Jean-Marc Sauvé entrega o relatório da CIASE ao presidente dos bispos franceses, dom Éric de Moulins-Beaufort (AFP) |
Tristeza pelas feridas sofridas, mas também gratidão pela
coragem da denúncia. É o que Francisco expressa à luz dos dados coletados em
dois anos e meio de investigação e apresentados esta terça-feira (05/10) em
Paris pela Comissão independente sobre os abusos sexuais em menores na Igreja
francesa: 216 mil vítimas de padres e religiosos católicos desde 1950. O núncio
apostólico, dom Celestino Migliore, também participou da coletiva de imprensa.
Cyprien Viet/Raimundo de Lima
- Vatican News
As vítimas e a Igreja na
França estão hoje no coração do Papa, repleto de tristeza por causa de uma
"terrível realidade". Ao término da apresentação do Relatório em
Paris, fruto de mais de dois anos de trabalho, o diretor da Sala de Imprensa da
Santa Sé, Matteo Bruni, comunicou que Francisco, que dias atrás se encontrou
com os bispos da França em visita ad limina, havia sido informado do fato.
"Seu pensamento dirige-se
primeiramente para as vítimas, com grande tristeza, por suas feridas, e gratidão,
por sua coragem em denunciar, e para a Igreja na França, para que, consciente
desta terrível realidade, unida ao sofrimento do Senhor por seus filhos mais
vulneráveis, possa empreender um caminho de redenção."
As vítimas estão novamente no
centro da oração do Papa. Em sua oração, Francisco confiou ao Senhor o
"povo de Deus na França", particularmente as vítimas, "a fim de
que lhes conceda conforto e consolo e para que através da justiça se possa
alcançar o milagre da cura".
As palavras e a oração vêm assim
no final de uma manhã delicada e difícil. Conforme anunciado à imprensa, o
Relatório em sua totalidade é extenso e detalhado. O trabalho dos 21 membros da
Comissão independente designada pelos bispos e religiosos da França foi árduo e
intenso. Na abertura da coletiva de imprensa, o presidente da comissão,
Jean-Marc Sauvé, citou uma carta de uma vítima para dizer que o que surgiu em
quase dois anos e meio pode às vezes ser "desestabilizador e
desencorajador", mas dá esperança "de um novo início", de
"outra relação" com esta história de dor. Uma "clima
humano", sublinhou um membro da Comissão, caracterizou a escuta das
vítimas - um aspecto central na elaboração do relatório - lembrando em
particular as "lágrimas de uma mulher de 70 anos" e a "raiva de
uma mulher". Escuta, portanto, antes de ser uma investigação de
especialistas.
François Devaux, vítima do
padre Preynat na Arquidiocese de Lyon e cofundador da associação La Parole
Libérée, falou em nome das vítimas de abusos. Seu discurso foi cheio de sofrimento
e raiva, mas também de gratidão pelo trabalho da Comissão, que ele descreveu
como um "sacrifício pelo bem comum". "É do inferno que vocês, os
membros da Comissão, voltaram", disse ele, pedindo à Igreja reformas
profundas, expressando seu sentimento de traição pelos silêncios e pelas
"disfunções sistêmicas" que enfrentou em sua dolorosa luta.
Os números
assustadores
O Relatório, baseado em
testemunhos, pesquisas e dados de arquivo, é muito detalhado - como explicou o
presidente Sauvè - mas não pretende ser exaustivo. Conforme anunciado à
imprensa nos últimos dias, a Comissão estimou em 2.900 a 3.200 o número de
padres e religiosos envolvidos em crimes de pedofilia na França entre 1950 e
2020. Mas a avaliação é parcial. Uma pesquisa nacional dá conta de que um total
de 216 mil pessoas na França hoje (com uma margem de erro de 50 mil) foram
abusadas por padres e religiosos católicos. Se forem incluídas as agressões
cometidas por leigos (sobretudo nas escolas), esta estimativa sobe para 330 mil
pessoas.
Jean-Marc Sauvé explicou que,
na sociedade francesa como um todo, cinco milhões e meio de pessoas (14,5% das
mulheres e 6,4% dos homens) haviam sofrido violência sexual antes dos 18 anos
de idade. As famílias e amigos ainda são os principais contextos, mas a prevalência
de agressões na Igreja católica continua alta, mesmo em tempos recentes, e 80%
desses abusos envolvem meninos.
O apelo por uma
"ação vigorosa"
Denunciando a mentalidade
corporativista da Igreja católica, que há muito procurava encobrir esses casos
(em particular fazendo do silêncio das vítimas uma condição para a
indenização), Jean-Marc Sauvé apelou, portanto, para uma "ação
vigorosa", incluindo o reconhecimento de atos passados, e medidas
preventivas na formação e no discernimento vocacional. O relatório também fez
45 recomendações específicas, incluindo um fortalecimento dos mecanismos de
controle interno, uma melhor definição do papel do bispo para evitar que ele
seja tanto juiz quanto parte em causa, e um melhor envolvimento dos leigos no governo
da Igreja.
Chamando a um "trabalho
de verdade, perdão e reconciliação", o presidente Sauvé também enfatizou
que a Igreja católica é "um componente essencial da sociedade" e deve
trabalhar para "restabelecer uma aliança que foi danificada".
"Nossa esperança não pode e não será destruída. A Igreja pode e deve fazer
tudo para restaurar o que foi danificado e reconstruir o que foi rompido",
concluiu, destacando a coragem das vítimas.
A reação da
Igreja
Dor e vergonha na reação da
Igreja: os bispos e religiosos que encomendaram o Relatório estiveram presentes
na coletiva de imprensa. Em seu discurso, o arcebispo de Reims e presidente da
Conferência Episcopal (CEF), dom Éric de Moulins-Beaufort, reconheceu a
extensão "assustadora" da violência na Igreja. A voz das vítimas
"nos choca, nos impressiona", reconheceu ele, elogiando em particular
a franqueza e as "verdadeiras palavras" de François Devaux. O
presidente da CEF prometeu que os bispos dedicariam o tempo necessário para
estudar o relatório e tirar conclusões a partir dele, em particular durante sua
assembleia plenária em novembro.
Por sua vez, a presidente da Conferência das Religiosas
da França (CORREF), Irmã Véronique Margron, expressou sua "tristeza
infinita" e "vergonha absoluta" perante os "crimes contra a
humanidade do sujeito íntimo, crente e amoroso". As 45 recomendações são
um "sinal de exigente confiança na Igreja", que terá de trabalhar com
as outras instituições.
Fonte: https://www.vaticannews.va/