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terça-feira, 13 de outubro de 2020

Papas corruptos em uma Igreja infalível? (Parte 2/4): Pecadores e infalíveis no Novo Testamento

 

Veritatis Splendor
            Autor: Jesús Urones

            Fonte: Blog Convertidos Católicos-Religion en Libertad

            Tradução: Apostolado Veritatis Splendor

PECADORES E INFALÍVEIS NO NOVO TESTAMENTO

No Novo Testamento, a mecânica continua sendo a mesma: Cristo escolhe discípulos, porém todos eles são pecadores – alguns mentem para ele, outros o negam, outros o traem e todos fogem dele.

Os Apóstolos do Senhor eram impecáveis? Obviamente, como nos demonstram as Escrituras, não o eram.

Podemos mencionar os escândalos e fragilidades humanas do próprio círculo que rodeava Jesus:

  • “Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus; edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a principal pedra da esquina” (Efésios 2,19-20).

Eles são seus Apóstolos, individualmente escolhidos por Ele, os próprios fundamentos da Sua Igreja. Mas vejamos como estes fundamentos pecaram:

  • “E Jesus lhe disse: ‘Judas, com um beijo trais o Filho do homem?'” (Lucas 22,48).

Um deles O traiu, como bem reflete São Lucas.

  • “Ora, Pedro estava assentado fora, no pátio; e, aproximando-se dele uma criada, disse: ‘Tu também estavas com Jesus, o galileu’. Mas ele negou diante de todos, dizendo: ‘Não sei o que dizes’. E, saindo para o vestíbulo, outra criada o viu, e disse aos que ali estavam: ‘Este também estava com Jesus, o Nazareno’. E ele negou outra vez com juramento: ‘Não conheço tal homem’. E, daí a pouco, aproximando-se os que ali estavam, disseram a Pedro: ‘Verdadeiramente também tu és deles, pois a tua fala te denuncia’. Então começou ele a praguejar e a jurar, dizendo: ‘Não conheço esse homem’. E imediatamente o galo cantou. E lembrou-se Pedro das palavras de Jesus, que lhe dissera: ‘Antes que o galo cante, três vezes me negarás’. E, saindo dali, chorou amargamente” (Mateus 26,69-75).
  • “Ora, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus. Disseram-lhe, pois, os outros discípulos: ‘Vimos o Senhor’. Mas ele disse-lhes: ‘Se eu não vir o sinal dos cravos em suas mãos, e não puser o meu dedo no lugar dos cravos, e não puser a minha mão no seu lado, de maneira nenhuma o crerei’. E oito dias depois estavam outra vez os seus discípulos dentro, e com eles Tomé. Chegou Jesus, estando as portas fechadas, e apresentou-se no meio, e disse: ‘Paz seja convosco’. Depois disse a Tomé: ‘Põe aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos; e chega a tua mão, e põe-na no meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente’. E Tomé respondeu, e disse-lhe: ‘Senhor meu, e Deus meu!’ Disse-lhe Jesus: ‘Porque me viste, Tomé, creste; bem-aventurados os que não viram e creram'” (João 20,24-29).

Tomé duvidou Dele.

Quase todos o abandonaram no Calvário e, antes, dormiram no horto do Getsemani.

E, como vimos, todos eles hoje – exceto um – são Santos!

Os discípulos de Emaús, tão logo iniciada a Igreja, já estavam desmotivados (cf. Lucas 24,17). Por que deveríamos nos escandalizar hoje, 2000 anos depois, existirem não só pessoas desmotivadas como, inclusive, apóstatas?

Quando Jesus caminhava na terra, havia o maior escandalizador humano de todos os tempos: Judas. Este foi um dos Doze escolhidos pelo próprio Jesus Cristo, de modo que a porcentavem de escândalo entre os discípulos mais íntimos de Cristo era em torno de 8,5%!

Em Mateus 24, lemos sobre o servo que o Mestre colocou como encarregado da casa:

  • “Quem é, pois, o servo fiel e prudente, que o seu senhor constituiu sobre a sua casa, para dar o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo que o seu senhor, quando vier, achar servindo assim. Em verdade vos digo que o porá sobre todos os seus bens. Mas se aquele mau servo disser no seu coração: ‘O meu senhor tarde virá’; e começar a espancar os seus conservos, e a comer e a beber com os ébrios, virá o senhor daquele servo num dia em que o não espera, e à hora em que ele não sabe, e separá-lo-á, e destinará a sua parte com os hipócritas; ali haverá pranto e ranger de dentes” (Mateus 24,45-51).

Primeiro, vemos que Jesus fala do servo “que constituiu sobre a sua casa” (que representa a Igreja). Este servo pode agir bem ou mal; se é desobediente e “espanca os seus conservos” (abusa da sua autoridade), será castigado – mas Jesus não lhe retira o poder por ser um mau servo, nem nos permite sair da casa em atitude de rebeldia, pois Ele mesmo irá castigar as autoridades más da Igreja.

A Igreja primitiva foi destruída por causa destas gravíssimas infidelidade? Obviamente que não! Jesus não prometeu a impecabilidade aos membros da sua Igreja, por maior que fosse sua relevância. Ele afirmou que o poder do demônio ingressaria na Igreja, mas não prevaleceria contra ela (cf. Mateus 16,18). Quanto mais nos aproximamos do fim dos tempos, mais Satanás intensificará seus ataques contra a Igreja e ingressará nela (cf. Mateus 24,15); a apostasia surgirá (cf. 2Tessalonicenses 2,2), porém sempre haverá um remanescente fiel, ainda que alguns a abandonem e a ataquem.

  • “E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre; o Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós” (João 14,16-18).
  • “Ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos. Amém” (Mateus 28,20).

Como vemos, a promessa do Senhor continua vigente: durante 2000 anos sempre esteve com a sua Igreja. A Igreja primitiva era católica desde os seus primórdios e já então houve escândalos, mas Cristo não a abandonou. Como é dito em Efésios, “a glória da Igreja” é porque verdadeiramente esta Igreja é santa.

Com os olhos da fé e o testemunho da História, podemos ver que a Igreja Católica sempre foi a mais odiada e atacada, a partir de dentro (apostasias, heresias etc.) e a partir de fora. Durante seus 2000 anos de existência, foi criticada, blasfemada, atacada e, inclusive, tentaram exterminá-la; mas tudo sem sucesso: estes envelheceram e morreram, e a “noiva”, a cada dia que passa, está mais bela, aguardando o seu esposo, o Senhor. A todos estes que odeiam a Igreja Católica, a Bíblia lhes diz:

  • “Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela” (João 8,7).
  • “Portai-vos de modo que não deis escândalo nem aos judeus, nem aos gregos, nem à Igreja de Deus” (1Coríntios 10,32).
  • “Porque eu sou o menor dos Apóstolos, que não sou digno de ser chamado Apóstolo, pois que persegui a Igreja de Deus” (1Coríntios 15,9).
  • “Não temas, porque Eu sou contigo; não te assombres, porque Eu sou teu Deus; Eu te fortaleço, e te ajudo, e te sustento com a destra da minha justiça. Eis que, envergonhados e confundidos serão todos os que se indignaram contra ti; tornar-se-ão em nada, e os que contenderem contigo, perecerão” (Isaías 41,10-11).

O “Justo” defendeu a sua Igreja todos os dias, por todos os séculos, durante quase 2000 anos. Confundidos estão todos os que a atacam: protestantes, hereges, sectários etc.

Por acaso, por este pecado de Pedro, todos os Apóstolos foram apóstatas? Pedro perdeu a sua autoridade e a sua liderança por ter mentido sobre o Senhor? Lembre-se: a Bíblia tem duas cartas de Pedro que, se não fossem guiadas pelo Espírito Santo, não estariam na Bíblia! Mas como o Espírito Santo vai guiar um pecador, um “apóstata” segundo alguns, porque mentiu e pecou???

Um Apóstolo negou a Cristo (cf. Mateus 26,69-75); um o traiu (cf. Mateus 26,25), outro duvidou Dele (cf. João 20,25) e todos o abandonaram (cf. Mateus 26,56). Isto abrange todos os Doze, não é? Contudo, a Igreja que Jesus Cristo fundou, sobreviveu como um só rebanho, com um só Pastor, e todos os Apóstolos – exceto um – se tornaram Santos!

Saulo perseguiu duramente a Igreja, prendeu muitos cristãos e aprovou o assassinato de pelo menos um, como lemos em Atos 7,58-59 e 8,1-2. No entanto, a Igreja se manteve unida e fiel a Pedro, e Saulo se converteu em Paulo, um de seus maiores Apóstolos.

O que observamos aqui? Que a autoridade da Igreja não depende das obras de nenhum dos seus membros.

A Igreja é maior que qualquer um dos seus membros, é maior que qualquer Papa ou Bispo, Padre da Igreja ou Santo.

Por que a Igreja é maior que qualquer um dos seus membros? Porque ela é o Corpo Místico de Cristo; Ele é a sua Cabeça. E pelo que eu saiba, é a cabeça que diz ao corpo o que fazer e não o contrário! Não é verdade? Os ramos sem frutos podem ser podados, porém a videira segue viva!

Isto nos leva ao próximo ponto…

Veritatis Splendor

Hoje é celebrada a Beata Alexandrina da Costa, que viveu a paixão de Cristo

ACI Digital

REDAÇÃO CENTRAL, 13 out. 20 / 06:00 am (ACI).- “Queres me encontrar, minha filha? Busca-me em teu coração e em tua alma, aí habito teu coração como em meu tabernáculo. Se soubesses o quanto me consolas e o quanto socorres os pecadores só ao dizer-me que eres minha vítima”, disse uma vez Jesus à Beata Alexandrina da Costa, que viveu em êxtase a paixão de Cristo.

Alexandrina nasceu em 1904, em Balasar (Portugal). Para preservar sua virgindade, aos 14 anos se lançou da janela do segundo andar de sua casa, diante da ameaça de alguns mal-intencionados que entraram à força para abusar dela, de sua irmã e de uma amiga.

O golpe lhe causou, depois, uma paralisia total que a obrigou a ficar de cama pelo resto de sua vida. Mais tarde, ofereceu-se a Cristo como vítima pela conversão dos pecadores, por amor à Eucaristia e pela consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, mensagens fundamentais de Fátima.

Nos últimos 13 anos de sua vida não provou alimento, nem bebida e se manteve apenas da Comunhão. Entregue à vida de oração e jejum, em 180 ocasiões experimentou misticamente a paixão de Cristo com muito sofrimento.

Milhares iam ao seu leito para receber dela palavras de consolo e de tornou Cooperadora Salesiana.

Em 13 de outubro de 1955, aniversário do “milagre do sol” que aconteceu em Fátima 38 anos antes, partiu para a Casa do Pai. Antes de morrer, disse: “Não pequem mais. Os prazeres desta vida não valem nada. Recebam a comunhão; rezem o terço todos os dias. Isso resume tudo”.

A pedido da Beata, ficou escrito no epitáfio de seu túmulo a seguinte inscrição: “Pecadores, se as cinzas do meu corpo puderem ser úteis para a vossa salvação, aproximai-vos: passai todos por cima delas, pisai-as até desaparecerem, mas não pequeis mais! Não ofendais mais o nosso Jesus! Pecadores, queria dizer-vos tantas coisas. Não bastaria este grande cemitério para escrevê-las todas! Convertei-vos! Não queirais perder a Jesus por toda a eternidade! Ele é tão bom!... Amai-O! Amai-O! Basta de pecar!”.

São João Paulo II a beatificou em 2004 e, naquela ocasião, assinalou que “pela esteira da Beata Alexandrina, expressa na trilogia ‘sofrer, amar, reparar’, os cristãos podem encontrar estímulo e motivação para nobilitar tudo o que a vida tenha de doloroso e triste com a prova maior de amor: sacrificar a vida por quem se ama”.

ACI Digital

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

FILOSOFIA: Um breve apontamento sobre o conceito de dignidade da pessoa humana

Instituto Liberal

Sed dignitaten dicit principaliter retione formae
 São Boaventura

 Prof. André Marcelo M. Soares, Ph.D.* 

O conceito de dignidade é um dos mais relevantes para as reflexões ética, política e jurídica. Por esta razão, a sua definição filosófica é uma tarefa árdua. A dignidade não é algo que se aplica exclusivamente ao ser humano, mas, quando se fala em dignidade humana, é impossível deixar de lado o conceito de pessoa, que provoca uma variedade de questionamentos de ordem ontológica, antropológica e ética[1]

A expressão dignidade da pessoa é a combinação de dois substantivos, na qual a dignidade figura como termo valorativo aplicado a um sujeito que necessita se firmar como realidade ontológica (pessoa). Isto nos permite, de antemão, constatar que é possível refletir sobre o seu significado por dois caminhos: o ontológico e o ético. Através da via ontológica, pode-se conhecer uma realidade específica entre outras, que é a de ser pessoa. A via ética, por sua vez, permite pensar as razões alegadas para dizer que alguém é digno[2]

A origem etimológica da palavra pessoa encontra-se no termo grego prosôpon, que, longe de possuir um sentido ontológico, se referia à máscara que os atores utilizavam em suas representações teatrais. Apesar de Platão (cerca de 427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) aplicarem os conceitos de substância, natureza e essência, com seus respectivos matizes, ao homem, o pensamento grego desconhecia a realidade de ser pessoa. Ao longo dos anos, foi se desenvolvendo entre os gregos uma reflexão antropológica a partir de uma perspectiva cosmológica, segundo a qual o ser humano era compreendido como a realidade natural mais elevada[3]. Todavia, apesar de ser um animal racional, portador de logos e possuidor de uma alma intelectiva, não só vegetativa ou sensitiva como nos demais seres da natureza, nem os gregos e nem os romanos conseguiram perceber nele a realidade única, original, particular e concreta do ser pessoa

É a perspectiva cosmológica grega que possibilitará a primeira abordagem da dignidade do homem, que, segundo Aristóteles, é mais evidente naqueles que desenvolvem de forma destacada a atividade intelectual própria da alma humana, como é o caso dos filósofos. Segundo as tradições platônica e aristotélica, a dignidade do homem seria proporcional a sua capacidade de pensar e conduzir a própria existência desde a razão.

No cristianismo, o conceito de pessoa teve um sentido teológico, por se aplicar primeiramente às pessoas divinas. A seguir, foi empregado para definir o ser humano, até então concebido simplesmente como homem[4]. Para o pensador franciscano Boaventura de Bagnoregio (1217-1274), era necessário ir além da definição do filósofo romano Boécio (480-524), para o qual a pessoa é “uma substância individual de natureza racional”[5]. De acordo com o Doctor Seraphicus, o conceito de relação parece definir com mais profundidade a pessoa, por se tratar de um elemento constitutivo essencial. Deste modo, a pessoa “define-se pela substância ou pela relação; se se define pela relação, a pessoa e a relação serão conceitos idênticos”[6]. Em outras palavras, na pessoa a relação não é simplesmente algo acidental, mas estrutural e, portanto, inerente a sua própria natureza[7]

A definição de Boécio, seguida por muitos outros filósofos, tem como núcleo o conceito aristotélico de ousia (ou substantia), utilizado fundamentalmente para definir as coisas naturais. Nesta concepção, a pessoa, tal como as demais coisas, é concebida como hypóstasis (ou suppositum), embora mais digna por ser dotada de razão. Para o Doctor Seraphicus, quando se trata das pessoas divinas, esta noção pode parecer estranha. Afinal, de forma alguma é possível interpretar as pessoas divinas como coisa. É por este motivo que ele utiliza o conceito de relação para referir-se, por analogia, à pessoa humana. O fato de o homem ser concebido como imago Dei significa que, além de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus, está, desde a sua criação, relacionado com o seu criador. 

Segundo Boaventura, “a pessoa é a expressão da dignidade e da nobreza da natureza racional. E esta nobreza não é uma coisa acidental, mas pertence à sua essência”[8]. Cada homem, em particular, foi criado por Deus não seguindo o modelo da natureza, mas unicamente o modelo da própria realidade divina[9]. É neste fato que repousa a dignidade humana

A partir do século XVIII, sobretudo com a contribuição de Immanuel Kant (1724-1804), surgem novas perspectivas para fundamentar eticamente o conceito de dignidade. De acordo com Kant, a dignidade humana encontra-se na capacidade de autonomia, ou seja, no fato de ser o homem a única criatura capaz de se submeter livremente as leis morais que são reconhecidas como procedentes da razão prática[10]. Tal capacidade se deve ao fato do ser humano possuir, além de uma dimensão fenomênica, que o submete às leis físicas que regulam o universo e a ele mesmo, uma dimensão noumênica, que o torna um ser subjetivo, livre, constituído por uma interioridade e por uma consciência moral. Esta dimensão é a que lhe possibilita ser autônomo, isto é, um sujeito moral que reconhece o valor e a obrigatoriedade das normas que ele mesmo se impõe, sendo fiel ao imperativo categórico[11].

Para os pensadores da pós-modernidade, a dignidade humana nada tem a ver com os esquemas assinalados anteriormente. Nem as qualidades intelectuais (a razão), nem os pressupostos metafísicos (ontologia do ser humano) e nem a capacidade moral (autonomia) fundamentam a dignidade humana. Ela resultaria, portanto, de uma ação institucional segundo a qual determinadas sociedades, através do processo democrático, decidiriam de forma contingente e convencional (o único modo possível) o grau de sua utilidade ou eficácia para resolver conflitos sociais. 

Segundo o neopragmatismo pós-moderno de Richard Rorty (1931-2007), os mecanismos da emotividade humana (especialmente a compaixão) explicam mais claramente como as abstrações racionalistas transformam em tendência social o reconhecimento de uma dignidade que converte em imoral o sofrimento desnecessário a quem se convencionou considerar como membro desta sociedade[12]. Os ingredientes básicos da perspectiva rortyana são: a contingência da dignidade humana, por um lado e o marco emotivista, onde se situa a raiz da defesa da dignidade, por outro. 

Frente à racionalização do ser humano no pensamento grego clássico, à ontologização da pessoa na tradição cultural cristã e jusnaturalista e à autonomia do indivíduo na filosofia moderna germânica, o filósofo norte-americano Richard Rorty propõe um retorno ao pensamento de David Hume (1711-1776), segundo o qual os sentimentos e a utilidade social constituem o motor da ação moral e a base de qualquer direito humano[13]

Interpretando os diferentes modelos de dignidade, pode-se afirmar que o modelo grego clássico, o kantiano moderno e o neopragmático pós-moderno foram elaborados a partir de um tipo de reflexão denominada de fundamentação condicionada, considerando que a afirmação da dignidade humana depende do desenvolvimento e execução de determinadas qualidades intelectuais e morais da pessoa. No caso do neopragmatismo, os critérios escolhidos são os de utilidade social, conveniência e capacidade. Já a perspectiva ontológica, própria da tradição cristã e do jusnaturalismo, oferece uma fundamentação incondicionada, na qual a dignidade não depende de fatores externos ao ser humano, nem sequer do exercício de faculdades intelectuais ou morais, mais desenvolvidas nos adultos. Nesta perspectiva, a dignidade humana não está condicionada e não se sujeita às convenções jurídico-sociais.


* Filósofo, mestre e doutor em Teologia com pós-doutorado em Bioética pela PUC-Rio. É coordenador acadêmico e professor do curso de pós-graduação em Bioética da PUC-Rio, membro do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Instituto Nacional do Câncer (INCA – Ministério da Saúde), membro da Comissão de Bioética da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e membro da Equipe de Apoio da Seção Vida do Consejo Episcopal Latinoamericano (CELAM).

[1] Cf. ADORNO, R. Bioética y dignidad de la persona. Madrid: Tecnos, 1998.

[2] Cf. WOJTILA, K. Metafisica della persona. Milano: Edizioni Bompiani Il Pensiero Occidentale, 2003; MOUNIER, E.  Il personalismo. Roma: Editrice AVE, 1999; VV.AA. Persona e personalismo. Aspetti filosofici e teologici. Padova: Gregoriana, 1992.

[3] Cf. FRAILE, G. Historia de la filosofia. Vol. I, Madrid: BAC, 1990, p. 370-381, 456, 464, 468-470, 487-504.

[4] Cf. JONES, D.A. The soul of the embryo: an enquiry into the status of the human embryo in the christian tradition. London/ New York: Continuum, 2004, p. 125-140.

[5] II Sent., d. 25, a. 2, q. 2 ad 4.

[6] MTr, q. 2, a. 2, n. 9. (V, 66s).

[7] Cf. MERINO, J.A. Historia de la filosofia franciscana. Madrid: BAC, 1993, p. 71.

[8] II Sent., d. 3, p. 1, a. 2, q. 2ad 1 (II, 107).

[9] Cf. RAPONI, S. Il tema dell’immagine-somiglianza nell’antropologia dei padri. Roma: Teresianum, 1981; RUIZ DE LA PEÑA, J.L. Immagine di Dio: antropologia teologica fondamentale. Roma: Borla, 1992; BÜHLER, P. Humain à l’image de Dieu. La théologie et lês sciences humaines face au problème de l’antropologie. Genève: Labor et Fides, 1989; ANDERSON, R. On being human. Essays in theological anthropology. Grand Rapids: Eerdmans, 1982.

[10] Cf. HIRSCHBERGER, J. Historia de la filosofia. Vol. II, Barcelona: Herder, 1956, p. 179-189.

[11] Cf. KANT, I. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins fontes, 2002, p. 33-35; HIRSCHBERGER, J. Historia de la filosofia. Vol. II, Barcelona: Herder, 1956, p. 172-174; PASCAL, G. O pensamento de Kant. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 108-126.

[12] Cf. RORTY, R. Contingency, irony and solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 59; RORTY, R. Derechos humanos, racionalidad y sentimentalidad. In: SHUTE, S; HURLEY, S. De los derechos humanos. Madrid: Trotta, 1998, p. 117-136.

[13] Cf. CORTINA, A.; MARTÍNEZ, E. Ética. São Paulo: Loyola, 2005, p. 66-68.


https://www.presbiteros.org.br/

Para um estilo profético da Igreja

A lição de Romano Guardini e a misteriosa luta noturna de Jacob com o anjo

por Andrea Monda

Acaba de ser publicado o livro La lotta di Giacobbe, paradigma della creazione artistica. Un’esperienza comunitaria di formazione integrale su Chiesa, estetica e arte contemporanea ispirata a Romano Guardini — “A luta de Jacob, paradigma da criação artística. Uma experiência comunitária de formação integral sobre Igreja, estética e arte contemporânea inspirada em Romano Guardini”, editado por Yvonne Dohna Schlobitten e Albert Gerhards (Assis, Cittadella Editrice, 2020, 510 páginas). Ao longo dos séculos, a página bíblica de Jacob que luta com o anjo, narrada pelo livro do Génesis (32, 23-33), gerou uma infinidade de reverberações. Este volume reúne as reflexões teóricas, artísticas e pedagógicas de uma experiência de formação integral, desabrochadas deste ícone bíblico, envolvendo um grupo de professores, artistas, estudantes e várias instituições (Pontifícia Universidade Gregoriana, Kunst-Station Sankt Peter Köln, Museus do Vaticano e Museu de Arte Contemporânea de Aachen). Com efeito, a luta de Jacob pode ser entendida como paradigma da criação artística, daquele processo complexo que implica tanto a reflexão (bíblica, histórica, filosófica, estética, teológica, pedagógica e espiritual) como a praxe (pictórica, escultórica). O volume contém mais de trinta contribuições de diferentes contextos disciplinares, além das ilustrações dos projetos dos artistas participantes. Nesta página publicamos uma reflexão do nosso diretor e excertos do prefácio, escrito pelo reitor da Pontifícia Universidade Gregoriana.

No célebre ensaio Sobre o sagrado, Rudolph Otto cita um trecho do Sermão sobre o Génesis, de Frederick W. Robertson, que se concentra no episódio bíblico do encontro-desencontro noturno entre Jacob e “alguém” (um anjo? o próprio Deus?) e afirma: «Naquela noite, no meio daquela estranha cena, Deus imprimiu na alma de Jacob uma consternação religiosa, a partir de então destinada a desenvolver-se [...] Jacob compreendeu o Infinito, aquele Infinito que é tanto mais genuinamente sentido, quanto menos mencionado». É uma noite de que se fala, uma noite marcada pela polarização sombra/luz, que começa nas trevas da solidão (“Jacob ficou sozinho...”) mas acaba luminosamente (“E o sol nasceu...”). Esta noite misteriosa, cheia de sinais, enigmas e presença humana e divina, é uma noite que no âmbito da filosofia e da arte gerou de modo inesgotável, e ainda hoje não deixa de gerar, tanto pensamento como beleza.

O livro que apresentamos, La lotta di Giacobbe, paradigma della creazione artistica, editado por Yvonne Dohna Schlobitten e Albert Gerhards, é uma sua confirmação clara e forte já na abordagem, como Dohna explica na introdução: «A intenção deste volume não consiste em aprofundar a contribuição de Guardini, mas em inspirar-se nela a fim de indicar o caminho para criar e viver experiências formativas de acordo com o seu estilo no nosso mundo contemporâneo. O projeto propõe uma nova educação para a contemporaneidade, através de um diálogo criativo para uma Igreja em saída». O que os autores, inspirando-se na leitura guardiniana do episódio bíblico (um acontecimento que contém a experiência da passagem, da transformação e da mudança), pedem à Igreja é que ela viva um estilo profético, inclusive em relação ao mundo da arte.

É forte o eco da pregação de Bergoglio, a quem o volume é dedicado, também à luz da dívida contraída, e sempre reconhecida, pelo jesuíta argentino com o teólogo ítalo-alemão. Neste sentido, é esclarecedor o texto inspirador do ensaio, no qual Guardini por um lado observa o dado decisivo de que no final Jacob venceu a luta com o anjo e, por outro, reflete sobre o tema da liberdade, dom dramático de Deus aos homens, chamados a «receber Deus como “bênção” e sob a forma do “nome” através da luta. Deus opõe-se a nós em tudo. [...] A sua força vem na nossa direção; mas tem a forma do amor, porque vem para ser superada»; por isso, Deus «não se eleva diante de nós como um muro, contra o qual se esmaga toda a força; não ataca como uma violência que predomina e destrói». Ao contrário, vem na figura do amor, que deseja ser vencido, para se poder conceder. Só se pode conceder se for vencido, assim dá a força e volta a chamá-la... Como é misterioso que uma criatura deve ser “forte” perante Deus!». Sente-se o mesmo timbre de Guardini, autor de L’opposizione polare, um texto que teve tanto impacto no pensamento de Bergoglio. À luz deste aspeto, o ensaio de Dohna e Gerhards revela-se não apenas como um audaz texto de filosofia estética, mas também como uma requintada introdução ao pensamento e à pregação do Papa Francisco, entendidos no momento presente da “luta”, extenuante mas vital, com a contemporaneidade.

L'Osservatore Romano

Da Homilia na Dedicação da Basílica Nacional de Aparecida, do papa João Paulo II

A12.com

(Pronunciamentos do Papa no Brasil, Edit. Vozes, Petrópolis 1980, 125. 128. 129. 130)     (Séc.XX)

 

A devoção a Maria é fonte de vida cristã profunda

“Viva a Mãe de Deus e nossa, sem pecado concebida! Viva a Virgem Imaculada, a Senhora Aparecida!” 

Desde que pus os pés em terra brasileira, nos vários pontos por onde passei, ouvi este cântico. Ele é, na ingenuidade e singeleza de suas palavras, um grito da alma, uma saudação, uma invocação cheia de filial devoção e confiança para com aquela que, sendo verdadeira Mãe de Deus, nos foi dada por seu Filho Jesus no momento extremo da sua vida para ser nossa Mãe. 

Sim, amados irmãos e filhos, Maria, a Mãe de Deus, é modelo para a Igreja, é Mãe para os remidos. Por sua adesão pronta e incondicional à vontade divina que lhe foi revelada, torna-se Mãe do Redentor, com uma participação íntima e toda especial na história da salvação. Pelos méritos de seu Filho, é Imaculada em sua Conceição, concebida sem a mancha original, preservada do pecado e cheia de graça. 

Ao confessar-se serva do Senhor (Lc 1,38) e ao pronunciar o seu sim, acolhendo “em seu coração e em seu seio” o mistério de Cristo Redentor, Maria não foi instrumento meramente passivo nas mãos de Deus, mas cooperou na salvação dos homens com fé livre e inteira obediência. Sem nada tirar ou diminuir e nada acrescentar à ação daquele que é o único Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, Maria nos aponta as vias da salvação, vias que convergem todas para Cristo, seu Filho, e para a sua obra redentora. 

Maria nos leva a Cristo, como afirma com precisão o Concílio Vaticano II: “A função maternal de Maria, em relação aos homens, de modo algum ofusca ou diminui esta única mediação de Cristo; antes, manifesta a sua eficácia. E de nenhum modo impede o contato imediato dos fiéis com Cristo, antes o favorece”. 

Mãe da Igreja, a Virgem Santíssima tem uma presença singular na vida e na ação desta mesma Igreja. Por isso mesmo, a Igreja tem os olhos sempre voltados para aquela que, permanecendo virgem, gerou, por obra do Espírito Santo, o Verbo feito carne. Qual é a missão da Igreja senão a de fazer nascer o Cristo no coração dos fiéis, pela ação do mesmo Espírito Santo, através da evangelização? Assim, a “Estrela da Evangelização”, como a chamou o meu Predecessor Paulo VI, aponta e ilumina os caminhos do anúncio do Evangelho. Este anúncio de Cristo Redentor, de sua mensagem de salvação, não pode ser reduzido a um mero projeto humano de bem-estar e felicidade temporal. Tem certamente incidências na história humana coletiva e individual, mas é fundamentalmente um anúncio de libertação do pecado para a comunhão com Deus, em Jesus Cristo. De resto, esta comunhão com Deus não prescinde de uma comunhão dos homens uns com os outros, pois os que se convertem a Cristo, autor da salvação e princípio de unidade, são chamados a congregar-se em Igreja, sacramento visível desta unidade humana salvífica. 

Por tudo isto, nós todos, os que formamos a geração hodierna dos discípulos de Cristo, com total aderência à tradição antiga e com pleno respeito e amor pelos membros de todas as comunidades cristãs, desejamos unir-nos a Maria, impelidos por uma profunda necessidade da fé, da esperança e da caridade. Discípulos de Jesus Cristo neste momento crucial da história humana, em plena adesão à ininterrupta Tradição e ao sentimento constante da Igreja, impelidos por um íntimo imperativo de fé, esperança e caridade, nós desejamos unir-nos a Maria. E queremos fazê-lo através das expressões da piedade mariana da Igreja de todos os tempos. 

A devoção a Maria é fonte de vida cristã profunda, é fonte de compromisso com Deus e com os irmãos. Permanecei na escola de Maria, escutai a sua voz,segui os seus exemplos. Como ouvimos no Evangelho, ela nos orienta para Jesus: Fazei o que ele vos disser (Jo 2,5). E, como outrora em Caná da Galiléia, encaminha ao Filho as dificuldades dos homens, obtendo dele as graças desejadas. Rezemos com Maria e por Maria: ela é sempre a “Mãe de Deus e nossa”.

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF