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Cada mês, em 10 episódios, um vídeo com as reflexões do
Papa e o testemunho de famílias de todas as partes do mundo – realizado em
colaboração entre o Dicastério Leigos Família e Vida e Vatican News – ajuda a
reler a Exortação apostólica, com a contribuição de um subsídio que pode ser
baixado para o aprofundamento pessoal e comunitário. Porque ser família,
recorda Francisco, é sempre “principalmente uma oportunidade”.
199. Os debates do caminho
sinodal puseram a descoberto a necessidade de desenvolver novos caminhos
pastorais, que procurarei agora resumir em geral. As diferentes comunidades é
que deverão elaborar propostas mais práticas e eficazes, que tenham em conta
tanto a doutrina da Igreja como as necessidades e desafios locais. Sem
pretender apresentar aqui uma pastoral da família, limitar-me-ei a coligir
alguns dos principais desafios pastorais.
Anunciar hoje o Evangelho da
família
200. Os Padres sinodais
insistiram no facto de que as famílias cristãs são, pela graça do sacramento
nupcial, os sujeitos principais da pastoral familiar, sobretudo oferecendo «o
testemunho jubiloso dos cônjuges e das famílias, igrejas domésticas».[225] Para isso – sublinharam – é
preciso fazer-lhes «experimentar que o Evangelho da família é alegria que
“enche o coração e a vida inteira”, porque, em Cristo, somos “libertados do
pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento” (Evangelii
gaudium, 1). À luz da parábola do semeador (cf. Mt 13,
3-9), a nossa tarefa consiste em cooperar na sementeira: o resto é obra de
Deus. E não se deve esquecer também que a Igreja, que prega sobre a família, é
sinal de contradição»,[226] mas os esposos agradecem que os
pastores lhes ofereçam motivações para uma aposta corajosa num amor forte,
sólido, duradouro, capaz de enfrentar todos os imprevistos que lhes surjam. É
com humilde compreensão que a Igreja quer chegar às famílias, com o desejo de
«acompanhar todas e cada uma delas a fim de que descubram a saída melhor para
superar as dificuldades que encontram no seu caminho».[227] Não basta inserir uma genérica
preocupação pela família nos grandes projectos pastorais; para que as famílias
possam ser sujeitos cada vez mais activos da pastoral familiar, requer-se «um
esforço evangelizador e catequético dirigido à família»,[228] que a encaminhe nesta direcção.
201. «Por isso exige-se a toda
a Igreja uma conversão missionária: é preciso não se contentar com um anúncio
puramente teórico e desligado dos problemas reais das pessoas».[229] A pastoral familiar «deve fazer
experimentar que o Evangelho da família é resposta às expectativas mais
profundas da pessoa humana: a sua dignidade e plena realização na
reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata apenas de apresentar
uma normativa, mas de propor valores, correspondendo à necessidade deles que se
constata hoje, mesmo nos países mais secularizados».[230] De igual modo «sublinhou-se a
necessidade duma evangelização que denuncie, com desassombro, os
condicionalismos culturais, sociais, políticos e económicos, bem como o espaço
excessivo dado à lógica do mercado, que impedem uma vida familiar autêntica,
gerando discriminação, pobreza, exclusão e violência. Para isso, temos de
entrar em diálogo e cooperação com as estruturas sociais, bem como encorajar e
apoiar os leigos que se comprometem, como cristãos, no âmbito cultural e
sociopolítico».[231]
202. «A principal contribuição
para a pastoral familiar é oferecida pela paróquia, que é uma família de
famílias, onde se harmonizam os contributos das pequenas comunidades,
movimentos e associações eclesiais».[232] A par duma pastoral
especificamente voltada para as famílias, há necessidade duma «formação mais
adequada dos presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas, catequistas e
restantes agentes pastorais».[233] Nas respostas às consultações
promovidas em todo o mundo, ressaltou-se que os ministros ordenados carecem,
habitualmente, de formação adequada para tratar dos complexos problemas atuais
das famílias; para isso, pode ser útil também a experiência da longa tradição
oriental dos sacerdotes casados.
203. Os seminaristas deveriam
ter acesso a uma formação interdisciplinar mais ampla sobre namoro e
matrimónio, não se limitando à doutrina. Além disso, a formação nem sempre lhes
permite desenvolver o seu mundo psicoafectivo. Alguns carregam, na sua vida, a
experiência da sua própria família ferida, com a ausência de pais e
instabilidade emocional. É preciso garantir um amadurecimento, durante a
formação, para que os futuros ministros possuam o equilíbrio psíquico que a sua
missão lhes exige. Os laços familiares são fundamentais para fortificar a
auto-estima sadia dos seminaristas. Por isso, é importante que as famílias
acompanhem todo o processo do Seminário e do sacerdócio, pois ajudam a
revigorá-lo de forma realista. Neste sentido, é salutar a combinação de tempos
de vida no Seminário com outros de vida em paróquias, que permitam tomar maior
contacto com a realidade concreta das famílias. De facto, ao longo da sua vida
pastoral, o sacerdote encontra-se sobretudo com famílias. «A presença dos
leigos e das famílias, particularmente a presença feminina, na formação
sacerdotal, favorece o apreço pela variedade e complementaridade das diferentes
vocações na Igreja».[234]
204. As respostas às
consultações exprimem, com insistência, também a necessidade de formar agentes
leigos de pastoral familiar, com a ajuda de psicopedagogos, médicos de família,
médicos de comunidade, assistentes sociais, advogados de menores e família,
predispondo-os para receber as contribuições da psicologia, sociologia,
sexologia e até aconselhamento. Os profissionais, particularmente aqueles que
têm experiência de acompanhamento, ajudam a encarnar as propostas pastorais nas
situações reais e nas preocupações concretas das famílias. «Os itinerários e
cursos de formação destinados especificamente aos agentes pastorais poderão
torná-los idóneos a inserir o próprio caminho de preparação para o matrimónio
na dinâmica mais ampla da vida eclesial».[235] Uma boa preparação pastoral é
importante, «sobretudo tendo em vista as particulares situações de emergência
decorrentes dos casos de violência doméstica e abuso sexual».[236] Tudo isto em nada diminui, antes
integra, o valor fundamental da direcção espiritual, dos recursos espirituais
inestimáveis da Igreja e da Reconciliação sacramental.
Guiar os noivos no caminho de
preparação para o matrimónio
205. Os Padres sinodais
afirmaram, de várias maneiras, que é preciso ajudar os jovens a descobrir o
valor e a riqueza do matrimónio.[237] Devem poder captar o fascínio duma
união plena que eleva e aperfeiçoa a dimensão social da vida, confere à
sexualidade o seu sentido maior, ao mesmo tempo que promove o bem dos filhos e
lhes proporciona o melhor contexto para o seu amadurecimento e educação.
206. «A complexa realidade
social e os desafios, que a família é chamada a enfrentar actualmente, exigem
um empenhamento maior de toda a comunidade cristã na preparação dos noivos para
o matrimónio. É necessário lembrara importância das virtudes. Dentre elas,
resulta ser condição preciosa para o crescimento genuíno do amor interpessoal a
castidade. A respeito desta necessidade, os Padres sinodais foram concordes em
sublinhara exigência dum maior envolvimento de toda a comunidade, privilegiando
o testemunho das próprias famílias, e a exigência ainda duma radicação da
preparação para o matrimónio no caminho da iniciação cristã, sublinhando o nexo
do matrimónio com o baptismo e os outros sacramentos. Da mesma forma,
evidenciou-se a necessidade de programas específicos de preparação próxima para
o matrimónio que sejam verdadeira experiência de participação na vida eclesial
e aprofundemos vários aspectos da vida familiar».[238]
207. Convido as comunidades
cristãs a reconhecerem que é um bem para elas mesmas acompanhar o caminho de
amor dos noivos. Como justamente disseram os bispos da Itália, aqueles que se
casam são, para as comunidades cristãs, «um recurso precioso, porque,
esforçando-se sinceramente por crescer no amor e no dom recíproco, podem
contribuir para renovar o próprio tecido de todo o corpo eclesial: a forma
particular de amizade que vivem pode tornar-se contagiosa, fazendo crescer na
amizade e na fraternidade a comunidade cristã de que fazem parte».[239] Há várias maneiras legítimas de
organizar a preparação próxima para o matrimónio e cada Igreja local discernirá
a que for melhor, procurando uma formação adequada que, ao mesmo tempo, não
afaste os jovens do sacramento. Não se trata de lhes ministrar o Catecismo
inteiro nem de os saturar com demasiados temas, sendo válido também aqui que
«não é o muito saber que enche e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear
interiormente as coisas».[240] Interessa mais a qualidade do que
a quantidade, devendo-se dar prioridade – juntamente com um renovado anúncio do
querigma – àqueles conteúdos que, comunicados de forma atraente e cordial, os
ajudem a comprometer-se num percurso da vida toda «com ânimo grande e
liberalidade».[241] Trata-se duma espécie de
«iniciação» ao sacramento do matrimónio, que lhes forneça os elementos
necessários para poderem recebê-lo com as melhores disposições e iniciar com
uma certa solidez a vida familiar.
208. Além disso, convém
encontrar os modos – através das famílias missionárias, das próprias famílias
dos noivos e de vários recursos pastorais – para oferecer uma preparação remota
que faça amadurecer o amor deles com um acompanhamento rico de proximidade e
testemunho. Habitualmente, são muito úteis os grupos de noivos e a oferta de
palestras opcionais sobre uma variedade de temas que realmente interessam aos
jovens. Entretanto são indispensáveis alguns momentos personalizados, dado que
o objectivo principal é ajudar cada um a aprender a amar esta pessoa concreta
com quem pretende partilhar a vida inteira. Aprender a amar alguém não é algo
que se improvisa, nem pode ser o objectivo dum breve curso antes da celebração
do matrimónio. Na realidade, cada pessoa prepara-se para o matrimónio, desde o
seu nascimento. Tudo o que a família lhe deu, deveria permitir-lhe aprender da
própria história e torná-la capaz dum compromisso pleno e definitivo.
Provavelmente os que chegam melhor preparados ao casamento são aqueles que
aprenderam dos seus próprios pais o que é um matrimónio cristão, onde se
escolheram um ao outro sem condições e continuam a renovar esta decisão. Neste
sentido todas as actividades pastorais, que tendem a ajudar os cônjuges a
crescer no amor e a viver o Evangelho na família, são uma ajuda inestimável a
fim de que os seus filhos se preparem para a sua futura vida matrimonial.
Também não devemos esquecer os valiosos recursos da pastoral popular. Só para
dar um exemplo simples, lembro o Dia de São Valentim, que, em alguns países, é
melhor aproveitado pelos comerciantes do que pela criatividade dos pastores.
209. A preparação dos que já
formalizaram o noivado, quando a comunidade paroquial consegue acompanhá-los
com bom período de antecipação, deve dar-lhes também a possibilidade de
individuar incompatibilidades e riscos. Assim é possível chegarem a dar-se
conta de que não é razoável apostar naquela relação, para não se expor a um
previsível fracasso que terá consequências muito dolorosas. O problema é que o
deslumbramento inicial leva a procurar esconder ou relativizar muitas coisas,
evitam-se as divergências, limitando-se assim a adiar as dificuldades para
depois. Os noivos deveriam ser incentivados e ajudados a poderem expressar o
que cada um espera dum eventual matrimónio, a sua maneira de entender o que é o
amor e o compromisso, aquilo que se deseja do outro, o tipo de vida em comum
que se quer projectar. Estes diálogos podem ajudar a ver que, na realidade, os
pontos de contacto são escassos e que a mera atracção mútua não será suficiente
para sustentar a união. Não há nada de mais volúvel, precário e imprevisível
que o desejo, e nunca se deve encorajar uma decisão de contrair matrimónio se
não se aprofundaram outras motivações que confiram a este pacto reais
possibilidades de estabilidade.
210. No caso de se reconhecer
com clareza os pontos fracos do outro, é preciso que exista uma efectiva
confiança na possibilidade de ajudá-lo a desenvolver o melhor da sua
personalidade para contrabalançar o peso das suas fragilidades, com um decidido
interesse em promovê-lo como ser humano. Isto implica aceitar com vontade firme
a possibilidade de enfrentar algumas renúncias, momentos difíceis e situações
de conflito, e a sólida decisão de preparar-se para isso. Deve ser possível
detectar os sinais de perigo que poderá apresentar a relação, para se
encontrar, antes do matrimónio, os meios que permitam enfrentá-los com bom
êxito. Infelizmente, muitos chegam às núpcias sem se conhecer. Limitaram-se a
divertir-se juntos, a fazer experiências juntos, mas não enfrentaram o desafio
de se manifestar a si mesmos e apreender quem é realmente o outro.
211. Tanto a preparação
próxima como o acompanhamento mais prolongado devem procurar que os noivos não
considerem o matrimónio como o fim do caminho, mas o assumam como uma vocação
que os lança para diante, com a decisão firme e realista de atravessarem juntos
todas as provações e momentos difíceis. Tanto a pastoral pré-matrimonial como a
matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se
ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os
momentos duros. Estas contribuições não são apenas convicções doutrinais, nem
se podem reduzir aos preciosos recursos espirituais que a Igreja sempre
oferece, mas devem ser também percursos práticos, conselhos bem encarnados,
estratégias tomadas da experiência, orientações psicológicas. Tudo isto cria
uma pedagogia do amor, que não pode ignorar a sensibilidade actual dos jovens,
para conseguir mobilizá-los interiormente. Ao mesmo tempo, na preparação dos
noivos, deve ser possível indicar-lhes lugares e pessoas, consultórios ou
famílias prontas a ajudar, aonde poderão dirigir-se em busca de ajuda se
surgirem dificuldades. Mas nunca se deve esquecer de lhes propor a
Reconciliação sacramental, que permite colocar os pecados e os erros da vida
passada e da própria relação sob o influxo do perdão misericordioso de Deus e
da sua força sanadora.
A preparação da celebração
212. A preparação próxima do
matrimónio tende a concentrar-se nos convites, na roupa, na festa com os seus
inumeráveis detalhes que consomem tanto os recursos económicos como as energias
e a alegria. Os noivos chegam desfalecidos e exaustos ao casamento, em vez de
dedicarem o melhor das suas forças a preparar-se como casal para o grande passo
que, juntos, vão dar. Esta mesma mentalidade subjaz também à decisão dalgumas
uniões de facto que nunca mais chegam ao matrimónio, porque pensam nas elevadas
despesas da festa, em vez de darem prioridade ao amor mútuo e à sua
formalização diante dos outros. Queridos noivos, tende a coragem de ser
diferentes, não vos deixeis devorar pela sociedade do consumo e da aparência. O
que importa é o amor que vos une, fortalecido e santificado pela graça. Vós
sois capazes de optar por uma festa austera e simples, para colocar o amor
acima de tudo. Os agentes pastorais e toda a comunidade podem ajudar para que
esta prioridade se torne a norma e não a excepção.
213. Na preparação mais
imediata, é importante esclarecer os noivos para viverem com grande
profundidade a celebração litúrgica, ajudando-os a compreender e viver o
significado de cada gesto. Lembremo-nos de que um compromisso tão grande como
este expresso no consentimento matrimonial e a união dos corpos que consuma o
matrimónio, quando se trata de dois baptizados, só podem ser interpretados como
sinais do amor do Filho de Deus feito carne e unido com a sua Igreja em aliança
de amor. Nos baptizados, as palavras e os gestos transformam-se numa linguagem
que manifesta a fé. O corpo, com os significados que Deus lhe quis infundir ao
criá-lo, «transforma-se na linguagem dos ministros do sacramento, conscientes
de que, no pacto conjugal, se manifesta e realiza o mistério».[242]
214. Às vezes, os noivos não
percebem o peso teológico e espiritual do consentimento, que ilumina o
significado de todos os gestos sucessivos. É necessário salientar que aquelas
palavras não podem ser reduzidas ao presente; implicam uma totalidade que
inclui o futuro: «até que a morte vos separe». O sentido do consentimento
mostra que «liberdade e fidelidade não se opõem uma à outra, aliás apoiam-se
reciprocamente quer nas relações interpessoais quer nas sociais. De facto,
pensemos nos danos que produzem, na civilização da comunicação global, o
aumento de promessas não mantidas (...). A honra à palavra dada, a fidelidade à
promessa não se podem comprar nem vender. Não podem ser impostas com a força,
nem guardadas sem sacrifício».[243]
215. Os bispos do Quénia
fizeram notar que «os futuros esposos, muito concentrados com o dia da boda,
esquecem-se de que estão a preparar-se para um compromisso que dura a vida
inteira».[244] Temos de ajudá-los a darem-se
conta de que o sacramento não é apenas um momento que depois passa a fazer
parte do passado e das recordações, mas exerce a sua influência sobre toda a
vida matrimonial, de maneira permanente.[245] O significado procriador da
sexualidade, a linguagem do corpo e os gestos de amor vividos na história dum
casal de esposos transformam-se numa «continuidade ininterrupta da linguagem
litúrgica» e «a vida conjugal torna-se de algum modo liturgia».[246]
216. Também se pode meditar
com as leituras bíblicas e enriquecer a compreensão do significado das alianças
que trocam entre si, ou doutros sinais que fazem parte do rito. Mas não seria
bom chegarem ao matrimónio sem ter rezado juntos, um pelo outro, pedindo ajuda
a Deus para serem fiéis e generosos, perguntando juntos a Deus que espera
deles, e inclusive consagrando o seu amor diante duma imagem de Maria. Quem os
acompanha na preparação do matrimónio deveria orientá-los para que saibam viver
estes momentos de oração, que lhes podem fazer muito bem. «A liturgia nupcial é
um evento único, que se vive no contexto familiar e social duma festa. Jesus
começou os seus milagres no banquete das bodas de Caná: o vinho bom do milagre
do Senhor, que alegra o nascimento duma nova família, é o vinho novo da Aliança
de Cristo com os homens e mulheres de cada tempo. (...) Frequentemente, o
celebrante tem a oportunidade de se dirigir a uma assembleia formada por
pessoas que participam pouco na vida eclesial ou pertencem a outra confissão
cristã ou comunidade religiosa. Trata-se, pois, duma preciosa ocasião para
anunciar o Evangelho de Cristo».[247]
Acompanhamento nos primeiros
anos da vida matrimonial
217. Temos de reconhecer como
um grande valor que se compreenda que o matrimónio é uma questão de amor: só se
podem casar aqueles que se escolhem livremente e se amam. Apesar disso, se o
amor se reduzir a mera atracção ou a uma vaga afectividade, isto faz com que os
cônjuges sofram duma extraordinária fragilidade quando a afectividade entra em
crise ou a atracção física diminui. Uma vez que estas confusões são frequentes,
torna-se indispensável o acompanhamento dos esposos nos primeiros anos de vida
matrimonial, para enriquecer e aprofundar a decisão consciente e livre de se
pertencerem e amarem até ao fim. Muitas vezes o tempo de noivado não é
suficiente, a decisão de casar-se apressa-se por várias razões e, como se não
bastasse, atrasou a maturação dos jovens. Assim os recém-casados têm de
completar aquele percurso que deveria ter sido feito durante o noivado.
218. Por outro lado, quero
insistir que um desafio da pastoral familiar é ajudar a descobrir que o
matrimónio não se pode entender como algo acabado. A união é real, é
irrevogável e foi confirmada e consagrada pelo sacramento do matrimónio; mas,
ao unir-se, os esposos tornam-se protagonistas, senhores da sua própria
história e criadores dum projecto que deve ser levado para a frente conjuntamente.
O olhar volta-se para o futuro, que é preciso construir dia-a-dia com a graça
de Deus e, por isso mesmo, não se pretende do cônjuge que seja perfeito. É
preciso pôr de lado as ilusões e aceitá-lo como é: inacabado, chamado a
crescer, em caminho. Quando o olhar sobre o cônjuge é constantemente crítico,
isto indica que o matrimónio não foi assumido também como um projecto a
construir juntos, com paciência, compreensão, tolerância e generosidade. Isto
faz com que o amor seja substituído pouco a pouco por um olhar inquisidor e
implacável, pelo controle dos méritos e direitos de cada um, pelas reclamações,
a competição e a autodefesa. Deste modo tornam-se incapazes de se apoiarem um
ao outro para o amadurecimento de ambos e para o crescimento da união. Aos novos
cônjuges, é necessário apresentar isto com clareza realista desde o início, de
modo que tomem consciência de que estão apenas a começar. O «sim» que deram um
ao outro é o início dum itinerário, cujo objectivo se propõe superar as
circunstâncias que surgirem e os obstáculos que se interpuserem. A bênção
recebida é uma graça e um impulso para este caminho sempre aberto.
Habitualmente ajuda sentar-se a dialogar para elaborar o seu projecto concreto
com os seus objectivos, meios, detalhes.
219. Lembro-me dum refrão que
dizia que a água estagnada corrompe-se, estraga-se. O mesmo acontece com a vida
do amor nos primeiros anos do matrimónio quando fica estagnada, cessa de
mover-se, perde aquela inquietude sadia que a faz avançar. A dança conduzida
com aquele amor jovem, a dança com aqueles olhos iluminados pela esperança, não
deve parar. No noivado e nos primeiros anos de matrimónio, é a esperança que
tem em si a força do fermento, que faz olhar para além das contradições,
conflitos, contingências, que sempre faz ver mais além; é ela que põe em
movimento a ânsia de se manter num caminho de crescimento. A mesma esperança
convida-nos a viver em cheio o presente, colocando o coração na vida familiar,
porque a melhor forma de preparar e consolidar o futuro é viver bem o presente.
220. O caminho implica passar
por diferentes etapas, que convidam a doar-se com generosidade: do impacto
inicial caracterizado por uma atracção decididamente sensível, passa-se à
necessidade do outro sentido como parte da vida própria. Daqui passa-se ao
gosto da pertença mútua, seguido pela compreensão da vida inteira como um
projecto de ambos, pela capacidade de colocar a felicidade do outro acima das
necessidades próprias, e pela alegria de ver o próprio matrimónio como um bem
para a sociedade. O amadurecimento do amor implica também aprender a
«negociar». Não se trata duma atitude interesseira nem dum jogo de tipo
comercial, mas, em última análise, dum exercício do amor recíproco, já que esta
negociação é um entrelaçado de recíprocas ofertas e renúncias para o bem da
família. Em cada nova etapa da vida matrimonial, é preciso sentar-se e negociar
novamente os acordos, de modo que não haja vencedores nem vencidos, mas ganhem
ambos. No lar, as decisões não se tomam unilateralmente, e ambos compartilham a
responsabilidade pela família; mas cada lar é único e cada síntese conjugal é
diferente.
221. Uma das causas que leva a
rupturas matrimoniais é ter expectativas demasiado altas sobre a vida conjugal.
Quando se descobre a realidade mais limitada e problemática do que se sonhara,
a solução não é pensar imediata e irresponsavelmente na separação, mas assumir
o matrimónio como um caminho de amadurecimento, onde cada um dos cônjuges é um
instrumento de Deus para fazer crescer o outro. É possível a mudança, o
crescimento, o desenvolvimento das potencialidades boas que cada um traz dentro
de si. Cada matrimónio é uma «história de salvação», o que supõe partir duma
fragilidade que, graças ao dom de Deus e a uma resposta criativa e generosa,
pouco a pouco vai dando lugar a uma realidade cada vez mais sólida e preciosa.
Talvez a maior missão dum homem e duma mulher no amor seja esta: a de se
tornarem, um ao outro, mais homem e mais mulher. Fazer crescer é ajudar o outro
a moldar-se na sua própria identidade. Por isso o amor é artesanal. Quando se
lê a passagem da Bíblia sobre a criação do homem e da mulher, primeiro vê-se
Deus que plasma o homem (cf. Gn 2, 7), depois dá-Se conta de
que falta alguma coisa essencial e plasma a mulher, e então vê a surpresa do
homem: «Ah! Agora sim! Esta sim!» E, em seguida, quase nos parece ouvir aquele
estupendo diálogo no qual o homem e a mulher fazem a mútua descoberta. Com
efeito, mesmo nos momentos difíceis, o outro volta a surpreender e abrem-se
novas portas para se reencontrar, como se fosse a primeira vez; e, em cada nova
etapa, tornam a «plasmar-se» um ao outro. O amor faz com que um espere pelo
outro, exercitando aquela paciência própria de artesão, que herdou de Deus.
222. O acompanhamento deve
encorajar os esposos a serem generosos na comunicação da vida. «De acordo com o
carácter pessoal e humanamente completo do amor conjugal, o justo caminho para
o planeamento familiar pressupõe um diálogo consensual entre os esposos, o
respeito dos tempos e a consideração da dignidade de ambos os membros do casal.
Neste sentido, é preciso redescobrir a Encíclica Humanae vitae (cf.
nn. 10-14) e a Exortação apostólica Familiaris
consortio (cf. nn. 14; 28-35) para se reavivar a
disponibilidade a procriar, contrastando uma mentalidade frequentemente hostil
à vida. (...) A opção da paternidade responsável pressupõe a formação da
consciência que é “o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se
encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (Gaudium et spes,
16). Quanto mais procurarem os esposos ouvir, na sua consciência, a Deus e os
seus mandamentos (cf. Rm 2, 15) e se fizerem acompanhar
espiritualmente, tanto mais a sua decisão será intimamente livre de um arbítrio
subjectivo e da acomodação às modas de comportamento no seu ambiente».[248] Continua a ser válido o que ficou
dito, com clareza, no Concílio Vaticano II: os cônjuges, «de comum acordo e com
esforço comum, formarão rectamente a própria consciência, tendo em conta o seu
bem próprio e o dos filhos já nascidos ou que prevêem virão a nascer, sabendo
ver as condições de tempo e da própria situação e tendo, finalmente, em
consideração o bem da comunidade familiar, da sociedade temporal e da própria
Igreja. São os próprios esposos que, em última instância, devem diante de Deus
tomar esta decisão».[249] Por outro lado, «deve-se promover
o uso dos métodos baseados nos “ritmos naturais da fecundidade” (Humanae vitae,
11). Ponha-se em evidência também que “estes métodos respeitam o corpo dos
esposos, estimulam a ternura entre eles e favorecem a educação duma liberdade
autêntica” (Catecismo da
Igreja Católica, 2370), insistindo sempre que os filhos são um
dom maravilhoso de Deus, uma alegria para os pais e para a Igreja. Através
deles, o Senhor renova o mundo».[250]
Alguns recursos
223. Os Padres sinodais
afirmaram que «os primeiros anos de matrimónio são um período vital e delicado,
durante o qual os cônjuges crescem na consciência dos desafios e do significado
do matrimónio. Daí a necessidade dum acompanhamento pastoral que continue
depois da celebração do sacramento (cf. Familiaris
consortio, parte III). Nesta pastoral, tem grande importância a
presença de casais de esposos com experiência. A paróquia é considerada como o
lugar onde casais especializados podem colocar à disposição dos casais mais
jovens a sua ajuda, com o eventual apoio de associações, movimentos eclesiais e
novas comunidades. Deve-se encorajar os esposos para uma atitude fundamental de
acolhimento do grande dom dos filhos. É preciso sublinhar a importância da
espiritualidade familiar, da oração e da participação na Eucaristia dominical,
e animar os cônjuges a reunirem-se regularmente para promoverem o crescimento
da vida espiritual e a solidariedade nas exigências concretas da vida.
Liturgias, práticas devocionais e Eucaristias celebradas para as famílias,
sobretudo no aniversário de matrimónio, foram citadas como vitais para
favorecer a evangelização através da família».[251]
224. Este caminho é uma
questão de tempo. O amor precisa de tempo disponível e gratuito, colocando
outras coisas em segundo lugar. Faz falta tempo para dialogar, abraçar-se sem
pressa, partilhar projectos, escutar-se, olhar-se nos olhos, apreciar-se,
fortalecer a relação. Umas vezes, o problema é o ritmo frenético da sociedade,
ou os horários impostos pelos compromissos laborais. Outras vezes, o problema é
que o tempo transcorrido em conjunto não tem qualidade; limitam-se a partilhar
um espaço físico, mas sem prestar atenção um ao outro. Os agentes pastorais e
os grupos de famílias deveriam ajudar os casais jovens ou frágeis a aprenderem
a encontrar-se nestes momentos, a parar um diante do outro, e inclusive a partilhar
momentos de silêncio que os obriguem a sentir a presença do cônjuge.
225. Os esposos que têm uma
boa experiência de «treino» nesta linha, podem oferecer os instrumentos
práticos que lhes foram úteis: a programação dos momentos para estar juntos sem
nada exigir, os tempos de recreação com os filhos, as várias maneiras de
celebrar coisas importantes, os espaços de espiritualidade partilhada. Mas
podem também ensinar recursos que ajudam a encher de conteúdo e sentido tais
momentos, para se aprender a comunicar melhor. Isto é da máxima importância
quando se apagou a novidade do noivado. Com efeito, quando não se sabe que
fazer com o tempo partilhado, um ou outro dos cônjuges acabará por se refugiar
na tecnologia, inventará outros compromissos, buscará outros braços, ou
escapará duma intimidade incómoda.
226. Aos casais jovens,
deve-se animar também a criar os seus próprios hábitos, que proporcionem uma
salutar sensação de estabilidade e protecção e que se constroem com uma série
de rituais diários compartilhados. É bom dar-se sempre um beijo pela manhã,
benzer-se todas as noites, esperar pelo outro e recebê-lo à chegada, ter alguma
saída juntos, compartilhar as tarefas domésticas. Ao mesmo tempo, porém, é bom
vencer a rotina com a festa, não perder a capacidade de celebrar em família,
alegrar-se e festejar as experiências belas. Precisam de compartilhar a
surpresa pelos dons de Deus e alimentar, juntos, o entusiasmo pela vida. Quando
se sabe celebrar, esta capacidade renova a energia do amor, liberta-o da monotonia
e enche de cor e esperança os hábitos diários.
227. Nós, pastores, devemos
animar as famílias a crescerem na fé. Para isso, é bom incentivar a confissão
frequente, a direcção espiritual, a participação em retiros. Mas há que
convidar também a criar espaços semanais de oração familiar, porque «a família
que reza unida permanece unida». Entretanto, quando visitamos os lares, devemos
convidar todos os membros da família para um momento de oração, a fim de rezar
uns pelos outros e entregar a família nas mãos do Senhor. Ao mesmo tempo,
convém incentivar cada um dos cônjuges a reservar momentos de oração a sós
diante de Deus, porque cada qual tem as suas cruzes secretas. Por que não
contar a Deus o que turba o coração ou pedir-Lhe a força para curar as próprias
feridas e pedir as luzes necessárias para poder cumprir o próprio compromisso?
Os Padres sinodais salientaram também que «a Palavra de Deus é fonte de vida e
espiritualidade para a família. Toda a pastoral familiar deverá deixar-se
moldar interiormente e formar os membros da igreja doméstica, através da
leitura orante e eclesial da Sagrada Escritura. A Palavra de Deus é não só uma
boa nova para a vida privada das pessoas, mas também um critério de juízo e uma
luz para o discernimento dos vários desafios que têm de enfrentar os cônjuges e
as famílias».[252]
228. Pode acontecer que um dos
cônjuges não seja baptizado ou não queira viver os compromissos da fé. Neste
caso, o desejo que o outro tem de viver e crescer como cristão faz com que a
indiferença do cônjuge seja vivida com amargura. Apesar disso, é possível
encontrar alguns valores comuns que se podem partilhar e cultivar com
entusiasmo. Seja como for, amar o cônjuge não crente, fazê-lo feliz, aliviar os
seus sofrimentos e partilhar a vida com ele é um verdadeiro caminho de
santificação. Por outro lado, o amor é um dom de Deus e, onde se derrama, faz
sentir a sua força transformadora, por vezes de maneira misteriosa, a ponto que
«o marido não crente é santificado pela mulher, e a mulher não crente é
santificada pelo marido» (1 Cor 7, 14).
229. As paróquias, os
movimentos, as escolas e outras instituições da Igreja podem desenvolver várias
mediações para apoiar e reavivar as famílias. Por exemplo, através de recursos
como reuniões de casais vizinhos ou amigos, breves retiros para casais,
conferências de especialistas sobre problemáticas muito concretas da vida
familiar, centros de aconselhamento conjugal, agentes missionários preparados
para falar com os casais acerca das suas dificuldades e aspirações, consultas
sobre diferentes situações familiares (dependências, infidelidade, violência
familiar), espaços de espiritualidade, escolas de formação para pais com filhos
problemáticos, assembleias familiares. A secretaria paroquial deveria ter
possibilidades de receber com cordialidade e ocupar-se das urgências
familiares, ou encaminhá-las facilmente para quem possa dar ajuda. Há também um
apoio pastoral que se verifica nos grupos de casais, sejam eles de serviço ou
de missão, de oração, de formação ou de mútua ajuda. Estes grupos proporcionam
a ocasião de dar, de viver a abertura da família aos outros, de partilhar a fé,
mas ao mesmo tempo são um meio para fortalecer os cônjuges e fazê-los crescer.
230. É verdade que muitos
casais de esposos desaparecem da comunidade cristã depois do matrimónio, mas
com frequência desperdiçamos algumas ocasiões em que eles voltam a estar
presentes e nas quais poderíamos tornar a propor-lhes, de forma atraente, o
ideal do matrimónio cristão e aproximá-los a espaços de acompanhamento.
Refiro-me, por exemplo, ao baptismo dum filho, à Primeira Comunhão, ou quando
participam num funeral ou no casamento dum parente ou amigo. Quase todos os
casais voltam a aparecer nestas ocasiões, que se poderiam aproveitar melhor.
Outro caminho de abordagem é a bênção das casas ou a visita duma imagem da
Virgem, que dão oportunidade para desenvolver um diálogo pastoral sobre a
situação da família. Pode ser útil também confiar a casais mais maduros a
tarefa de acompanhar casais mais recentes da sua própria vizinhança, a fim de
os visitar, acompanhar nos seus inícios e propor-lhes um percurso de
crescimento. Com o ritmo da vida actual, a maioria dos casais não estará
disposta a reuniões frequentes, mas não podemos reduzir-nos a uma pastoral de
pequenas elites. Hoje, a pastoral familiar deve ser fundamentalmente missionária,
em saída, por aproximação, em vez de se reduzir a ser uma fábrica de cursos a
que poucos assistem.
Iluminar crises, angústias e
dificuldades
231. Deixo aqui uma palavra
àqueles que, no amor, já envelheceram o vinho novo do noivado. Quando o vinho
envelhece com esta experiência do caminho, então aparece, floresce em toda a
sua plenitude a fidelidade dos momentos insignificantes da vida. É a fidelidade
da espera e da paciência. Esta fidelidade, cheia de sacrifícios e alegrias, de
certo modo vai florescendo na idade em que tudo fica «sazonado» e os olhos
brilham com a contemplação dos filhos de seus filhos. Foi assim desde o início,
mas agora tornou-se consciente, assente, amadurecido na surpresa quotidiana da
redescoberta dia após dia, ano após ano. Como ensinava São João da Cruz, «os
velhos amantes são os já treinados e testados». Eles «já não têm aqueles
fervores sensíveis nem aquelas ebulições e chamas externas de ardor, mas
saboreiam a suavidade do vinho de amor bem sedimentado na sua substância (...)
assente dentro da alma».[253] Isto supõe que foram capazes de
superar, juntos, as crises e os momentos de angústia, sem fugir aos desafios
nem esconder as dificuldades.
O desafio das crises
232. A história duma família
está marcada por crises de todo o género, que são parte também da sua dramática
beleza. É preciso ajudar a descobrir que uma crise superada não leva a uma relação
menos intensa, mas a melhorar, sedimentar e maturar o vinho da união. Não se
vive juntos para ser cada vez menos feliz, mas para aprender a ser feliz de
maneira nova, a partir das possibilidades que abre uma nova etapa. Cada crise
implica uma aprendizagem, que permite incrementar a intensidade da vida comum
ou, pelo menos, encontrar um novo sentido para a experiência matrimonial. É
preciso não se resignar de modo algum a uma curva descendente, a uma inevitável
deterioração, a uma mediocridade que se tem de suportar. Pelo contrário, quando
se assume o matrimónio como uma tarefa que implica também superar obstáculos,
cada crise é sentida como uma ocasião para chegar a beber, juntos, o vinho
melhor. É bom acompanhar os cônjuges, para que sejam capazes de aceitar as
crises que lhes sobrevêm, aceitar o desafio e atribuir-lhes um lugar na vida
familiar. Os casais experientes e formados devem estar dispostos a acompanhar
outros nesta descoberta, para que as crises não os assustem nem os levem a
tomar decisões precipitadas. Cada crise esconde uma boa notícia, que é preciso
saber escutar, afinando os ouvidos do coração.
233. Perante o desafio duma
crise, a reacção imediata é resistir, pôr-se à defesa por sentir que escapa ao
próprio controle, por mostrar a insuficiência da própria maneira de viver, e
isto incomoda. Então usa-se o método de negar os problemas, escondê-los,
relativizar a sua importância, apostar apenas em que o tempo passe. Mas isto
adia a solução e leva a gastar muitas energias num ocultamento inútil que
complicará ainda mais as coisas. Os vínculos vão-se deteriorando e consolida-se
um isolamento que danifica a intimidade. Numa crise não assumida, o que mais se
prejudica é a comunicação. Assim, pouco a pouco, aquela que era «a pessoa que
amo» passa a ser «quem me acompanha sempre na vida», a seguir apenas «o pai ou
a mãe dos meus filhos», e por fim um estranho.
234. Para se enfrentar uma
crise, é necessário estar presente. É difícil, porque às vezes as pessoas
isolam-se para não mostrar o que sentem, trancam-se num silêncio mesquinho e
enganador. Nestes momentos, é necessário criar espaços para comunicar de
coração a coração. O problema é que se torna ainda mais difícil comunicar num
momento de crise, se nunca se aprendeu a fazê-lo. É uma verdadeira arte que se
aprende em tempos calmos, para se pôr em prática nos tempos borrascosos. É
preciso ajudar a descobrir as causas mais recônditas nos corações dos esposos e
enfrentá-las como um parto que passará e deixará um novo tesouro. Mas, nas
respostas às consultações realizadas, assinalava-se que, em situações difíceis
ou críticas, a maioria não recorre ao acompanhamento pastoral, porque não o
sente compreensivo, próximo, realista, encarnado. Por isso, procuremos agora
debruçar-nos sobre as crises conjugais com um olhar que não ignore a sua carga
de sofrimento e angústia.
235. Há crises comuns que
costumam verificar-se em todos os matrimónios, como a crise ao início quando é
preciso aprender a conciliar as diferenças e a desligar-se dos pais; ou a crise
da chegada do filho, com os seus novos desafios emotivos; a crise de educar uma
criança, que altera os hábitos do casal; a crise da adolescência do filho, que
exige muitas energias, desestabiliza os pais e às vezes contrapõem-nos entre
si; a crise do «ninho vazio», que obriga o casal a fixar de novo o olhar um no
outro; a crise causada pela velhice dos pais dos cônjuges, que requer mais
presença, solicitude e decisões difíceis. São situações exigentes, que provocam
temores, sentimentos de culpa, depressões ou cansaços que podem afectar
gravemente a união.
236. A estas crises, vêm
juntar-se as crises pessoais com incidência no casal, relacionadas com
dificuldades económicas, laborais, afectivas, sociais, espirituais. E
acrescentam-se circunstâncias inesperadas, que podem alterar a vida familiar e
exigir um caminho de perdão e reconciliação. No próprio momento em que procura
dar o passo do perdão, cada um deve questionar-se, com serena humildade, se não
criou as condições para expor o outro a cometer certos erros. Algumas famílias
sucumbem, quando os cônjuges se culpam mutuamente, mas «a experiência mostra
que, com uma ajuda adequada e com a acção de reconciliação da graça, uma grande
percentagem de crises matrimoniais é superada de forma satisfatória. Saber
perdoar e sentir-se perdoado é uma experiência fundamental na vida familiar».[254] «A fadigosa arte da reconciliação,
que requer o apoio da graça, precisa da generosa colaboração de parentes e
amigos, e, eventualmente, até duma ajuda externa e profissional».[255]
237. Tornou-se frequente que,
quando um cônjuge sente que não recebe o que deseja, ou não se realiza o que
sonhava, isso lhe pareça ser suficiente para pôr termo ao matrimónio. Mas,
assim, não haverá matrimónio que dure. Às vezes, para decidir que tudo acabou,
basta uma desilusão, a ausência num momento em que se precisava do outro, um
orgulho ferido ou um temor indefinido. Há situações próprias da inevitável
fragilidade humana, a que se atribui um peso emotivo demasiado grande. Por
exemplo, a sensação de não ser completamente correspondido, os ciúmes, as
diferenças que podem surgir entre os dois, a atracção suscitada por outras
pessoas, os novos interesses que tendem a apoderar-se do coração, as mudanças
físicas do cônjuge e tantas outras coisas que, mais do que atentados contra o
amor, são oportunidades que convidam a recriá-lo uma vez mais.
238. Nestas circunstâncias,
alguns têm a maturidade necessária para voltar a escolher o outro como
companheiro de estrada, para além dos limites da relação, e aceitam com
realismo que não se possam satisfazer todos os sonhos acalentados. Evitam
considerar-se os únicos mártires, apreciam as pequenas ou limitadas
possibilidades que lhes oferece a vida em família e apostam em fortalecer o
vínculo numa construção que exigirá tempo e esforço. No fundo, reconhecem que
cada crise é como um novo «sim» que torna possível o amor renascer reforçado,
transfigurado, amadurecido, iluminado. A partir duma crise, tem-se a coragem de
buscar as raízes profundas do que está a suceder, de voltar a negociar os
acordos fundamentais, de encontrar um novo equilíbrio e de percorrer juntos uma
nova etapa. Com esta atitude de constante abertura, podem-se enfrentar muitas
situações difíceis. Em todo o caso, reconhecendo que a reconciliação é possível,
hoje descobrimos que «se revela particularmente urgente um ministério dedicado
àqueles cuja relação matrimonial se rompeu».[256]
Velhas feridas
239. É compreensível que, nas
famílias, haja muitas dificuldades, quando um dos seus membros não amadureceu a
sua maneira de relacionar-se, porque não curou feridas dalguma etapa da sua
vida. A própria infância e a própria adolescência mal vividas são terreno
fértil para crises pessoais que acabam por afectar o matrimónio. Se todos
fossem pessoas que amadureceram normalmente, as crises seriam menos frequentes
e menos dolorosas. A verdade, porém, é que às vezes as pessoas precisam de
realizar aos quarenta anos um amadurecimento atrasado que deveria ter sido
alcançado no fim da adolescência. Às vezes ama-se com um amor egocêntrico
próprio da criança, fixado numa etapa onde a realidade é distorcida e se vive o
capricho de que tudo deva girar à volta do próprio eu. É um amor insaciável,
que grita e chora quando não obtém aquilo que deseja. Outras vezes ama-se com
um amor fixado na fase da adolescência, caracterizado pelo confronto, a crítica
ácida, o hábito de culpar os outros, a lógica do sentimento e da fantasia, onde
os outros devem preencher os nossos vazios ou apoiar os nossos caprichos.
240. Muitos terminam a sua
infância sem nunca se terem sentido amados incondicionalmente, e isto
compromete a sua capacidade de confiar e entregar-se. Uma relação mal vivida com
os seus pais e irmãos, que nunca foi curada, reaparece e danifica a vida
conjugal. Então é preciso fazer um percurso de libertação, que nunca se
enfrentou. Quando a relação entre os cônjuges não funciona bem, antes de tomar
decisões importantes, convém assegurar-se de que cada um tenha feito este
caminho de cura da própria história. Isto exige que se reconheça a necessidade
de ser curado, que se peça com insistência a graça de perdoar e perdoar-se, que
se aceite ajuda, se procurem motivações positivas e se tente sempre de novo.
Cada um deve ser muito sincero consigo mesmo, para reconhecer que o seu modo de
viver o amor tem estas imaturidades. Por mais evidente que possa parecer que
toda a culpa seja do outro, nunca é possível superar uma crise esperando que
apenas o outro mude. É preciso também questionar-se a si mesmo sobre as coisas
que poderia pessoalmente amadurecer ou curar para favorecer a superação do
conflito.
Acompanhar depois das rupturas
e dos divórcios
241. Nalguns casos, a
consideração da própria dignidade e do bem dos filhos exige pôr um limite firme
às pretensões excessivas do outro, a uma grande injustiça, à violência ou a uma
falta de respeito que se tornou crónica. É preciso reconhecer que «há casos em
que a separação é inevitável. Por vezes, pode tornar-se até moralmente
necessária, quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os filhos
pequenos, das feridas mais graves causadas pela prepotência e a violência, pela
humilhação e a exploração, pela alienação e a indiferença».[257] Mas «deve ser considerado um
remédio extremo, depois que se tenham demonstrado vãs todas as tentativas
razoáveis».[258]
242. Os Padres disseram que «é
indispensável um discernimento particular para acompanhar pastoralmente os
separados, os divorciados, os abandonados. Tem-se de acolher e valorizar
sobretudo a angústia daqueles que sofreram injustamente a separação, o divórcio
ou o abandono, ou então foram obrigados, pelos maus-tratos do cônjuge, a romper
a convivência. Não é fácil o perdão pela injustiça sofrida, mas constitui um
caminho que a graça torna possível. Daí a necessidade duma pastoral da
reconciliação e da mediação, inclusive através de centros de escuta
especializados que se devem estabelecer nas dioceses».[259] Ao mesmo tempo, «as pessoas
divorciadas que não voltaram a casar (que são muitas vezes testemunhas da
fidelidade matrimonial) devem ser encorajadas a encontrar na Eucaristia o
alimento que as sustente no seu estado. A comunidade local e os pastores devem
acompanhar estas pessoas com solicitude, sobretudo quando há filhos ou é grave
a sua situação de pobreza».[260] Um falimento matrimonial torna-se
muito mais traumático e doloroso quando há pobreza, porque se têm muito menos
recursos para reordenar a existência. Uma pessoa pobre, que perde o ambiente
protector da família, fica duplamente exposta ao abandono e a todo o tipo de
riscos para a sua integridade.
243. Quanto às pessoas
divorciadas que vivem numa nova união, é importante fazer-lhes sentir que fazem
parte da Igreja, que «não estão excomungadas» nem são tratadas como tais,
porque sempre integram a comunhão eclesial.[261] Estas situações «exigem um atento
discernimento e um acompanhamento com grande respeito, evitando qualquer
linguagem e atitude que as faça sentir discriminadas e promovendo a sua
participação na vida da comunidade. Cuidar delas não é, para a comunidade
cristã, um enfraquecimento da sua fé e do seu testemunho sobre a
indissolubilidade do matrimónio; antes, ela exprime precisamente neste cuidado
a sua caridade».[262]
244. Além disso, um grande
número de Padres «sublinhou a necessidade de tornar mais acessíveis, ágeis e
possivelmente gratuitos de todo os procedimentos para o reconhecimento dos
casos de nulidade».[263] A lentidão dos processos irrita e
cansa as pessoas. Os meus dois documentos recentes sobre tal matéria[264] levaram a uma simplificação dos
procedimentos para uma eventual declaração de nulidade matrimonial. Através
deles, quis também «evidenciar que o próprio bispo na sua Igreja, da qual está
constituído pastor e chefe, é por isso mesmo juiz no meio dos fiéis a ele
confiados».[265] Por isso, «a aplicação destes
documentos é uma grande responsabilidade para os Ordinários diocesanos,
chamados eles próprios a julgar algumas causas e a garantir, de todos os modos
possíveis, um acesso mais fácil dos fiéis à justiça. Isto implica a preparação de
pessoal suficiente, composto por clérigos e leigos, que se dedique de modo
prioritário a este serviço eclesial. Por conseguinte, será necessário colocar à
disposição das pessoas separadas ou dos casais em crise um serviço de
informação, aconselhamento e mediação, ligado à pastoral familiar, que possa
também acolher as pessoas tendo em vista a investigação preliminar do processo
matrimonial (cf. Mitis Iudex, arts. 2-3)».[266]
245. Os Padres sinodais
puseram em evidência também «as consequências da separação ou do divórcio sobre
os filhos, em todo o caso vítimas inocentes da situação».[267] Acima de todas as considerações
que se queiram fazer, eles são a primeira preocupação, que não deve ser
ofuscada por nenhum outro interesse ou objectivo. Peço aos pais separados:
«Nunca, nunca e nunca tomeis o filho como refém! Separastes-vos devido a muitas
dificuldades e motivos, a vida deu-vos esta provação, mas os filhos não devem
carregar o fardo desta separação; que eles não sejam usados como reféns contra
o outro cônjuge, mas cresçam ouvindo a mãe falar bem do pai, embora já não
estejam juntos, e o pai falar bem da mãe».[268] É irresponsável arruinar a imagem
do pai ou da mãe com o objectivo de monopolizar o afecto do filho, para se
vingar ou defender, porque isso afectará a vida interior daquela criança e
provocará feridas difíceis de curar.
246. A Igreja, embora
compreenda as situações conflituosas que devem atravessar os cônjuges, não pode
cessar de ser a voz dos mais frágeis: os filhos, que sofrem muitas vezes em
silêncio. Hoje, «não obstante a nossa sensibilidade aparentemente evoluída e
todas as nossas análises psicológicas refinadas, pergunto-me se não nos
entorpecemos também relativamente às feridas da alma das crianças. (...)
Sentimos nós o peso da montanha que esmaga a alma duma criança, nas famílias
onde se maltrata e magoa, até quebrar o vínculo da fidelidade conjugal?»[269] Tais experiências molestas não
ajudam estas crianças a amadurecer para serem capazes de compromissos
definitivos. Por isso, as comunidades cristãs não devem deixar sozinhos os pais
divorciados que vivem numa nova união. Pelo contrário, devem integrá-los e
acompanhá-los na sua função educativa. Aliás, «como poderíamos recomendar a
estes pais que façam todo o possível por educar os seus filhos na vida cristã,
dando-lhes o exemplo duma fé convicta e praticada, se os mantivéssemos à
distância da vida da comunidade, como se estivessem excomungados? Devemos
proceder de modo que não se acrescentem outros pesos àqueles que os filhos,
nestas situações, já têm que suportar».[270] Ajudar a curar as feridas dos pais
e sustentá-los espiritualmente é bom também para os filhos, que precisam do
rosto familiar da Igreja que os ampare nesta experiência traumática. O divórcio
é um mal, e é muito preocupante o aumento do número de divórcios. Por isso, sem
dúvida, a nossa tarefa pastoral mais importante relativamente às famílias é
reforçar o amor e ajudar a curar as feridas, para podermos impedir o avanço
deste drama do nosso tempo.
Algumas situações complexas
247. «As questões relacionadas
com os matrimónios mistos requerem uma atenção específica. Os matrimónios entre
católicos e outros baptizados “apresentam, na sua fisionomia particular,
numerosos elementos que convém valorizar e desenvolver quer pelo seu valor
intrínseco quer pela ajuda que podem dar ao movimento ecuménico”. Com tal
finalidade, “procure-se (…) uma colaboração cordial entre o ministro católico e
o não católico, desde o momento da preparação para o matrimónio e para as
núpcias” (Familiaris
consortio, 78). Quanto à participação eucarística, recorda-se
que “a decisão de admitir ou não a parte não católica do matrimónio à comunhão
eucarística deve ser tomada de acordo com as normas gerais em vigor na matéria,
tanto para os cristãos orientais como para os outros cristãos, e tendo em conta
esta situação particular, isto é, que recebem o sacramento do matrimónio
cristão dois cristãos baptizados. Embora os esposos de um matrimónio misto
tenham em comum os sacramentos do baptismo e do matrimónio, a partilha da
Eucaristia pode apenas ser excepcional e, em todo o caso, devem-se observar as
disposições indicadas” (Pont. Conselho para a Promoção da Unidade dos
Cristãos, Directório para a Aplicação dos Princípios e das Normas sobre
o Ecumenismo, 25 de Março de 1993, 159-160)».[271]
248. «Os matrimónios com
disparidade de culto constituem um lugar privilegiado de diálogo
inter-religioso (...). Comportam algumas dificuldades especiais quer em relação
à identidade cristã da família quer quanto à educação religiosa dos filhos.
(...) O número das famílias compostas por uniões conjugais com disparidade de
culto, em aumento nos territórios de missão e também nos países de longa
tradição cristã, requer urgentemente uma atenção pastoral diferenciada segundo
os distintos contextos sociais e culturais. Nalguns países, onde não há
liberdade de religião, o cônjuge cristão é obrigado a mudar de religião para se
poder casar, e não pode celebrar o matrimónio canónico com disparidade de culto
nem baptizar os filhos. Devemos, pois, reafirmar a necessidade de que a
liberdade religiosa seja respeitada em favor de todos».[272] «É necessário prestar uma atenção
particular às pessoas que se unem em tais matrimónios, e não só no período
anterior ao casamento. Enfrentam desafios peculiares os casais e as famílias,
nos quais um dos cônjuges é católico e o outro não-crente. Em tais casos, é
necessário testemunhar a capacidade que tem o Evangelho de mergulhar nestas
situações para tornar possível a educação dos filhos na fé cristã».[273]
249. «Apresentam dificuldades
particulares as situações que dizem respeito ao acesso ao baptismo de pessoas
que estão numa condição matrimonial complexa. Trata-se de pessoas que
contraíram uma união matrimonial estável, num tempo em que pelo menos uma delas
ainda não conhecia a fé cristã. Os bispos são chamados a exercitar, nestes
casos, um discernimento pastoral cônsono ao bem espiritual delas».[274]
250. A Igreja conforma o seu
comportamento ao do Senhor Jesus que, num amor sem fronteiras, Se ofereceu por
todas as pessoas sem exceção.[275] Com os Padres sinodais, examinei a
situação das famílias que vivem a experiência de ter no seu seio pessoas com
tendência homossexual, experiência não fácil nem para os pais nem para os filhos.
Por isso desejo, antes de mais nada, reafirmar que cada pessoa,
independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua
dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar «qualquer sinal de
discriminação injusta»[276] e particularmente toda a forma de
agressão e violência. Às famílias, por sua vez, deve-se assegurar um respeitoso
acompanhamento, para que quantos manifestam a tendência homossexual possam
dispor dos auxílios necessários para compreender e realizar plenamente a
vontade de Deus na sua vida.[277]
251. No decurso dos debates
sobre a dignidade e a missão da família, os Padres sinodais anotaram, quanto
aos projetos de equiparação ao matrimónio das uniões entre pessoas
homossexuais, que não existe fundamento algum para assimilar ou estabelecer
analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de
Deus sobre o matrimónio e a família. É «inaceitável que as Igrejas locais
sofram pressões nesta matéria e que os organismos internacionais condicionem a
ajuda financeira aos países pobres à introdução de leis que instituam o
“matrimónio” entre pessoas do mesmo sexo».[278]
252. As famílias monoparentais
têm frequentemente origem a partir de «mães ou pais biológicos que nunca
quiseram integrar-se na vida familiar, situações de violência em que um dos
progenitores teve de fugir com seus filhos, morte de um dos pais, abandono da
família por um dos progenitores e outras situações. Seja qual for a causa, o
progenitor que vive com a criança deve encontrar apoio e conforto nas outras
famílias que formam a comunidade cristã, bem como nos organismos pastorais
paroquiais. Além disso, estas famílias são muitas vezes afligidas pela
gravidade dos problemas económicos, pela incerteza dum trabalho precário, pela
dificuldade de manter os filhos, pela falta duma casa».[279]
Quando a morte crava o seu
aguilhão
253. Às vezes, a vida familiar
vê-se desafiada pela morte de um ente querido. Não podemos deixar de oferecer a
luz da fé para acompanhar as famílias que sofrem em tais momentos.[280] Abandonar uma família atribulada
por uma morte seria uma falta de misericórdia, seria perder uma oportunidade
pastoral, e tal atitude pode fechar-nos as portas para qualquer eventual acção
evangelizadora.
254. Compreendo a angústia de
quem perdeu uma pessoa muito amada, um cônjuge com quem se partilhou tantas
coisas. O próprio Jesus Se comoveu e chorou no velório dum amigo (cf. Jo 11,
33.35). E como não compreender o lamento de quem perdeu um filho? Com efeito,
«é como se o tempo parasse: abre-se um abismo que engole o passado e também o
futuro. (...) E às vezes chega-se até a dar a culpa a Deus! Quantas pessoas –
compreendo-as – se chateiam com Deus».[281] «A viuvez é uma experiência
particularmente difícil (...). Alguns, quando têm de viver esta experiência,
mostram que sabem fazer convergir as suas energias para uma dedicação ainda
maior aos filhos e netos, encontrando nesta experiência de amor uma nova missão
educativa. (...) Aqueles que já não podem contar com a presença de familiares a
quem se dedicar e de quem receber carinho e proximidade, a comunidade cristã
deve sustentá-los com particular atenção e disponibilidade, sobretudo se vivem
em condições de indigência».[282]
255. Em geral, o luto pelos
falecidos pode durar bastante tempo e, quando um pastor quer acompanhar este
percurso, deve adaptar-se às necessidades de cada uma das suas fases. Todo o
percurso é atravessado por interrogativos sobre as causas da morte, o que
poderia ter sido feito, o que uma pessoa vive nos momentos anteriores à morte...
Com um caminho sincero e paciente de oração e libertação interior, volta a paz.
No luto, há momentos em que é preciso ajudar a descobrir que, embora tenhamos
perdido um ente querido, existe ainda uma missão a cumprir e não nos faz bem
querer prolongar a tristeza, como se isto fosse uma homenagem. A pessoa amada
não precisa da nossa tristeza, nem retém lisonjeiro que arruinemos a nossa
vida. E também não é a melhor expressão de amor lembrá-la e nomeá-la a cada
momento, porque significa estar preso a um passado que já não existe, em vez de
amar a pessoa real que agora se encontra no Além. A sua presença física já não
é possível; é verdade que a morte é algo de poderoso, mas «forte como a morte é
o amor» (Ct 8, 6). O amor possui uma intuição que lhe permite
escutar sem sons e ver no invisível. Isto não é imaginar o ente querido como
era, mas poder aceitá-lo transformado, como é agora. Jesus ressuscitado, quando
a sua amiga Maria Madalena quis abraçá-Lo intensamente, pediu-lhe que não O
tocasse (cf. Jo 20, 17) para a levar a um encontro diferente.
256. Consola-nos saber que não
se verifica a destruição total dos que morrem, e a fé assegura-nos que o
Ressuscitado nunca nos abandonará. Podemos, assim, impedir que a morte
«envenene a nossa vida, torne vãos os nossos afectos e nos faça cair no vazio
mais escuro».[283] A Bíblia fala de um Deus que nos
criou por amor, e fez-nos duma maneira tal que a nossa vida não termina com a
morte (cf. Sab 3, 2-3). São Paulo fala-nos dum encontro com
Cristo imediatamente depois da morte: «tenho o desejo de partir e estar com
Cristo» (Flp 1, 23). Com Ele, espera-nos depois da morte aquilo que
Deus preparou para aqueles que O amam (cf. 1Cor 2, 9). De
forma muito bela, assim se exprime o prefácio da Missa dos Defuntos: «Se a
certeza da morte nos entristece, conforta-nos a promessa da imortalidade. Para
os que crêem em Vós, Senhor, a vida não acaba, apenas se transforma». Com
efeito, «os nossos entes queridos não desapareceram nas trevas do nada: a
esperança assegura-nos que eles estão nas mãos bondosas e vigorosas de Deus».[284]
257. Uma maneira de
comunicarmos com os seres queridos que morreram é rezar por eles.[285] Diz a Bíblia que «rezar pelos
mortos» é «santo e piedoso» (2Mac 12, 44.45). Rezar por eles «pode
não só ajudá-los, mas também tornar mais eficaz a sua intercessão em nosso
favor».[286] O Apocalipse apresenta os mártires
a interceder pelos que sofrem injustiça na terra (cf. 6, 9-11), solidários com
este mundo em caminho. Alguns Santos, antes de morrer, consolavam os seus entes
queridos, prometendo-lhes que estariam perto ajudando-os. Santa Teresa de
Lisieux sentia vontade de continuar, do Céu, a fazer bem.[287] E São Domingos afirmava que «seria
mais útil, depois de morto (...), mais poderoso para obter graças».[288] São laços de amor,[289] porque «de modo nenhum se
interrompe a união dos que ainda caminham sobre a terra com os irmãos que
adormeceram na paz de Cristo; mas (...) é reforçada pela comunicação dos bens
espirituais».[290]
258. Se aceitarmos a morte, podemos preparar-nos para
ela. O caminho é crescer no amor para com aqueles que caminham connosco, até ao
dia em que «não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor» (Ap 21,
4). Deste modo preparar-nos-emos também pera reencontrar os nossos entes
queridos que morreram. Assim como Jesus entregou o filho que tinha morrido à
sua mãe (cf. Lc 7, 15), de forma semelhante procederá
connosco. Não gastemos energias, detendo-nos anos e anos no passado. Quanto
melhor vivermos nesta terra, tanto maior felicidade poderemos partilhar com os
nossos entes queridos no céu. Quanto mais conseguirmos amadurecer e crescer,
tanto mais poderemos levar-lhes coisas belas para o banquete celeste.
Fonte: https://www.vaticannews.va/