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Veritatis Splendor |
A história da Igreja no Império romano é dominada em grande parte pela apresentação da evolução dos problemas da heresia, nome aplicado a todos os desvios de doutrina e de moral cristãs. Embora tais desvios assumissem um caráter de revolta moral ou disciplinar, as mais conhecidas e as que maior influência exerceram são relativas aos profundos mistérios da fé, e deram origem a controvérsias que muitas vezes colocaram em campos opostos homens de grande capacidade intelectual e integridade moral.
Do século quinto ao século onze praticamente não existiram na Igreja ocidental, heresias que representassem um perigo público ou levassem a um debate intelectual; e o impacto provocado pelas polêmicas do Oriente, como o monotelismo e o iconoclasmo, só foi sentido no alto nível da diplomacia papal e imperial.
No século doze, porém, apareceram por toda parte movimentos populares que deram origem a verdadeiras anti-igrejas e a formação de quistos no corpo da Cristandade, levando a Igreja e o poder civil a montar um aparelho de repressão, muitas vezes apenas para preservar a ordem e restabelecer a paz.
De modo geral, podem ser apontadas três espécies diferentes de doutrinas heterodoxas que se misturavam e se dividiam de diversas formas. Havia a simples revolta contra uma religião rica, estabelecida, hierárquica e sacramental; Outra espécie era a invasão da antiga heterodoxia dualística, proveniente dos Bálcãs e de mais além. E, finalmente, havia uma heterodoxia mais sistemática, com uma doutrina elaborada por pessoas cultas e bem dotadas (inteligência voltada para o mal).
Os primeiros movimentos heréticos de que temos notícia ocorreram nos primeiros decênios do século onze, em diversas regiões da França, como a Campanha, Orléans e Aquitânia, e ao norte da Itália. Eram de origem obscura e pareciam semelhantes uns aos outros tendo como ponto comum a rejeição ao Mistério da Encarnação, a Eucaristia, a necessidade do Batismo e o poder episcopal de conferir ordens sacras. Esses pontos negativos, somados ao apelo à pobreza e à comunicação direta com Deus eram combinadas com doutrinas extravagantes, como a rejeição do matrimônio, a abstinência de carne, a criação de algum tipo de ministério conferido pela imposição de mãos de algum chefe principal, etc. Estes últimos pontos, cuja origem é encontrada ordinariamente no norte da Itália, sugerem muito claramente uma influência dos bogomilos, ou, como também eram chamados, dos maniqueus.
Estas seitas eram espalhadas por líderes populares que, em geral, se proclamavam possuidores de poderes divinos. Mas, só no Languedoc, que ia tornar-se um foco e um asilo da heresia, é que essas seitas assumiam um caráter endêmico. Nos outros lugares, os hereges foram reprimidos, quando não pelos próprios bispos e santos suscitados por Deus, outras vezes pela própria população, ou ainda desapareceram atraídos pela reforma gregoriana quando esta se tornou realidade.
Mas, uma segunda vaga teve início na Itália e no sul da França, na primeira metade do século doze. Como sempre, o movimento era tido como de “reforma”, exigindo do clero a volta à pobreza apostólica, etc. Entre os chefes realmente hereges estavam Pedro de Bruis, que pregava a pobreza, uma religião puritana e destituída de sacramentos, Arnaldo de Bréscia e Hugo Speroni. Pedro teve como adversários, pessoalmente e por seus escritos, Pedro o Venerável e o grande São Bernardo; foi queimado vivo por uma multidão enfurecida. Arnaldo de Bréscia, pregador hostil à instituição do clero, foi considerado por São Bernardo como um aliado de Abelardo. Ele entregou-se a agitação política e participou de uma comuna em Roma, nos moldes antigos, sendo finalmente enforcado.
Uma terceira onda, muito maior, espalhou-se pouco antes da metade do século doze. Tratava-se de um ramo da heresia dos bogomilos da Bulgária, derivada, em última análise, das doutrinas dualistas e gnósticas do maniqueísmo. Deitando raízes em Constantinopla, revestiu-se dos rudimentos de um sistema dogmático e ascético que se espalhou pela Bulgária e pela Bósnia, ao longo das rotas comerciais, e pouco a pouco penetrou nas regiões populosas do norte e oeste da Europa. A partir de 1140, seus adeptos se multiplicavam em todas as direções: na Renânia, com centro em Colônia. No Périgord, em Reims, na Lombardia, na Itália central, e sobretudo no sul da França, em redor de Albi, Tolosa e Carcassone. Uma nota característica do movimento era sua rígida organização eclesiástica, que somada a seu ímpeto missionário lhe deu sua força dinâmica e uma grande capacidade de resistência. Na segunda metade do século doze espalhou-se muito pela Itália, ao norte de Roma, tendo como principal ativista Pedro da Lombardia. Viviam na clandestinidade, em grupos dispersos, ligado cada um deles a um chefe ordenado, mas sem ligação orgânica uns com os outros. Enquanto a organização estava ainda se firmando na Itália, os seus missionários atravessavam os Alpes ou penetravam por mar no vale do Ródano. Em certo momento de sua evolução o nome cátaros (=”os puros”) passou da pequena classe dos perfeitos, a que era propriamente aplicado, a todos os membros. Na Itália predominavam entre os adeptos os comerciantes e os artesãos; no Languedoc houve muitas “conversões” no meio das grandes famílias feudais, como é o caso de Raimundo VI, conde de Tolosa; houve também “conversões” de monges e até bispos; e na sociedade relativamente rica e culta que deu origem aos trovadores e à primeira escola medieval de música profana, espalhou-se rapidamente a nova doutrina…
Embora diferissem inicialmente de grupo para grupo, tanto na teoria como na prática, as doutrinas dessa seita eram em geral um resíduo do maniqueísmo adaptado pelos bogomilos. Na verdade, tornou-se um rival do Cristianismo, cada vez mais forte, por imitar a organização e o ritual cristãos. A doutrina baseava-se na teoria dualista do bem e do mal, do espírito e da matéria. Ao princípio do bem, criador do mundo do espírito, opunha-se o princípio do mal, seu filho divino, coeterno mas rebelde, ou como ensinavam outros, um anjo decaído, um demiurgo. De qualquer forma, um princípio do mal era o criador do mundo material. As almas humanas são fragmentos do espírito, ou, segundo outros, anjos caídos aprisionados na matéria. Cristo era o maior dos anjos (ou o melhor dos homens), adotado por Deus como Filho. Seu corpo e sua morte não passavam de aparências; em todo caso, sua morte não tinha importância, porque ele remiu a humanidade pela sua doutrina, e não por sua Paixão. A Igreja católica era uma corrupção de uma instituição originariamente pura; suas doutrinas eram falsas, seus sacramentos sem valor.
A Igreja cátara dividia-se em duas classes, uma pequena e outra maior. A pequena classe dos “perfeitos” ou “puros”, cujo nome passou a toda a organização, fornecia os elementos dos diversos graus da hierarquia, e também os pregadores. Eram ordenados por um sacramento (ritual) de iniciação, precedido de uma severa provação que “apagava” o pecado, dava o Espírito Santo, e conferia poderes ao ministro. Este sacramento, ou consolamentum como o chamavam, obrigava a uma vida de grande austeridade, com castidade perpétua e abstinência de carne; era-lhes também proibido jurar e fazer guerra. Estes celebravam uma liturgia pública, que era uma imitação patente da Eucaristia. Os outros, os “aderentes”, tinham maior liberdade, e podiam fazer pleno uso dos bens deste mundo; quando possível, recebiam no leito de morte uma versão abreviada do consolamentum. O repúdio à criação material levava em princípio ao desprezo pela vida, e o suicídio voluntário pela fome (endura) não era desconhecido. O casamento era considerado um mal, e a mulher participava mais do que o homem do mal da criação.
Diferentes na origem, embora muitas vezes caminhassem para o catarismo, e suas práticas parecessem coincidir, apareceram em diversos centros alguns outros grupos cuja fé, pelo menos no início, parecia ser ortodoxa. Assim, se aproximavam das seitas “não-conformistas” e “congregacionais” dos últimos séculos. Os Humilhados das cidades da Lombardia viviam em grupos de trabalho e se dedicavam a pregação da Bíblia que tinha em vernáculo, mas davam pouco valor ao sacerdócio e aos sacramentos. Surgiram os Valdenses do Delfinado e do Piemonte, cujo nome deveu-se a um rico negociante de Lyon. Muitos dos grupos seguidores de Valdes logo se fizeram definitivamente hereges, considerando a Bíblia como única autoridade e negando a presença real na Eucaristia. Alguns adotaram a organização dos cátaros, outros suas práticas e preceitos, e até mesmo sua teologia. Estão aí os “proto-protestantes” que continuaram a influir na história religiosa até o fim da Idade Média, e apesar das perseguições continuam a existir ainda hoje.
A heresia era combatida pelos sermões e escritos polêmicos de homens eminentes, como Pedro o Venerável, São Bernardo, Vacário e Alano de Lille, e mais tarde por toda sorte de frades anônimos. Aos poucos a coerção civil e eclesiástica foi tomando o lugar da persuasão. Na falta de uma jurisdição ordinária, as penas variavam de intensidade. O direito imperial de Bizâncio prescrevia a pena de morte para os maniqueus; mais tarde a feitiçaria era punida com a fogueira. Durante certo tempo os bispos e os escritores se mostraram contrários à pena de morte ou a grandes castigos corporais. Mas, por fim, a pedido de reis e de bispos, o concílio de Tours, de 1163, instituiu um processo de inquisição eclesiástica. Os albigenses confessos seriam entregues às autoridades seculares para serem punidos com penas de prisão ou de confiscação de seus bens. Houve uma revolta armada e para enfrentá-la o Terceiro Concílio de Latrão proclamou uma cruzada. Cinco anos mais tarde Lúcio III, depois de um acordo com Frederico I, publicou um decreto em que se lançava uma excomunhão geral sobre os hereges existentes, e era confiado diretamente aos bispos o dever da inquisição, pela visita de inspeção e pela denúncia, em todas as localidades conhecidas como possíveis refúgios de hereges.
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