Presbíteros |
III. Como exercer a prática da direção espiritual?
Podemos refletir sobre este ponto lembrando o esquema clássico das funções do confessor, que também se aplicam ao diretor espiritual: pastor, pai, médico, mestre e juiz (prescindiremos agora da função de juiz, que é mais específica da administração do Sacramento da Penitência: Cf. Jo 20,22-23).
Pastor
A parábola do Bom Pastor (Jo 10,1 ss.), ensina-nos que este conhece as suas ovelhas e as chama pelo nome. Isso significa que cada alma, cada uma, é única aos olhos de Deus, e é um “universo“. Por isso, não há receitas genéricas e estereotipadas, válidas para todos, mas é preciso, tanto quanto possível, um esmerado atendimento pessoal. Já víamos, no início da conferência, que não basta a direção espiritual “coletiva”, por importante que seja (palestras, meditações pregadas, etc.).
Essa forma de proceder é um dos modos de dar a vida pelas ovelhas, porque assim, dispondo-se a um atendimento pessoal, o padre disponibiliza, em favor dos fiéis, o seu tempo, o seu lazer, os seus interesses particulares. Entrega-se. Concretamente, é preciso um empenho sacrificado do sacerdote para organizar os seus horários, de modo a reservar o tempo necessário ao atendimento personalizado (além de ser também generoso, sempre que possível, com os fiéis que o procuram fora de horas).
Cristo, o Bom Pastor, disse que veio para que tenham vida e a tenham em abundância. A direção espiritual, portanto:
a) deve alimentar abundantemente a “vida” espiritual do dirigido, facilitando-lhe as orientações concretas para que essa vida se renove e cresça. O dirigido deveria tirar de cada conversa com o diretor espiritual alguma coisa viva, “prática”, que possa encarnar no dia a dia;
b) a direção irá bem quando o interessado, em cada conversa, começar lembrando os propósitos que foram concretizados na conversa anterior;
c) neste sentido, o diretor espiritual deverá pedir luzes ao Espírito Santo para acompanhar o crescimento das almas pelo plano inclinado adequado a cada uma delas. Para cada alma, deverá achar o ritmo, às vezes rápido, às vezes lento ou até muito lento (trabalho de anos e anos), que a faça crescer, sem desanimar nem desistir quando percebe que demoram a perceber-se os frutos da direção.
É importante que o diretor saiba convencer com alegria a pessoa dirigida, de modo que ela própria, livremente, deseje e queira fazer o que o diretor sugere (porque o diretor só sugere, não manda). Agindo assim, chegará um momento em que a alma que dirige já não se limitará a esperar passivamente os conselhos, mas se adiantará sugerindo “iniciativas”, consultando possíveis lutas, metas novas que sente que Deus lhe pede: sinal de que está tendo vida interior e tornando-se sensível às moções do Espírito Santo.
Convém recordar também que as almas, normalmente, não crescem tanto por “acúmulo” (mais práticas, mais devoções, mais mortificações…), como por “intensidade“. Certamente, ao longo do tempo, muitas vezes será preciso “aumentar” as práticas e os horários dedicados à vida espiritual e ao apostolado, mas quase sempre o conselho mais eficaz consistirá em sugerir um modo bem concreto e prático de melhorar a qualidade e a intensidade de algum ponto de luta (aprofundar numa prática de piedade, pôr mais ordem no plano espiritual, melhorar o modo de orar, crescer na caridade com determinadas pessoas, santificar detalhes do trabalho diário, lutar contra defeitos do caráter, etc).
Como é lógico, convém examinar e comentar com frequência, na direção, como vão as grandes colunas que sustentam edifício espiritual: sacramentos, vida de oração, “lectio divina”, virtudes fundamentais…
Finalmente, a experiência indica que, para garantir a eficácia da direção, convém que o sacerdote, ao conversar com o irigido, se centre nos temas próprios, específicos, da direção espiritual. Poderia atrapalhar a eficácia da direção meter-se imprudentemente em problemas não espirituais nem morais da pessoa, como assuntos financeiros relativos à sua empresa, escola ou loja, aconselhamento sobre organização econômica familiar (investir nisso, aplicar naquilo, etc.), aconselhamento de medicinas alternativas, etc.
Pai
Como um bom pai [10], que quer o verdadeiro “bem” dos filhos, o diretor espiritual deve saber compaginar a compreensão com a exigência.
Um sacerdote bondoso, “paizão“, pode ser muito querido, mas quase com certeza vai “mal-criar” as almas, vai deixá-las enfraquecidas, com vida interior muito frágil. A típica “mãe condescendente” acaba sendo “cúmplice” dos erros e do fracasso moral do filho. Neste sentido, João Paulo II dizia que, hoje, os que se contentassem com uma «oração superficial» seriam «não apenas cristãos medíocres, mas cristãos em perigo» (Novo millennio ineunte, n. 34).
A experiência evidencia que o diretor que se limita a “consolar” e animar sentimentalmente as pessoas aflitas, sem elevá-las para Deus, com visão de fé, com energia e caridade, não só não ajuda, como faz mal. Quando se trata de mulheres, mais vulneráveis ao sentimentalismo, é preciso convencer-se de que as “lágrimas” não se resolvem com consolos afetuosos (que podem até tornar-se para o sacerdote uma armadilha do diabo), mas com a fé e a caridade de Cristo: ajudando a pessoa a orar mais e melhor, a meditar sobre o amor de Jesus crucificado, a se colocar junto da Mãe dolorosa, e – coisa muito importante nestes casos – a pensar menos em si e mais nos demais (este último ponto é essencial para sofredores e desanimados).
Lembremos que o pai do filho pródigo não se limita a ser compreensivo, acolhedor e carinhoso. Não é um pai que se limita a abraçar e chorar, e logo se despede do filho, dizendo-lhe: – «Meu filho, vá em paz (para onde?), mas não demore muito a voltar; não deixe de me visitar de vez em quando». Pelo contrário, o pai do pródigo aperta o filho no peito e o leva para dentro da casa paterna, a fim de que lá se instale permanentemente; dá-lhe a melhor veste (símbolo da graça), um anel no dedo (símbolo da dignidade filial recuperada), e prepara um banquete, façamos uma festa (símbolo do amor, da união com Deus): cf. Lc 15,20-24).
Além disso, para ser bom pai, o diretor precisa de ter a paciência e a misericórdia do pai do filho pródigo. Que as almas nunca vejam o sacerdote magoado, decepcionado, desesperançado, cansado delas. O pai do pródigo não se cansou de esperar.
Lembremo-nos ainda que a Carta aos Hebreus diz que o bom pai, à imitação de Deus, corrige o filho, para seu bem: Se permanecêsseis sem a correção, seríeis bastardos e não filhos legítimos (Heb 12,8). A correção, feita com caridade e clareza, dói, mas acaba produzindo frutos de aperfeiçoamento, que o filho agradecerá.
Médico
Não são as pessoas com saúde que precisam de médico, mas as doentes (Mc 2,17). Todos somos “enfermos”. Mas a direção espiritual não pode limitar-se a ser um pronto-socorro, uma ajuda emergencial para problemas pontuais (crise conjugal, perda de um ser querido, filho drogado, desemprego, ruína econômica). A verdadeira direção – já o vimos – é uma orientação habitual, para o dia-a-dia, rumo à santidade.
É natural que muitas vezes os fiéis recorram a nós como “pronto-socorro” espiritual. Logicamente, atenderemos essas consultas e desabafos com dedicação e carinho, como um bom médico, mas mesmo os “acidentados” devem ser ajudados a enxergar mais longe, a compreender o que Deus lhes pede naquelas circunstâncias, a entender com fé a cruz e a abraçá-la.
Um bom médico nota-se pela capacidade de fazer, quanto antes, um diagnóstico, por ter “olho clínico“. O sacerdote, especialmente em relação às pessoas que começam a amadurecer espiritualmente ou a assumir colaboração nas tarefas pastorais, deve ter olho clínico para detectar algumas “doenças” que influem em todo o “organismo”, como uma anemia profunda ou uma infecção generalizada. Dentre as principais:
a) a doença do sentimentalismo: ter uma religiosidade meramente emocional, que não sabe apoiar-se na cruz, na abnegação, na doação generosa, numa “vida em ordem”, com horários que garantam a fidelidade aos propósitos de orar, meditar, ler, conversar com a família, etc, tanto se a pessoa “sente” vontade e disposição de fazê-lo, como se não “sente”.
O que importa é viver de fé, de convicções. É a fé que arrasta o amor. Amor sem raízes de fé, é folha seca ao vento. Na Encíclica Caritas in veritate, Bento XVI escreve: «Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo. O amor torna-se um invólucro vazio, que se pode encher arbitrariamente. É o risco fatal do amor numa cultura sem verdade; acaba prisioneiro das emoções e opiniões contingentes dos indivíduos» (n. 3).
b) a doença do pietismo: muito relacionada com a anterior, que consiste em reduzir o progresso espiritual à simples melhora e incremento de atos de piedade e devoção, sem cuidar de ganhar formação doutrinal nem de se esforçar por adquirir virtudes. Surge, então, a figura do beato: está metido(a) em mil coisas da igreja, mas que dá mau exemplo, por falta de critério e de virtudes; e assim se desprestigia, pois aparece antes todos como pessoa preguiçosa, maldizente, profissionalmente medíocre, cheia de amor-próprio, vaidade, mexerico, maledicência, inconstância, etc;
c) a doença do voluntarismo: é a dos fiéis que, de modo explícito ou implícito, pensam que, afinal, tudo depende de sua força de vontade. Esquecem-se de que Jesus afirmou: Sem mim, nada podeis fazer (Jo 15, 5). Por causa desse engano, essas pessoas lutam e trabalham sem pedir a ajuda a Deus, sem rezar com constância, sem viver cada vez mais intensamente os sacramentos da Reconciliação e a Eucaristia, sem oferecer mortificações pela sua melhora espiritual e pelo apostolado. Não devemos esquecer o «primado da graça», que tanto frisou João Paulo II na Novo millennio ineunte (n. 38).
Há ainda situações especiais, que exigem o que poderíamos chamar de medicina especializada: p.e., atendimento de casais em situação irregular (cf. Familiaris consortio, n. 84 e Catecismo da Igreja católica, n. 1651); ou atendimento de viciados em drogas, em pornografia da Internet e da tv, ou obsessivos-compulsivos com desvios sexuais, etc. Não é possível aqui descer a essa casuística, mas o diretor espiritual deve estar preparado, e, concretamente, ter informações seguras sobre alguns médicos e psiquiatras ou psicólogos católicos de absoluta confiança, para os quais possa encaminhar essas almas.
Finalmente, um bom médico deve saber agir com pulso quando se torna necessário intervir prontamente com uma cirurgia (Cf. Mt 5,29-30). Por exemplo, de cortar uma ocasião próxima de pecado grave ou de escândalo. Não fazê-lo, equivaleria a deixar que um câncer progredisse ou que um membro fosse sendo tomado pela gangrena: deve agir, porém, com uma clareza e uma energia que estejam impregnadas de caridade, de apoio fraterno, e que não humilhem.
Mestre
O diretor espiritual deve ser mestre de almas. Deve, portanto, “ensinar” a adquirir doutrina sólida e a vivê-la na prática, a formar a consciência, a aprender a orar. Para isso, é necessário que o diretor de almas se prepare e se esforce por ser:
A) Mestre de doutrina, em primeiro lugar.
a) É evidente que hoje, entre os católicos, há um enorme -por vezes, completo – déficit de doutrina: de fé fundamentada em idéias claras e convicções sólidas [11]. Essa carência de doutrina torna a espiritualidade tão frágil como um castelo de papelão. Qualquer vento, na hora da dificuldade ou do cansaço, o derruba (Cf. Mt 7,24 ss);
b) Hoje é frequente, mesmo em católicos convictos, piedosos e apostólicos, uma falta, por vezes espantosa, de conceitos claros acerca das verdades em que acreditam (Trindade, Cristo Deus-Homem, Santa Missa, Igreja, Confissão, pecado, etc.). Falta-lhes uma visão de conjunto, coerente, das verdades da fé, de verdades conhecidas claramente e harmonizadas como as peças que compõem um maravilhoso mosaico (essa é a perspectiva que “deveriam” ter, se a catequese e a orientação espiritual tivessem sido sérias). Sua fé, pelo contrário, pode ser comparada a uma sacola em que se foram jogando e misturando em desordem fragmentos quebrados do mosaico da verdade, juntamente com cacos e pedregulho de erros e interpretações confusas ou até “heréticas” acerca de muitos pontos da fé;
c) Daí a responsabilidade do sacerdote por estar muito preparado para dar doutrina: ler com constância, aconselhar-se com colegas experientes sobre os diversos tipos de obras de doutrina (de dogma, moral, ascética e mística, etc.), que, pouco a pouco, poderá ir aconselhando aos seus dirigidos, a começar pelos pequenos catecismos, pelo “Compêndio do Catecismo da Igreja Católica” e pelo próprio “Catecismo da Igreja Católica, edição típica”, valorizando também muito as exposições sistemáticas e pedagógicas da fé e da moral, do tipo da “A fé explicada”, de Leo Trese, etc.
B) Mestre de virtudes e da arte da luta ascética.
a) Cristão sem virtudes morais, sem virtudes humanas, é um ser “invertebrado“. Na época atual, todos percebemos as conseqüências negativas de muitas vidas de “gente boa”, que foi “instruída”, mas não foi “formada” na prática das virtudes: falta de fortaleza, de constância, de paciência, de disciplina, de ordem, de autodomínio (gula, castidade), de delicadeza, de abnegação, de mansidão, de espírito de serviço, de desprendimento, etc. (Cf., por exemplo, Catecismo da Igreja Católica, nn. 1803 e 1804);
b) Não poucos fiéis, e também seminaristas e sacerdotes, acabam sendo, por causa desse déficit, pessoas problemáticas, despreparadas para enfrentar as responsabilidades, as tentações e os embates da vida [12]. Esqueceram, ou nunca aprenderam, que «onde não há mortificação, não há virtude» [13];
c) Talvez hoje, mais do que em outras épocas, seja importante aprofundar – lendo bons livros – na vida e na luta ascética dos santos, bem como nas obras dos autores espirituais clássicos, que são válidas para todas as épocas (Sta. Teresinha, S. Afonso Maria de Ligório, S. Francisco de Sales [Filotéia], Imitação de Cristo, Sta. Teresa de Ávila, S. Josemaria Escrivá, etc, etc.) [14].
C) Mestre de oração.
a) Eis uma tarefa que a Novo millenio ineunte considera prioritária: «Para essa pedagogia de santidade, há a necessidade de um cristianismo que se destaque principalmente pela arte da oração […]. A oração cristã, vivendo-a plenamente – sobretudo na liturgia, meta e fonte da vida eclesial, mas também na experiência pessoal -, é o segredo de um cristianismo verdadeiramente vital» (n. 32);
b) Daí que o sacerdote, começando por aprofundar ele próprio na oração, deve ficar em condições de poder ensinar, de modo prático, a orar: oração vocal, meditação, oração contemplativa, enfim, as diversas formas de oração maravilhosamente explicadas na quarta parte do Catecismo da Igreja Católica;
c) Naturalmente, para isso, é necessário que o diretor espiritual seja homem de oração, homem de adoração, homem de vivência diária da “lectio divina”;
d) Enfim, concluindo, vale a pena citar, a esse respeito, umas palavras da Instrução da Congregação para o Clero, O Presbítero, Pastor e Guia da comunidade paroquial, (14/8,2002), n. 27: «Guiar os fiéis a uma vida interior sólida, sobre o fundamento dos princípios da doutrina cristã, como foram vividos e ensinados pelos santos, é obra pastoral muito mais relevante e fundamental [do que planejar e debater planos, novidades e mudanças superficiais]. Nos planos pastorais é precisamente esse aspecto que deveria ser privilegiado. Hoje, mais do que nunca, é necessário descobrir a oração, a vida sacramental, a meditação, o silêncio adorante, o coração a coração com Nosso Senhor, o exercício cotidiano das virtudes que a Ele configuram; tudo isso é muito mais produtivo do que qualquer discussão e é, de qualquer forma, a condição para a sua eficácia».
Bibliografia
– João Paulo II: Exortação Apostólica Pós-Sinodal Pastores dabo vobis, de 25/3/1992
– João Paulo II: Carta Apostólica Novo millennio ineunte, de 6/1/2001
– Congregação para o Clero: Diretório para o Ministério e a Vida do Presbítero, de 31/1/1994
– Congregação para o Clero: O Presbítero, mestre da Palavra, ministro dos Sacramentos e guia da comunidade em vista do terceiro milênio, de 19/3/1999
– Congregação para o Clero: O Presbítero, Pastor e Guia da Comunidade paroquial, de 14/8/2002
– Bento XVI: Homilias sobre o sacerdócio, nas diversas Missas Crismais
– São Josemaria Escrivá: Amar a Igreja, Ed. Quadrante 2004
[10] De fato, mesmo que tenhais milhares de educadores em Cristo, não tendes muitos pais. Pois fui eu que […] vos gerei no Cristo Jesus (1 Cor 4,15).
[11] «Sempre houve ignorância. Mas hoje em dia a ignorância mais brutal em matérias de fé e de moral disfarça-se, por vezes, com altissonantes nomes aparentemente teológicos. Por isso, o mandato de Cristo aos Apóstolos cobra uma premente atualidade: Ide, e instruí todas as gentes (Mt 8,19)» (São Josemaria Escrivá, Amar a Igreja, Quadrante 2004, p. 69).
[12] Entende-se, por isso, o tom categórico com que a Exortação Apostólica Pastores dabo vobis, no n. 43, afirma referindo-se aos seminaristas: «Sem uma oportuna formação humana, toda a formação sacerdotal ficaria privada do seu necessário fundamento»
[13] São Josemaria Escrivá, Caminho, n. 180
[14] Cf. Congregação para o Clero, O Presbítero, mestre da Palavra,ministro dos Sacramentos e Guia da comunidade, em vista do terceiro milênio, cap. II, n.2