Entrevista com um jornalista especializado em assuntos ligados ao Vaticano e ao leste europeu.
Até que ponto o Papa pode intervir na ofensiva russa contra a Ucrânia? Qual é o poder da influência russa nas ações do Papa e da diplomacia do Vaticano? A agência I.MEDIA entrevistou o jornalista Bernard Lecomte, que já fez várias reportagens no leste europeu.
Ele também é autor de uma biografia de João Paulo II e do livro Le pape qui a vaincu le communisme (“O Papa que conquistou o comunismo”).
O jornalista ressalta que, do ponto de vista de Moscou, o Vaticano não pode ser considerado um órgão neutro, dado o importante lugar da Igreja Católica na Ucrânia.
Diante dessa ofensiva russa na Ucrânia, a Santa Sé se encontrou no mesmo estado de perplexidade que os serviços diplomáticos dos países ocidentais?
Lecomte: Penso que sim. Quando cheguei ao Vaticano, sempre me impressionou o fato de que havia poucas pessoas que conheciam bem a URSS ou que conhecem a Rússia hoje. Este país fascina todos os papas, mas há poucos especialistas dentro do aparato diplomático da Santa Sé. Então eles provavelmente ficaram chocados com o que está acontecendo.
Então a crise ucraniana é difícil de se interpretar a partir de Roma?
Lecomte: O problema é que o cristianismo na Ucrânia apresenta um cenário extremamente complexo, com essencialmente três entidades diferentes, entre a Igreja Ortodoxa autônoma, a Igreja Ortodoxa que permanece sob a jurisdição de Moscou e os católicos. Com a guerra, podemos ver que a Igreja dependente do Patriarcado de Moscou caminha para a secessão, que é uma evolução fundamental.
Mas se a Ucrânia resistiu até este ponto, é principalmente graças aos católicos do Ocidente que sempre se opuseram radicalmente ao comunismo, e que também se opõem ao Patriarcado de Moscou, esta “terceira Roma” da qual se separaram em 1596.
É um cenário muito complexo em que a diplomacia vaticana tem dificuldade em se mover, porque não pode assumir uma posição neutra. O Papa gostaria de estabelecer contatos com Moscou, como prova sua visita à embaixada russa, que foi um gesto espetacular, mas do ponto de vista russo não pode ser visto como imparcial.
Ao falar sobre as relações entre a Santa Sé e os países do antigo bloco soviético, a palavra “Ospolitik ” é frequentemente usada. Como você define esse termo e como essa estratégia se desenrolou?
Lecomte: É um termo alemão que primeiro se refere à política da Alemanha Ocidental em relação aos países comunistas nas décadas de 1960 e 1970, mas também se aplica a João XXIII e Paulo VI quando eles suavizaram a abordagem do Vaticano a Moscou.
Um dos símbolos dessa mudança foi a presença de observadores russos no Concílio Vaticano II. Além disso, no aniversário de 80 anos de João XXIII em 1961, ele recebeu um telegrama de congratulações de Khrushchev e foi visitado pelo genro do líder, Alexei Adjoubei, que era o editor-chefe do Izvestia (um dos principais diários de Moscou). Isso foi absolutamente inédito na época.
Então, sob o pontificado de Paulo VI, o Vaticano avançou para uma “política de pequenos passos”. Tratava-se de enviar prelados para se reunirem oficialmente com as autoridades comunistas locais, a fim de obter alguns compromissos, notadamente para a nomeação de bispos, e para a reabertura de algumas igrejas.
Quanto tempo durou essa estratégia arriscada?
Lecomte : Foi uma discussão com o inimigo, em um contexto extremamente difícil para a Igreja Católica, marcado em particular pelas perseguições sofridas pelos cardeais Mindszenty na Hungria, Slipyj na Ucrânia soviética e Wyszynski na Polônia.
No entanto, a Ostpolitik foi adotada pela diplomacia papal, especialmente na Hungria e na Tchecoslováquia. Mas quando João Paulo II foi eleito, ele pôs fim a essa política dizendo: “Parem! Não fazemos pactos com o inimigo. Isso só pode nos machucar.”
Assim, o arcebispo Casaroli teve que concordar em mudar sua estratégia. João Paulo II explicou que o havia nomeado secretário de Estado para dar um sinal de continuidade, para não entrar em pânico no Oriente, mas na verdade ele estava assumindo uma posição forte na relação com os países comunistas.
Desde a morte de João Paulo II, o declínio da presença eslava no aparato diplomático do Vaticano causou um desinvestimento nesta região do mundo?
Lecomte: Durante o pontificado de João Paulo II, todos os corredores do Vaticano estavam cheios de prelados do Oriente. Foi espetacular. Depois, a partir de Bento XVI, houve um rodízio, o que é normal.
Entendemos, especialmente desde 2013, que Francisco não tem essa sensibilidade europeia que marcou todos os papas anteriores. Ele não está familiarizado com as sutilezas da Ucrânia.
E mesmo que ele pessoalmente queira estar acima da briga, do ponto de vista russo, ele é necessariamente visto como o líder dos ucranianos ocidentais. Sua posição é injogável, porque se ele joga a carta de contatos com o Patriarcado de Moscou, ofende os ortodoxos da Igreja Autocéfala.
Pode-se imaginar qual teria sido a atitude de João Paulo II diante de tal crise?
Lecomte: João Paulo II, que conhecia perfeitamente a Ucrânia, provavelmente teria se dirigido primeiro aos católicos ucranianos para consolá-los e depois, numa segunda fase, teria dirigido uma mensagem de caridade aos ortodoxos.
Ele era um unificador formidável, com sua insistência no tema da “solidariedade”. Mas para entender a situação no leste europeu, é preciso realmente vir dessas terras, ou da encruzilhada desses países, como foi o caso do Cardeal Koenig (arcebispo de Viena, Áustria, de 1956 a 1985)
Quais eram as relações de João Paulo II com Moscou?
Lecomte: Antes da queda do Muro de Berlim, ele era um incansável defensor dos direitos humanos no Leste e da reunificação da Europa, e isso lhe permitiu ter convergências com Mikhail Gorbachev. Em 1º de dezembro de 1989, quando recebeu o líder soviético no Vaticano, foi um acontecimento significativo.
Os dois chefes de Estado concordaram com o conceito de uma “Casa Europeia Comum”. Na época, a ideia de que pontes poderiam ser construídas entre as duas partes da Europa era empolgante.
O líder soviético, visivelmente emocionado, disse espontaneamente a João Paulo II: “Convido-o calorosamente a Moscou”. Ele apresentou o Papa à sua esposa, dizendo: “Raissa, apresento a você um dos homens mais importantes do mundo, e ele é um eslavo, como nós!!” Ele estava tão entusiasmado quanto uma criança!
E João Paulo II sonhava em ir a Moscou, mas foi bloqueado pelo Patriarcado de Moscou, que o odiava e estava em uma linha muito anticatólica. Gorbachev não entendia as regras do jogo do ponto de vista da Igreja Ortodoxa.
Mais recentemente, Vladimir Putin encontrou-se em várias ocasiões com os papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco. Como os líderes russos veem o Vaticano?
Lecomte : Gorbachev e Yeltsin respeitavam a figura do Papa. Vladimir Putin também o considera uma pessoa muito importante.
Durante seus encontros com sucessivos papas, Vladimir Putin alegou ser um defensor dos valores cristãos. Ele está à frente de um país enorme, por isso, em nível político e cultural, tinha interesse em manter boas relações com todas as religiões presentes no seu país, e não apenas com a Ortodoxia e o Islã.
Por meio desses encontros com os papas, não se tratava de “colocar o ocidente para dormir”, ainda que este tenha sido um eixo fundamental de sua diplomacia desde o início de sua presidência. A questão era, antes, cultivar seus vínculos com os católicos, mesmo que sejam poucos na Rússia.
Fonte: https://pt.aleteia.org/