Esta unidade não pode ser quebrada. Um corpo não pode ser dividido, desarticulando as suas junturas. Não pode ser reduzido a pedaços, dilacerando e arranhando as suas vísceras. Tudo o que se separa do centro vital não pode continuar a viver ou a respirar porque fica privado do alimento indispensável à vida.
24 - Bem-aventurados os pacíficos
(1) O Espírito Santo assim nos fala: "Quem é o homem que quer viver e deseja ver dias excelentes? Refreia do mal a tua língua, e os teus lábios não falem insidiosamente. Evita o mal e faze o bem, busca a paz e segue-a" (Sl 33,13-15). O filho da paz deve buscar a paz, deve procurá-la. Quem conhece e ama o vínculo da caridade deve guardar a sua língua do flagelo da dissensão.
(2) O Senhor, já próximo à paixão, entre outros preceitos e ensinamentos salutares, acrescentou o seguinte: "Eu vos entrego a paz, eu vos dou a minha paz" (Jo 14,27). Esta é a herança que nos deixou. Todos os dons e todos os prêmios das suas promessas estão incluídos nisto: a inviolabilidade da paz.
(3) Se somos co-herdeiros de Cristo [Cf Rom 8,17], permaneçamos na paz de Cristo. Se somos filhos de Deus, sejamos pacíficos. "Bem-aventurados os pacíficos, diz, porque serão chamados filhos de Deus" (Mt 5,9). Convém, pois, que os filhos de Deus sejam pacíficos, mansos de coração [Cf Mt 11,29], simples quando falam, concordes nos afetos, sempre ligados uns aos outros pelos laços da unidade de espírito.
25 - O exemplo dos primeiros cristãos
(1) Essa unidade reinou ao tempo dos Apóstolos e a nova plebe, o povo dos que acreditaram, guardava os preceitos do Senhor e ficava fiel à sua caridade. Prova-o a divina Escritura, dizendo: "A multidão daqueles que acreditaram se comportava como se fossem todos uma só alma e uma só mente" (At 4,32).
(2) E antes: "Estavam perseverando todos unânimes na oração com as mulheres e Maria, a mãe de Jesus, e seus irmãos" (At 1,14). Por isto oravam de modo eficaz e podiam confiar em alcançar o que estavam pedindo à misericórdia divina.
26 - Exortação para uma vida cristã integral
(1) Entre nós, ao contrário, esta união está demasiado relaxada, e ao mesmo tempo aparece muito enfraquecida a generosidade nas obras (boas). Então vendiam as suas casas e as suas propriedades e entregavam o preço aos Apóstolos, para que fosse distribuído aos pobres: assim colocavam seus tesouros no céu [Cf Mt 6,19]. Hoje nem se dão os dízimos dos patrimônios e, enquanto o Senhor diz "vendei" [Cf Lc 12,33], nós preferimos comprar e possuir mais. Como, entre nós, murchou o vigor da fé, como esmoreceu a força daqueles que crêem!
(2) Por isto o Senhor, falando destes nossos tempos, diz no Evangelho: "Quando vier o Filho do homem, pensas que encontrará fé na terra?" (Lc 18,8). Vemos que está acontecendo o que ele predisse. No que diz respeito ao temor de Deus, à lei da justiça, ao amor, às obras, não há mais fé. Ninguém se preocupa com as coisas que hão de vir, ninguém pensa no dia do Senhor, na ira de Deus, nos futuros suplícios dos incrédulos, nos eternos tormentos destinados aos pérfidos. Se crêssemos, a nossa consciência teria medo de tudo isto. Se não temos medo é sinal que não cremos. Quem acredita se acautela, quem se acautela se salva.
(3) Despertemos, irmãos diletíssimos, quebremos o sono da inércia rotineira e, por quanto for possível, sejamos vigilantes em guardar e cumprir os preceitos do Senhor. Sejamos prontos, como ele seja, quando diz: "Estejam cingidos os vossos rins, e as lâmpadas acesas nas vossas mãos, e vós sede semelhantes a homens que esperam o seu dono, quando voltar das núpcias, para lhe abrirem logo que ele chegar e bater. Bem-aventurados os servos que o Senhor, chegando, encontrar vigilantes" (Lc 12,35-37). É necessário que estejamos cingidos, a fim de que, quando vier o dia da partida, não sejamos surpreendidos cheios de impedimentos e de embaraços. Fique sempre viva a nossa luz e brilhe em boas obras, para nos guiar da noite deste mundo aos esplendores da claridade eterna. Sempre solícitos e cautos, fiquemos à espera da chegada repentina do Senhor. Quando ele bater, encontre a nossa fé vigilante com uma tal vigilância que mereça receber o prêmio do mesmo Senhor.
(4) Se forem observados esses mandamentos, se forem postas em prática essas exortações, não acontecerá que sejamos vencidos, no sono, pela falácia do demônio, mas, como servos bons e vigilantes, reinaremos com Cristo glorioso.