- Aspectos concretos da pastoral e
da formação para o presbiterato
Também nesta última seção, como em todas as anteriores, não temos nem
poderíamos ter a menor veleidade de apresentar um discurso orgânico e completo.
Façamos apenas um punhado de observações a um tema de grande importância, que
merece reflexões adequadas em local apropriado.
A ação pastoral dos presbíteros e a formação dos candidatos ao
presbiterato estão estreitamente ligadas à visão que tivermos da identidade e
do papel do ministro ordenado. A linha magisterial que desembocou no grande
Concílio de Trento imprimiu uma imagem clara do sacerdote e exerceu
incalculável influência sobre a pastoral e sobre a formação. O presbítero é aí
considerado sobretudo pastor de almas, autoridade constituída sobre uma porção
do rebanho de Cristo, para cuja santificação colabora, como instrumento vivo do
Senhor, sobretudo mediante a celebração dos sacramentos, principalmente a
Eucaristia e a Penitência, mas também por meio dos outros munera que lhe são
próprios[47].
A formação obtida no seminário – lembremos que foi justamente o Concílio de
Trento que deu impulso a essa instituição – tendia fundamentalmente a preparar
sacerdotes que se dedicassem ao cuidado das almas e sublinhava, com correção e
de bom grado, a grandeza do sacerdote, escolhido pelo Senhor para desenvolver
no seio da Igreja, em nome desta e em obediência a sua hierarquia, um papel de
extraordinário valor e dignidade. O Padre da Igreja de referência, aqui, é São
João Crisóstomo, que escreveu páginas esplêndidas sobre a dignidade e a
grandeza do sacerdote.
O limite dessa orientação consiste no perigo do clericalismo e de uma
insuficiente valorização do laicado católico. Outro perigo é o de absolutizar a
figura sacerdotal, esquecendo que esta é chamada a desenvolver seu papel não
apenas “diante” da Igreja, mas também “dentro” desta[48].
Em terceiro lugar, poderia nem sempre ser visto com clareza o vínculo de
fraternidade sacerdotal, baseado no fato de pertencer à Ordem dos presbíteros.
Enfim, se é verdade que nessa visão o vínculo entre episcopado e presbiterato
se baseia no sacerdócio comum, ou seja, no poder de consagrar a Eucaristia e de
celebrar outros sacramentos (munus
sanctificandi), menos evidente é o laço entre bispos e presbíteros no que diz
respeito aos outros dois munera. O Vaticano II,
como vimos, quis, por conseguinte, reafirmar a doutrina tradicional sobre o
presbiterato, dentro de uma visão que levasse em conta esses riscos, além das
transformadas circunstâncias históricas. Não se trata de uma revisão dogmática,
mas de uma apresentação nova da doutrina de sempre e de uma consistente
aplicação pastoral dessa doutrina. Semelhante ensinamento, quando foi seguido e
aplicado, trouxe frutos significativos para a vida sacerdotal e para a formação
preparatória a esta.
Como dissemos, todavia, essa orientação muitas vezes foi substituída por
um modelo diferente. O texto do Concílio foi abandonado muito cedo, e
delineou-se uma visão principalmente – quando não exclusivamente – funcional do
presbiterato. O próprio termo “sacerdócio” foi muitas vezes revogado do uso:
houve quem falasse apenas de “presbíteros” e não mais de “sacerdotes”. Em muitos
seminários, foi ensinado que não era preciso absolutamente dizer “tornar-se sacerdote”,
mas, sim, “ser ordenado presbítero”. A primeira expressão era rejeitada por ter
um sabor excessivamente ontológico: o presbiterato é um serviço à comunidade,
assinalado mediante o rito da ordenação, mais que um dom sobrenatural, marcado
indelevelmente na alma do ordenado com o caráter sacramental. Na formação
proposta em muitos noviciados e seminários, foram apontados, por exemplo, de
maneira quase exclusiva, perfis de bispos e sacerdotes mergulhados na animação
social, e muito menos, ou de modo algum, figuras de sacerdotes – até mesmo
santos e santificadores – que se dedicaram sobretudo ao ministério sacramental
da Eucaristia e da Penitência, ou que foram mestres da Palavra de Deus e da
arte da oração e da ascese cristãs. A apresentação de figuras de sacerdotes
como Santo Afonso Maria de Ligório, São Pedro Juliano Eymard, São João Maria
Vianney, São Pio de Pietrelcina, São Leopoldo Mandic não aparecia – e muitas
vezes ainda não aparece – no currículo de muitas casas de formação para o
presbiterato e, mesmo quando presente, desses sacerdotes era sublinhado
particularmente o aspecto ativo e a obra caritativa – certamente de enorme
importância -, mais que a prática de ensino da sã doutrina, a vida de oração, o
cuidado com as almas e o culto divino. De fato, aconteceu muitas vezes não
apenas que desse preeminência ao aspecto funcional do sacerdócio, posto acima
do aspecto ontológico, mas também que a missão sacerdotal fosse entendida mais
como um “ir para o mundo” que como uma solicitude perante aqueles que já são
crentes e precisam de ajuda para tender à perfeição cristã. Além disso, foi
sublinhada na formação a unidade entre os dois sacerdócios (comum e
ministerial), e atenuada a sua distinção, que o Concílio define “em essência e
não apenas em grau” (LG 10). Ou seja, enquanto o Vaticano II ditou a linha de
uma renovação da vida sacerdotal e, por reflexo, da formação preparatória para
esta – como podemos ver no Decreto Optatam
Totius –, no pós-concílio outras teologias e outras linhas de formação
foram impostas na prática, o que levou a inserir na Igreja muitos jovens
sacerdotes cuja generosidade de empenho viu-se frustrada ou desorientada na
ação, não tendo recebido uma ideia clara de sua identidade presbiteral e,
portanto, de sua missão.
Também nesse caso, porém, não é preciso aplicar à situação descrita o
dito latino post hoc ergo propter hoc. A difícil
situação, a “crise de identidade do presbítero” do pós-concílio não encontra
sua raiz nos textos do Vaticano II, mas na superposição a estes de uma
hermenêutica da descontinuidade, que quis separar-se da grande tradição da
Igreja e da fecunda releitura que desta fazem os textos conciliares, para
propor uma leitura diferente. Devemos lembrar, porém, que, “enquadrando a
tradicional doutrina do sacerdócio ministerial na perspectiva da missão, o Vaticano II não
refutou a perspectiva do culto e da consagração, mas a tornou mais
dinâmica e eclesial[49].
Em síntese, retomando mais uma vez a conhecida terminologia de Pastores
dabo vobis 16, enquanto os riscos do modelo anterior podem ser sintetizados
no perigo de viver um sacerdócio apenas “diante” e não também “dentro” da
Igreja, os riscos desse modelo mais recente implicam a possibilidade de
entender o presbiterato apenas “dentro” e não também “diante” da Igreja. Nas
aplicações práticas mais radicais, além disso, foi perdida até mesmo a
referência determinante à eclesiologia, e o ministério passou a ser entendido
exclusivamente “para o mundo”, como ação não-religiosa perante o mundo e em
favor da sociedade: é a completa secularização do sacerdócio católico, quando
não existe mais nenhuma identidade presbiteral. É claro que, dentro de
semelhante visão, muitos elementos tradicionais do sacerdócio católico –
citamos aqui apenas o compromisso com o celibato[50] e
a obrigação do traje clerical – já não têm uma razão de ser convincente e por
isso são postos em discussão fortemente. Mas a própria vida espiritual e a
propensão à santidade por uma vida de graça, de contemplação e de ascese –
ardentemente recomendadas pelo Concílio – não se inserem facilmente num quadro
como esse. Um ministério presbiteral entendido em sentido secular não requer
todas essas coisas, que podem mesmo ser interpretadas como desvio de um tempo
precioso que poderia ser dedicado à ação social, ou como uma fuga dos problemas
da “vida real”.
Nesse sentido, a marca que o Santo Padre Bento XVI deu ao Ano Sacerdotal
revela mais uma vez a contribuição de uma hermenêutica da continuidade, baseada
na leitura dos textos conciliares e em sua aplicação prática. De modo
particular, a referência qualificadora ao Cura d’Ars mostra-se extremamente
significativa. Como conclusão, portanto, podemos trazer alguns excertos dos
discursos mais recentes do Papa, algumas passagens dos quais tomamos a
liberdade de destacar.
No discurso em que comunicou a instituição do Ano Sacerdotal, Bento XVI
afirmou:
“Pela imposição das mãos do bispo e pela oração consagradora da Igreja,
os candidatos tornam-se homens novos, tornam-se ‘presbíteros’. Nessa luz,
aparece claramente como os tria
munera são primeiro um dom e só consequentemente um ofício, primeiro a
participação de uma vida, e por isso uma potestas. Sem dúvida, a
grande tradição eclesial desvinculou justamente a eficácia sacramental da
situação existencial concreta de cada sacerdote, e assim as expectativas
legítimas dos fiéis são adequadamente salvaguardadas. Mas essa justa
especificação doutrinal nada tira à necessária,
aliás indispensável, tensão para a perfeição moral, que deve habitar cada
coração autenticamente sacerdotal”.
Nesse discurso, o Sumo Pontífice declarou ter decidido instituir o Ano
Sacerdotal justamente com a finalidade de promover a “tensão
dos sacerdotes para a perfeição espiritual, da qual sobretudo depende a
eficácia de seu ministério”. Em seguida, acrescentou:
“A missão tem suas raízes de modo especial numa boa
formação, desenvolvida em comunhão com a Tradição eclesial ininterrupta, sem
cesuras nem tentações de descontinuidade. Neste sentido, é importante favorecer
nos sacerdotes, sobretudo nas jovens gerações, uma correta acolhida dos textos
do Concílio Ecumênico Vaticano II, interpretados à luz de toda a bagagem
doutrinal da Igreja. Parece urgente também a recuperação desta consciência que impele os
sacerdotes a estar presentes e ser identificáveis e reconhecíveis quer pelo
juízo de fé, quer pelas virtudes pessoais, quer também pelo hábito, nos âmbitos
da cultura e da caridade, desde sempre no coração da missão da Igreja”[51].
Na carta enviada aos sacerdotes por ocasião da instituição do ano a eles
dedicados, o Santo Padre recordou em primeiro lugar, diante dos escândalos
provocados às vezes pelos sacerdotes, que
“o máximo que a Igreja pode extrair de tais casos não é tanto a acintosa
relevação das fraquezas de seus ministros, como sobretudo uma renovada
e consoladora consciência da grandeza do dom de Deus, concretizado em figuras
esplêndidas de generosos pastores, de religiosos inflamados de amor por Deus e
pelas almas, de diretores espirituais esclarecidos e pacientes”.
O Papa, em seguida, apontou o Santo Cura d’Ars como modelo de vida
sacerdotal:
“A primeira coisa que devemos aprender é sua total
identificação com o próprio ministério. Em Jesus, tendem a coincidir Pessoa
e Missão: toda a sua ação salvífica era e é expressão do seu ‘Eu filial’, que,
desde toda a eternidade, está diante do Pai em atitude de amorosa submissão à
sua vontade. Com modesta, mas verdadeira analogia, também o sacerdote deve
ansiar por essa identificação. Não se trata, certamente, de esquecer que a
eficácia substancial do ministério permanece independentemente da santidade do
ministro; mas também não podemos deixar de ter em
conta a extraordinária frutificação gerada pelo encontro entre a santidade
objetiva do ministério e a subjetiva do ministro”.
Bento XVI cita depois algumas expressões de São João Maria Vianney,
relativas à centralidade da Missa para a vida sacerdotal:
“Dizia ele: ‘Todas as boas obras reunidas não igualam o valor do
sacrifício da Missa, porque aquelas são obra de homens, enquanto a Santa Missa
é obra de Deus’. Estava convencido de que todo o fervor
da vida de um padre dependia da Missa: ‘A causa do relaxamento do
sacerdote é que não presta atenção à Missa! Meu Deus, como é de lamentar um
padre que celebra [a Missa] como se fizesse um coisa ordinária!’ E, ao
celebrar, tinha tomado o costume de oferecer sempre também o sacrifício de sua
própria vida: ‘Como faz bem um padre oferecer-se em sacrifício a Deus todas as
manhãs!’ Essa sintonia pessoal com o Sacrifício da Cruz levava-o – por um único
movimento interior – do altar ao confessionário”.
A respeito da vida ascética do sacerdote, o Pontífice lembra que o Santo
Cura
“procurava aderir totalmente à própria
vocação e missão por meio de uma severa ascese: ‘Para nós,
párocos, a grande desdita’, deplorava o Santo, ‘é entorpecer-se a alma’,
entendendo, com isso, o perigo de o pastor se habituar ao estado de pecado ou
de indiferença em que vivem muitas de suas ovelhas. Com vigílias e jejuns,
punha freio ao corpo, para evitar que este opusesse resistência a sua alma
sacerdotal. E não se esquivava a mortificar-se a si mesmo pelo bem das almas
que lhe estavam confiadas e para contribuir para a expiação dos muitos pecados
ouvidos em confissão”.
O Papa mencionou depois outros aspectos, entre os quais o da comunhão
dos presbíteros com os bispos:
“Queria ainda acrescentar, apoiado na exortação apostólica Pastores
dabo vobis, do Papa João Paulo II, que o
ministério ordenado tem uma radical ‘forma comunitária’ e pode ser
cumprido apenas na comunhão dos presbíteros com o seu bispo. É preciso que essa
comunhão entre os sacerdotes e com o respectivo bispo, baseada no sacramento da
Ordem e manifestada na concelebração eucarística, se traduza nas diversas
formas concretas de uma fraternidade
sacerdotal efetiva e afetiva. Só desse modo é que os sacerdotes
poderão viver em plenitude o dom do celibato e serão capazes de fazer florir
comunidades cristãs em que se renovem os prodígios da primeira pregação do
Evangelho”[52].
Enfim, na homilia pronunciada durante as Vésperas da Solenidade do
Santíssimo Coração de Jesus, o Papa disse:
“Como não recordar com emoção que diretamente deste Coração brotou o dom
do nosso ministério sacerdotal? Como esquecer que nós, presbíteros, fomos
consagrados para servir, humilde e respeitavelmente, o sacerdócio comum dos
fiéis? A nossa missão é indispensável para a
Igreja e para o mundo, e requer plena fidelidade a Cristo e união incessante
com Ele; ou seja, exige que tendamos constantemente para a santidade [para o
amor de Jesus], como fez São João Maria Vianney”[53].
Referência: Clerus.org
Fonte: https://www.presbiteros.org.br/