Presbíteros |
Pe. Francisco Faus
Introdução
Antes
de entrar no tema, parece conveniente ter em conta três considerações prévias:
A) Em
primeiro lugar, é patente a importância que o Magistério (Papa, Congregação do
Clero) vem dando ultimamente ao tema da direção espiritual pessoal. Ao longo de vários decênios, como sabemos, esta tem sido uma
prática um tanto descuidada: não raramente, p.e., em alguns seminários, a
direção espiritual tem-se limitado quase que exclusivamente à orientação coletiva, por meio de palestras, meditações e
retiros, etc., coisa importante, mas insuficiente. Vê-se claramente que
está havendo agora um desejo de que seja resgatada a prática da direção espiritual no
sentido clássico de orientação individual,
pessoal. Assim, por exemplo:
a) A
Ex. Ap. Pastores dabo vobis (25/3/1992),
ao tratar da pastoral vocacional, enuncia um programa que é válido para todos:
«É preciso redescobrir a grande tradição do acompanhamento espiritual pessoal,
que sempre deu tantos e tão preciosos frutos na vida da Igreja» (n. 40).
b)
Posteriormente, o Diretório para o ministério e a
vida do presbítero, da Congregação para o Clero (31/1/1994), afirma:
«Paralelamente ao Sacramento da Reconciliação, o presbítero não deixará de
exercer o ministério da direção
espiritual. A descoberta e a difusão desta prática em momentos diversos da
administração da Penitência é um grande benefício para a Igreja no tempo
presente» (n. 54) [1].
B) Em
segundo lugar, como acabamos de ver, o Diretório recomenda
o atendimento da direção espiritual em momentos diversos da confissão (com mais
calma, com mais tempo). Isso é sempre possível, em maior ou menor medida, a
todos os sacerdotes. No entanto, àqueles sacerdotes que julguem sinceramente
não ter tempo para tanto, vale a pena recordar que toda confissão, administrada
com espírito de fé e de caridade, pode e deve ser também direção espiritual. Lembremos o Santo Cura
d’Ars – referencial para nós neste Ano Sacerdotal -, que, mesmo quando só podia
dar conselhos brevíssimos na confissão, rasgava horizontes às almas, elevava,
orientava, despertava, suscitava em muitos a inquietação vocacional, etc. Seus
conselhos eram como dardos de fogo dirigidos ao ponto certo de cada alma, e
mudavam vidas, com a graça de Deus.
C) Em
terceiro lugar, um esclarecimento: esta conferência estará centrada,
fundamentalmente, no tema da Direção
espiritual em si, de modo que não trataremos da confissão, objeto de
várias intervenções neste Curso [2].
A
exposição estará subdividida em três partes:
1)
Qual a finalidade da direção espiritual?
2)
Quais as condições pessoais do diretor espiritual?
3)
Como exercer a prática da direção espiritual?
I.
Qual a finalidade da direção espiritual?
A
finalidade da direção espiritual só pode ser bem compreendida à luz de alguns
conceitos básicos da antropologia cristã e
da teologia espiritual, que
convém ter sempre presentes.
A) A antropologia sobrenatural
cristã evidencia que o cristão não pode ser compreendido nem
ajudado apenas por meio das ciências humanas (psicologia, pedagogia,
sociologia, etc.), uma vez que é, ontologicamente (não
só moralmente), uma criatura nova (2
Cor 5,17), um homem novo (Ef
4,24), em quem foi restaurada, pelo batismo, a semelhança com Deus (Catecismo da Igreja Católica [CEC],
n. 734, 1701, etc.), pois foi feito, pela graça do Espírito Santo, participante da natureza divina (2 Ped 1,4 e
CEC, n. 460).
É
muito esclarecedor o processo que se observa – não de modo linear, mas quase
que “em espiral ascendente” (como diria Romano Guardini) -, no Evangelho de São
João, para ilustrar a vida nova do
homem novo:
a) Já
no prólogo, São João afirma que, aos que crêem em Cristo, Ele deu-lhes o poder de se tornarem [portanto,
trata-se de uma transformação] filhos
de Deus, os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da
vontade do homem, mas sim de Deus (Jo 1, 12-13). É uma
“nova criação”;
b) No
cap. 3, na conversa com Nicodemos, Jesus declara: Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino
de Deus (Jo 3,5). É uma referência evidente à necessidade do novo
nascimento para a vida nova que se opera pelo Batismo;
c) No
cap. 3, ao conversar com a Samaritana, Cristo dá mais um passo e ilustra
essa vida nova com
a imagem da água que não pára de jorrar e subir: O que beber da água que eu lhe der, virá a ser nele fonte de água,
que jorrará até a vida eterna (Jo 4,14). É uma referência
ao dinamismo da vida sobrenatural do cristão, chamada a crescer sem cessar, até
desabrochar plenamente na vida eterna (cf. 1 Jo 3,2);
d)
Finalmente, na festa dos Tabernáculos, o Evangelho de João explicita claramente
que essa “água” é a graça do Espírito Santo. Jesus, de pé, clamou: Quem crê em mim, como diz a Escritura, “do seu interior manarão
rios de água viva”. Dizia isso referindo-se ao Espírito Santo que haviam de
receber os que cressem nele (Jo 7,38-39). Cf.
também, por exemplo, Rm 5,5, Rm 6,4, etc, etc.
Essa nova vida brota, por assim dizer, da chaga do
peito de Cristo crucificado (Jo 19,34), uma vez consumado o Sacrifício
redentor, que tem como “fruto” o envio do Espírito Santo (emisit Spiritum: Mt 27,50), do
“santificador” (Rm 1,4), daquele que – conforme gosta de frisar a tradição
teológica oriental – nos “deifica”, nos “diviniza”, nos “cristifica” (cf. Rm
8,29; Gál 2,20). [3]
B) Por
seu lado, a teologia espiritual, com
base nos dados da antropologia cristã, entendida à luz da Revelação, explica
que o Espírito Santo, ao criar em nós uma “vida nova”, impanta na nossa alma um
“novo organismo”, o que a teologia ascética e mística clássica (p.e.
Garrigou-Lagrange, Royo Marin), e também o Catecismo da Igreja (n. 1266), chamam “o
organismo da vida sobrenatural do cristão”: a graça santificante é infundida na essência
da alma, e as virtudes e dons do Espírito Santo, nas potências da alma
(inteligência, vontade…).
a)
O Catecismo da Igreja Católica, no
n. 1266, explica assim esse “organismo”:
«A
Santíssima Trindade dá ao batizado a graça
santificante, a graça da justificação, a
qual
–
torna-o capaz de crer em Deus, de esperar nele e de amá-lo por meio das virtudes teologais;
–
concede-lhe o poder de viver e agir sob a moção do Espírito Santo, por seus dons;
–
permite-lhe crescer no bem pelas virtudes
morais.
Assim,
todo o organismo da vida sobrenatural do cristão tem a sua raiz no santo Batismo».
Isso
significa que a direção espiritual deve consistir, principalmente, em orientar
e ajudar o dirigido a alimentar e aumentar a vida da graça, a cultivar as virtudes (teologais e morais ou humanas), e
a buscar uma purificação e união com Deus cada vez maiores, de modo a se tornar
capaz de secundar com delicadeza as moções do Espírito Santo, que não cessa de
impelir para uma vida santa por meio dos seus dons.
b) Ao
mesmo tempo, a teologia espiritual ensina
que as fontes da graça,
comunicada pelo Espírito Santo, resumem-se fundamentalmente em três:
1)
Os sacramentos (particularmente,
na prática da direção espiritual, os da Reconciliação e da Eucaristia);
2)
A oração (pela
sua eficácia impetratória e transformadora);
3)
O mérito sobrenatural, ou
seja, o amor sobrenatural
com que se praticam os atos das virtudes e dos deveres (Cf. CCE nn. 2010 e 2011). Esses atos das virtudes e dos
deveres abrangem, permeiam, todos e cada um dos aspectos da vida, desde os mais
importantes até os mínimos.
Portanto:
a direção espiritual deverá cuidar de que o dirigido:
–
incremente e melhore a participação no Sacramento da Reconciliação, na Santa
Missa, nas devoções eucarísticas;
–
amadureça na vida de oração (oração vocal, mental, contemplativa, lectio divina, devoções sólidas);
–
aprenda a viver as virtudes teologais e morais no seu próprio estado de vida,
no dia a dia, e a santificar os seus deveres (familiares, profissionais, sociais
etc.).
c)
Finalmente, a teologia espiritual nos
lembra que a meta da direção espiritual é, na realidade, a própria meta da vida
cristã: a santidade.
Na
Carta Apostólica Novo millennio ineunte,
João Paulo II quis lembrar, com forte insistência, um ensinamento central do
Concílio Vaticano II, ensinamento que Paulo VI considerava o “ponto central”
desse Concílio: a chamada universal à santidade: «Os cristãos de qualquer
estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da
caridade» (Lumen gentium, n.
40).
Com
base nessa proclamação do Concílio, João Paulo II , ao propor o “programa pastoral” da Igreja para o novo
milênio quis destacar, com uma ênfase toda especial, essa “chamada universal à
santidade”, salientando dois “princípios” que
jamais se podem perder de vista, quer na luta pessoal, quer na direção de
almas:
1) «O
horizonte para o qual deve tender todo o caminho pastoral é a santidade» (Novo
millennio ineunte, n. 30) [4];
2)
«Não se trata de inventar um “programa novo”. O programa já existe: é o mesmo de sempre,
expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se, em última análise,
no próprio Cristo, que temos de
conhecer, amar e imitar » (Ibid., n. 29).
Notas:
[1] Cf. também: Congregação para o Clero, O Presbítero, mestre da Palavra, ministro dos Sacramentos e guia da comunidade, em vista do terceiro milênio (19/3/1999), cap. IV, par. 3; Instrução da Congregação para o Clero, O presbítero, pastor e guia da comunidade paroquial (14/8/2002), n. 27, etc.[2] As funções do diretor espiritual como pastor, médico, pai, mestre e juiz irão sendo focalizadas, em particular, de modo sintético, na última parte da exposição.
[3] «O Espírito Santo – explica São Josemaria Escrivá – é o Espírito enviado por Cristo para realizar em nós a santificação que Ele [Cristo] nos mereceu na terra» (É Cristo que passa, n. 130). E S. Cirilo de Alexandria diz: «O Espírito Santo não é um artista que desenhe em nós a divina substância como se fosse alheio a ela; não é assim que nos conduz à semelhança divina. Sendo Deus e procedendo de Deus, Ele mesmo se imprime nos corações que o recebem, como o selo sobre a cera e, dessa forma, pela comunicação de si mesmo e pela semelhança, restabelece a natureza consoante a beleza do modelo divino e restitui ao homem a imagem de Deus» (Tesouro da santa e consubstancial Trindade, 34).
[4] A Instrução da Congregação para o Clero O presbítero, pastor e guia da comunidade paroquial (14/8/2002), frisa insistentemente, na esteira da Carta Novo millennio ineunte, que a primeira prioridade pastoral é a santidade, sendo este «o principal desafio pastoral no contexto do tempo presente», de modo que se torna preciso ensinar e lembrar incansavelmente a todos que «a santidade constitui a meta da existência de cada cristão […]. A pedagogia da santidade é um desafio, tão exigente como atraente, para todos os que na Igreja detêm responsabilidade de guia e formação» (n. 28).