Presbíteros |
- Tendências teológicas
pós-conciliares
Na década de 1970, o presbiterato viveu uma crise de proporções talvez
nunca antes vistas na história da Igreja. O fato de isso ter acontecido pouco
depois da conclusão do Vaticano II nos leva a dizer com certeza post
hoc, mas não podemos afirmar com igual segurança também o propter
hoc. A sucessão temporal nem sempre indica uma relação de causalidade e,
por conseguinte, o fato de uma “crise de identidade do presbítero”[33] generalizada
ter sido experimentada depois do último
Concílio não significa que a única explicação plausível seja que essa crise
surgiu por causa do Vaticano
II. É preciso, isto sim, reconhecer que esta se manifestou não apenas por
razões culturais e sociais, mas também porque cedo nos afastamos do texto
conciliar, para desenvolver outras visões do sacerdócio. A crise de identidade
do presbítero – que de muitos pontos de vista perdura até hoje – fez surgir uma
série de perguntas entre os teólogos e os pastoralistas, e produziu um desvio
nas publicações sobre o ministério ordenado: a bibliografia sobre o sacerdócio
orientou-se, entre o final da década de 1970 e a de 1980, não mais aos textos
conciliares, a não ser in obliquo, mas, sim, ao tema
dos ministérios do Novo Testamento e ao estudo sobre a razão de ser do
ministério ordenado na Igreja[34].
De modo geral, os estudos teológicos sobre o presbiterato se polarizaram
em torno de dois núcleos: o cristológico e o eclesiológico[35].
Os estudos da primeira série (a cristológica) se desenvolveram em duas linhas
principais: uma que sublinha sobretudo o caráter cultual do ministério
ordenado, entendendo-o principalmente como sacerdócio; e outra que
desenvolve mais a categoria de representação, numa reflexão que
se apoia no caráter missionário e pastoral do presbiterato. Detendo-nos na
leitura que fizemos da LG e do PO, com base na tradição bimilenar da Igreja, o
primeiro modelo parece ser mais adequado, ainda que seja preciso evitar alguns
erros em que podemos incorrer, se este é mal aplicado. No modelo
“sacral-sacerdotal”, o presbítero é compreendido com base no sacerdócio que
Cristo instituiu e transmitiu em primeiro lugar aos apóstolos e depois, a
partir destes, a seus sucessores. Nessa ótica está fundamentalmente o texto da
Carta aos Hebreus, cujo valor, no que diz respeito à teologia do sacerdócio
cristão, foi muitas vezes contestado em nossos tempos, mas – como vimos – é
afirmado com clareza pela tradição magisterial e teológica. É claro que nessa
ótica a identidade do sacerdote católico é compreendida em relação a Cristo[36].
O limite observado por diversos estudiosos recentes consiste no fato de alguns
representantes dessa orientação teológica entenderem o munus
sanctificandi como o “ser” do presbítero e os munera
docendi et regendi apenas como o “fazer”, pondo em risco a unidade entre os tria
munera. Essa aplicação do modelo sacral ou sacerdotal da teologia do
presbiterato não coincide perfeitamente com os textos sobre o presbiterato do
Vaticano II, que falam da supremacia do munus
sanctificandi, mas não o separam claramente dos outros dois munera.
Assim, outros teólogos, mesmo permanecendo no polo interpretativo
cristológico, preferiram desenvolver a teologia do presbiterato católico
segundo o modelo da representação (modelo missionário-pastoral), que – como
vimos – era utilizado já no Catecismo
Tridentino[37]. Entre esses
autores, desponta o nome de Joseph Ratzinger[38].
Ele assumiu a categoria da “missão de Cristo” como ponto de partida de sua
teologia do sacerdócio ministerial. O ministro deve ser compreendido em
primeiro lugar como enviado. A missão
constitui a natureza do ministério ordenado, e essa missão é sempre entendida a
partir do polo cristológico: é Cristo, o Enviado do Pai, que está presente no
ministro (representação vicária) e continua, por intermédio dele, sua missão.
Dessa forma é evitada também a alternativa entre aspectos ontológicos e
funcionais do sacerdócio católico. É extremamente relevante que Ratzinger tenha
reapresentado essa linha interpretativa também como Pontífice, na Audiência
Geral da quarta-feira seguinte à abertura solene do Ano Sacerdotal. Nela, o
Papa chamou a atenção explicitamente também para seus estudos sobre a matéria
enquanto teólogo particular, dizendo:
“Num mundo em que a visão conjunta da vida abrange cada vez menos o
sagrado, em cujo lugar a ‘funcionalidade’ se torna a única categoria decisiva,
a concepção católica do sacerdócio poderia correr o risco de perder a sua
consideração natural, às vezes inclusive no interior da consciência eclesial.
Não raro, quer nos ambientes teológicos, quer também na prática pastoral
concreta e de formação do clero, confrontam-se e por vezes opõem-se dois
conceitos diferentes de sacerdócio. A este propósito, salientei há alguns anos
que existe ‘por um lado uma concepção social-funcional que define a essência do
sacerdócio com o conceito de serviço: o serviço à
comunidade, no cumprimento de uma função. […] Por outro lado, existe a
concepção sacramental-ontológica, que, naturalmente, não nega a índole de
serviço do sacerdócio, mas, ao contrário, a vê ancorada no ser do ministro e
considera que esse ser é determinado por um dom concedido pelo Senhor pela
mediação da Igreja, cujo nome é sacramento’ (Ratzinger, J. “Ministero e vita
del Sacerdote”. In: Elementi
di Teologia Fondamentale. Saggio su fede e ministero. Bréscia:
2005, p. 165). Também a passagem terminológica da palavra ‘sacerdócio’ para os
termos ‘serviço, ministério e encargo’ é sinal dessa concepção diferente. Além
disso, à primeira, a ontológico-sacramental, está vinculado o primado da
Eucaristia, no binômio ‘sacerdócio-sacrifício’, enquanto à segunda corresponde
o primado da palavra e do serviço do anúncio.
Considerando bem, não se trata de duas concepções opostas, e a tensão
que, contudo, existe entre elas deve ser resolvida a partir de dentro [segue
citação de PO 2].
Então, interroguemo-nos: ‘O que significa propriamente, para os
sacerdotes, evangelizar? Em que consiste o chamado primado do anúncio?’ Jesus
fala do anúncio do Reino de Deus como da verdadeira finalidade da sua vinda ao
mundo e o seu anúncio não é apenas um ‘discurso’. Inclui, ao mesmo tempo, o seu
próprio agir: os sinais e os milagres que realiza indicam que o Reino vem ao
mundo como uma realidade presente, que em última análise coincide com a sua
própria pessoa. Neste sentido, é importante recordar que, também no primado do
anúncio, palavra e sinal são indivisíveis. A pregação cristã não proclama
‘palavras’, mas a Palavra, e o anúncio coincide com a própria pessoa de Cristo,
ontologicamente aberta à relação com o Pai e obediente à sua vontade. Portanto,
um serviço autêntico à Palavra exige da parte do sacerdote que tenda para uma
aprofundada abnegação de si mesmo, a ponto de dizer com o Apóstolo: ‘Já não sou
eu que vivo, é Cristo que vive em mim’. O presbítero não pode considerar-se
‘senhor’ da palavra, mas servo. Ele não é a palavra, mas, como proclamava João
Batista, cuja Natividade celebramos precisamente hoje, é ‘voz’ da Palavra: ‘Voz
que brada no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas’
(Mc 1,3).
Pois bem, ser ‘voz’ da Palavra não constitui para o sacerdote um mero
aspecto funcional. Pelo contrário, pressupõe um substancial ‘perder-se’ em Cristo,
participante no seu mistério de morte e de ressurreição com todo o próprio eu:
inteligência, liberdade, vontade e oferta do próprio corpo, como sacrifício
vivo (cf. Rm 12,1-2). Somente a participação no sacrifício de Cristo, na
sua kénosi, torna autêntico o
anúncio! E este é o caminho que deve percorrer com Cristo para chegar a dizer
ao Pai, juntamente com Ele: ‘Não se faça o que Eu quero, mas o que tu queres’
(Mc 14,36). Então, o anúncio comporta sempre também o sacrifício pessoal,
condição para que o anúncio seja genuíno e eficaz.
Alter Christus, o sacerdote está
profundamente unido ao Verbo do Pai, que, encarnando-se, assumiu a forma de
servo, se tornou servo (cf. Fl 2,5-11). O presbítero é servo de Cristo, no
sentido de que a sua existência, ontologicamente configurada com Cristo,
adquire uma índole essencialmente relacional: ele vive em Cristo, por Cristo
e com Cristo ao serviço dos homens.
Precisamente porque pertence a Cristo, o presbítero encontra-se radicalmente ao
serviço dos homens: é ministro da sua salvação, nessa progressiva assunção da
vontade de Cristo, na oração, no ‘estar coração a coração’ com Ele. Assim, essa
é a condição imprescindível de cada anúncio, que exige a participação na
oferenda sacramental da Eucaristia e a obediência dócil à Igreja”[39].
Como deduzimos do longo texto citado, o Papa retoma de seus estudos
teológicos a orientação de uma teologia do presbiterato guiada pelo polo cristocêntrico
e exposta com base no modelo missionário-pastoral da representação. O Santo
Padre evidencia, porém, o que continua a ser imprescindível: o caráter sagrado
do sacerdócio. Entre outras coisas, Bento XVI cita a expressão alter
Christus, típica do modelo sacro-cultual, que portanto não deixa brechas a
dúvidas sobre o ensinamento proposto pelo Pontífice. Em síntese, podemos dizer
que o Papa lembrou como é inquebrável o binômio identidade-missão. O
presbiterato deve ser compreendido ontologicamente quanto à identidade
sacerdotal, derivada da recepção do sacramento da Ordem. Semelhante identidade
tem por finalidade a missão e dela é inseparável[40].
A negação de um desses dois aspectos leva a visões redutivas do ministério
ordenado. O papa Bento refrisou esse ensinamento na Audiência Geral de 1º de
julho:
“Na verdade, precisamente considerando o binômio ‘identidade-missão’,
cada sacerdote pode sentir melhor a necessidade daquela progressiva
identificação com Cristo que lhe assegura a fidelidade e a fecundidade do
testemunho evangélico. O próprio título do Ano sacerdotal – Fidelidade
de Cristo, fidelidade do sacerdote – põe em evidência o fato de
que o dom da graça divina precede qualquer possível resposta e realização
pastoral do homem, e assim, na
vida do sacerdote, anúncio missionário e culto nunca são separáveis, como nunca
devem ser separadas a identidade ontológico-sacramental e a missão
evangelizadora. De resto, a finalidade da missão de cada presbítero, poderíamos dizer,
é ‘cultual’: para que todos os homens possam oferecer-se a Deus como hóstia
viva, santa e do seu agrado (cf. Rm 12,1)”[41].
A visão equilibrada e tendencialmente completa oferecida por Bento XVI
mostra, pelo contraposição, a parcialidade das leituras tantas vezes feitas na
última década a partir do outro polo interpretativo, o eclesiológico.
Frequentemente, na década de 1970, os candidatos ao sacerdócio, ou os
presbíteros nos retiros mensais do clero, ouviram repetir que o sacerdote, mais
que representante de Cristo (como ensina o Vaticano II), seria representante da
comunidade, enquanto presidente, mas também expressão dela. Dessa forma, nos
aproximávamos do conceito protestante do ministério, mas perdíamos de vista
aspectos essenciais da tradição teológico-magisterial católica, até mesmo do
ponto de vista do exercício concreto do ministério, com a consequente submissão
do sacerdote à comunidade, da qual devia ser intérprete, mais que guia, e da
qual devia prestar contas.
Não raro, além disso, algumas orientações teológicas propuseram-se à
sistemática dessacralização e até à “desacerdotalização” do ministério
presbiteral. O presbiterato foi interpretado preponderantemente, quando não
exclusivamente, de modo funcional e não ontológico. Destacam-se, entre os
estudiosos que expressam essa linha, e que naturalmente apresentam também
notáveis diferenças entre si, os nomes de Karl Rahner[42],
Edward Schillebeeckx[43],
Hans Küng[44],
Leonardo Boff[45] e
outros. É importante, aqui, não deixar de apresentar suas propostas, mesmo que
de maneira puramente esquemática. Podemos dizer apenas que, em termos gerais,
uma visão principalmente funcional do presbiterato não coincide nem com os
textos do Vaticano II nem com a bimilenar tradição magisterial e teológica de
que este nasceu, representando sua mais recente manifestação conciliar. Citamos
mais uma vez Bento XVI:
“Tendo recebido um dom de graça tão extraordinário, mediante a sua
‘consagração’, os presbíteros tornam-se testemunhas permanentes do seu encontro
com Cristo. Partindo precisamente dessa consciência interior, eles podem
desempenhar plenamente a sua ‘missão’, pelo anúncio da Palavra e pela
administração dos Sacramentos. Depois
do Concílio Vaticano II, houve aqui e ali a impressão de que na missão dos
sacerdotes, neste nosso tempo, havia algo de mais urgente; alguns pensavam que
era necessário, em primeiro lugar, construir uma sociedade diversa. A página
evangélica, que ouvimos no início, evoca ao contrário os dois elementos
essenciais do ministério sacerdotal. Naquela época e hoje, Jesus envia os
Apóstolos a anunciar o Evangelho e confere-lhes o poder de expulsar os
espíritos malignos. Portanto, ‘anúncio’ e ‘poder’, ou seja, ‘palavra’ e
‘sacramento’, são as duas colunas fundamentais do serviço sacerdotal, para além
das suas possíveis e múltiplas configurações”[46].
Referência: Clerus.org