Vatican News |
"Para compreender o papel do sacerdote na
consagração, é de vital importância conhecer a natureza do sacrifício e do
sacerdócio de Cristo, pois é deles que deriva o sacerdócio cristão, seja o
batismal comum a todos, seja o dos ministros ordenados."
Fr. Raniero
Cantalamessa, OFMCap.
“TOMAI, COMEI:
ISTO É O MEU CORPO”
Segunda
Pregação, Quaresma de 2022
O assunto da nossa catequese
mistagógica de hoje é a parte central da Missa, a Oração eucarística, ou
Anáfora, que tem em seu cento a consagração. Sobre ela, façamos dois tipos de
consideração: uma litúrgica e ritual, a outra, teológica e existencial.
Do ponto de vista ritual e
litúrgico, hoje temos um novo recurso que não tinham os Padres da Igreja e os
doutores medievais. O recurso novo de que dispomos hoje é a reaproximação entre
cristãos e judeus. Desde os primeiríssimos dias da Igreja, diversos fatores
históricos levaram a acentuar a diferença entre cristianismo e judaísmo, até a
contrapô-los entre si, como o faz já Inácio de Antioquia [1]. Distinguir-se dos
judeus ‒ sobre a data da Pasqua, os dias de jejum e em várias outras coisas ‒
tonar-se uma espécie de palavra de ordem. Uma acusação frequentemente dirigida
aos próprios adversários e aos hereges é a de “judaizar”.
A tragédia do povo hebreu e o
novo clima de diálogo com o judaísmo, iniciado a partir do Concílio Vaticano
II, tornaram possível um melhor conhecimento da matriz hebraica da Eucaristia.
Como não se entende a Páscoa cristã se não é considerada como o cumprimento
daquilo que a Páscoa hebraica preanunciava, assim não se entende a fundo a
Eucaristia se não é vista como o cumprimento daquilo que os hebreus faziam e
diziam no curso da sua refeição ritual. Um primeiro resultado importante desta
retomada foi que nenhum estudioso sério, hoje, avança mais na hipótese de que a
Eucaristia cristã seja explicada à luz da ceia em voga em alguns cultos
mistéricos do helenismo, como se tentou fazer por mais de um século.
Os Padres da Igreja
consideraram as Escrituras do povo hebreu, mas não a sua liturgia, à qual não
tinham mais acesso, após a separação da Igreja da Sinagoga. por isso, eles
utilizaram as figuras contidas nas Escrituras ‒ o cordeiro pascal, o sacrifício
de Isaac, o de Melquisedec, o maná ‒, mas não o contexto litúrgico concreto em
que o povo hebreu celebrava todas essas recordações, isto é, a refeição ritual
celebrada, uma vez por ano, na ceia pascal (o Seder) e,
semanalmente, no culto sinagogal. O primeiro nome com que a Eucaristia é
designada no Novo Testamento por Paulo é o de “ceia do Senhor” (kuriakon
deipnon) (1Cor 11,20), com referência evidente à ceia hebraica, da qual já
se diferencia pela fé em Jesus. A Eucaristia é o sacramento da continuidade
entre Antigo e Novo Testamento, entre judaísmo e cristianismo.
A Eucaristia e a Beraká
hebraica
É esta a perspectiva em que se
situa Bento XVI, no capítulo dedicado à instituição da Eucaristia em seu
segundo volume sobre Jesus de Nazaré. Seguindo a opinião já predominante entre
os estudiosos, ele aceita a cronologia joanina, segundo a qual a última ceia de
Jesus não foi uma ceia pascal, mas foi uma solene refeição de despedida (a
“última ceia”!) e considera que se possa “traçar o desenvolvimento da eucharistia cristã,
isto é, do cânon, a partir da beraká hebraica” [2].
Por várias razões culturais e
históricas, a partir da Escolástica em diante, buscou-se explicar a Eucaristia
à luz da filosofia, particularmente, das noções aristotélicas de substância e
de acidentes. Isto era também um pôr a serviço da fé os novos conhecimentos do
momento e, portanto, um imitar o método dos Padres. Em nossos dias, devemos
fazer o mesmo com os novos conhecimentos, desta vez, de ordens históricas e
litúrgicas, mais do que filosóficas. Eles têm a vantagem de ser as categorias
com que pensava e falava Jesus, que não eram, certamente, os conceitos
aristotélicos de matéria e forma, substância e acidentes, mas as de sinal e
realidade e de memorial.
Na linha de alguns estudos
recentes, sobretudo o de L. Bouyer, gostaria de mostrar a vívida luz que é
lançada sobre a Eucaristia cristã quando colocamos as narrativas evangélicas da
instituição como pano de fundo do que sabemos da refeição ritual hebraica. A
novidade do gesto de Jesus não parecerá diminuída, mas exaltada ao máximo.
O elo entre o antigo e o novo
rito é dado pela Didaké, um escrito da era apostólica, que podemos
considerar o primeiro esboço de anáfora eucarística. O rito sinagogal era
composto por uma série de orações chamadas de “berakah”, que em grego é
traduzido por “Eucarestia”. No início da refeição, cada um, à sua vez, tomava
em mãos um cálice de vinho e, antes de levá-lo aos lábios, repetia uma bênção
que a liturgia atual nos faz repetir quase literalmente no momento do
ofertório: “Sê bendito, Senhor, nosso Deus, Rei dos séculos, que nos deste este
fruto da videira”.
Mas a refeição começava
oficialmente apenas quando o pai de família, ou o chefe da comunidade, tivesse
partido o pão que devia ser distribuído entre os comensais. E, de fato, Jesus
toma o pão, recita a bênção e o distribui dizendo: “Isto é o meu corpo...” E
aqui, o rito ‒ que era apenas uma preparação ‒ torna-se a realidade.
Depois da bênção do pão, eram
servidos os pratos de costume. Quando a refeição está prestes a terminar, os
comensais estão prontos para o grande ato ritual que conclui a celebração e lhe
dá o significado mais profundo. Todos lavam as mãos, como no início. Feito
isto, tendo diante de si um cálice de vinho misturado com água, quem preside
convida a fazer as três orações de agradecimento: a primeira a Deus criador, a
segunda pela libertação do Egito, a terceira porque a sua obra continua no
presente. Terminada a oração, o cálice passava de mão em mão e cada um bebia.
Este, o rito antigo realizado por Jesus em vida.
Lucas afirma que, após ter
ceado, Jesus tomou o cálice, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu
Sangue, que é derramado por vós”. Algo de decisivo acontece no momento em que
Jesus acrescenta estas palavras à fórmula das orações de agradecimentos, isto
é, à beraká hebraica. Aquele rito era um banquete sagrado, no
qual se celebrava e se agradecia a um Deus salvador, que tinha redimido o seu
povo para estreitar com ele uma aliança de amor, concluída no sangue de um
cordeiro. A refeição diária bendizia Deus por aquela Aliança, mas agora, no
momento e, que Jesus decide dar a vida pelos seus como o verdadeiro cordeiro,
ele declarou concluída aquela velha Aliança que todos juntos estavam celebrando
liturgicamente.
Naquele momento, com poucas e
simples palavras, ele estreita com os seus a nova e eterna Aliança no seu
Sangue. Acrescentando as palavras “fazei isto em memória de mim”, Jesus confere
um alcance duradouro ao seu dom. Do passado, o olhar se projeta ao futuro. Tudo
quanto ele fez até agora na ceia é posto em nossas mãos. Repetindo aquilo que
ele fez, renova-se aquele ato central da história humana, que é a sua morte
pelo mundo. A figura do cordeiro pascal que, na cruz,
torna-se evento, na ceia nos é dado como sacramento,
isto é, como memorial perene do evento.
Sacerdote e vítima
Isto, dizia eu, no que se
refere ao aspecto litúrgico e ritual. Passemos agora à outra consideração,
àquela de tipo pessoal e existencial, em outras palavras, ao papel que
desempenhamos nós, sacerdotes e fiéis, em tal momento da Missa. Para
compreender o papel do sacerdote na consagração, é de vital importância
conhecer a natureza do sacrifício e do sacerdócio de Cristo, pois é deles que
deriva o sacerdócio cristão, seja o batismal comum a todos, seja o dos
ministros ordenados.
Nós não somos mais, na
realidade, “sacerdotes segundo a ordem de Melquisedec”; sosmos sacerdotes
“segundo a ordem de Jesus Cristo”; sobre o altar, agimos “in persona Christi”,
isto é, representamos Sumo Sacerdote que é Cristo. Sobre este tema, o Simpósio
sobre o sacerdócio, acontecido nesta Sala no mês passado, disse infinitamente
mais do que eu posso dizer nesta minha breve reflexão (preparada, além do mais,
antes daquela data), mas é também necessário dizer algo aqui para a compreensão
da Eucaristia.
A Carta aos Hebreus explica em
que consiste a novidade e a unicidade do sacerdócio de Cristo: “Ele entrou no
Santuário, não com o sangue de bodes e bezerros, mas com seu próprio sangue, e
isto, uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna” (Hb 9,12). Todo sacerdote
oferece algo de exterior a si mesmo, Cristo ofereceu a si mesmo; todo outro
sacerdote oferece vítimas, Cristo se ofereceu vítima!
Santo Agostinho encerrou em
poucas palavras a natureza deste novo gênero de sacerdócio, em que sacerdote e
vítima são a mesma pessoa: “Ideo sacerdos quia sacrificium”, sacerdote
porque vítima [3]. Um notável estudioso definiu esta novidade do sacrifício de
Cristo como “o fato central na história religiosa da humanidade”, que pôs fim
para sempre à intrínseca aliança entre o sacro e a violência [4].
Em Cristo, é Deus quem se faz
vítima. Não são mais os seres humanos que oferecem sacrifícios a Deus para
aplacá-lo e torná-lo favorável; é Deus quem sacrifica a si mesmo pela
humanidade, entregando à morte por nós o seu Filho unigênito (cf. Jo 3,16).
Jesus não veio com o sangue alheio, mas com o próprio sangue; não pôs os seus
pecados sobre as costas de outros – animais ou criaturas humanas –, mas pôs os
pecados dos outros sobre as suas costas: “Carregou nossos pecados em seu próprio
corpo, sobre o lenho da cruz” (1Pd 2,24). Tudo isso significa que, na Missa,
nós devemos ser ao mesmo tempo sacerdotes e vítimas.
À luz disso, reflitamos sobre
as palavras da consagração: “Tomai, comei: isto é o meu corpo, que será
entregue por vós”. Quero dizer, a este propósito, a minha pequena experiência,
isto é, como cheguei a descobrir o alcance eclesial e pessoal da consagração
eucarística. Eis como eu vivia o momento da consagração na santa Missa nos
primeiros anos do meu sacerdócio: eu fechava os olhos, inclinava a cabeça,
buscava alienar-me de tudo o que me circundava, para me identificar em Jesus
que, no Cenáculo, pronunciou pela primeira vez aquelas palavras: “Accipite
et manducate: Tomai, comei...”. A própria liturgia inculcava esta postura,
fazendo pronunciar as palavras da consagração a baixa voz e em latim, inclinado
sobre as espécies.
Em seguida, houve a reforma
litúrgica do Vaticano II. Começou-se a celebrar a Missa olhando a assembleia;
não mais em latim, mas na língua do povo. Isto me ajudou a entender que aquela
minha postura, sozinho, não exprimia todo o significado da minha participação
na consagração. Aquele Jesus do Cenáculo não existe mais! Existe o Cristo
ressuscitado: o Cristo, para sermos exatos, que morreu, mas agora vive para sempre
(cf. Ap 1,18). Mas estes Jesus é o “Cristo total”, Cabeça e corpo
inseparavelmente unidos. Portanto, se é este Cristo total que pronuncia as
palavras da consagração, eu também as pronuncio com ele. Eu as pronuncio, sim,
“in persona Christi”, em nome de Cristo, mas também “em primeira pessoa”, isto
é, em meu nome.
A partir daquele dia em que
compreendi isso, comecei a não mais fechar os olhos no momento da consagração,
mas a olhar – ao menos vez ou outra ‒ os irmãos que tenho diante, ou, se
celebro sozinho, penso naqueles que devo encontrar durante o dia e aos quais
devo dedicar o meu tempo, ou penso mesmo em toda a Igreja e, voltado para eles,
digo com Jesus: “Tomai, todos, e comei: isto é o meu corpo, que quero dar por
vós... Tomai, todos, e bebei: isto é o meu sangue, que quero derramar por vós”.
Em seguida, veio Santo
Agostinho a tirar-me toda dúvida. “Naquilo que oferece, a Igreja oferece a si
mesma” [5], escreve em uma famosa passagem do De civitate Dei. Mais
perto de nós, a mística mexicana Concepción Cabrera de Armida, familiarmente
chamada Conchita, falecida em 1937 e beatificada pelo Papa Francisco em 2019,
ao filho jesuíta, prestes a ser ordenado sacerdote, escreveu estas palavras:
"Lembre-se, meu filho, quando tiver na mão a Hóstia Sagrada, não dirá:
'Aqui está o corpo de Jesus, aqui está o seu sangue', mas dirá: 'Isto é o meu
corpo, este é o meu sangue': isto é, um a transformação deve ocorrer em você
total, você deve se perder nele, ser outro Jesus”.[6]
Tudo isso não se aplica apenas
aos bispos e sacerdotes ordenados, mas a todos os batizados. Um famoso texto do
Concílio assim se expressa:
“Os fiéis, por sua parte,
concorrem para oblação da Eucaristia em virtude do seu sacerdócio real... Pela
participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida
cristã, oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela;
assim, quer pela oblação quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente,
mas cada um a seu modo, todos tomam parte na ação litúrgica” [7].
Há dois corpos de Cristo sobre
o altar: há o seu corpo real (o corpo “nascido da Virgem Maria”, morto,
ressuscitado e subido ao céu) e há o seu corpo místico, que é a Igreja.
Contudo, sobre o altar, está presente realmente o seu corpo real e está
presente misticamente o seu corpo místico, em que “misticamente” significa: por
força da sua inseparável união com a Cabeça. Nenhuma confusão entra as duas
presenças, que são distintas, mas inseparáveis.
Dado que há duas “ofertas” e
dois “dons” sobre o altar – o que deve se tornar o corpo e o sangue de Cristo
(o pão e o vinho) e o que deve se tornar o corpo místico de Cristo –, assim há
também duas “epicleses” na Missa, isto é, duas invocações do Espírito Santo. Na
primeira, reza-se: “Por isso, nós vos suplicamos: santificai pelo Espírito
Santo as oferendas que vos apresentamos para serem consagradas, a fim de que se
tornem o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo”; na segunda, que se recita após a
consagração, reza-se: “sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em
Cristo um só corpo e um só espírito. Que ele faça de nós uma oferenda
perfeita”.
Eis como a Eucaristia faz a
Igreja: a Eucaristia faz a Igreja, fazendo da Igreja uma Eucaristia! A
Eucaristia não é apenas, genericamente, a fonte ou a causa da santidade da
Igreja; é também a sua “forma”, isto é, o modelo. A santidade do cristão deve
se realizar segundo a “forma” da Eucaristia; deve ser uma santidade
eucarística. O cristão não pode se limitar a celebrar a Eucaristia, deve ser
Eucaristia com Jesus.
O corpo e o sangue
Agora podemos tirar as
consequências práticas desta doutrina para a nossa vida diária. Se, na
consagração, também somos nós que dizemos, voltados aos irmãos: “Tomai, comei:
isto é o meu corpo. Tomai, comei: isto é o meu sangue”, devemos saber o que
significam “corpo” e “sangue”, para saber o que oferecemos.
A palavra “corpo” não indica,
na Bíblia, um componente, ou uma parte, do homem que, unido aos outros
componentes que são a alma e o espírito, forma o homem completo. Na linguagem
bíblica e, portanto, na de Jesus e de Paulo, “corpo” indica o homem inteiro, na
medida em que vive a sua vida em um corpo, em uma condição corpórea e mortal.
“Corpo”, portanto, indica toda a vida. Ao instituir a Eucaristia, Jesus nos
deixou toda a sua vida como um dom, desde o primeiro momento da encarnação até
o último momento, com tudo o que preenchia concretamente aquela vida: silêncio,
suor, fadigas, oração, lutas, humilhações...
Em seguida, Jesus diz: “Isto é
o meu sangue”. O que acrescenta com a palavra “sangue”, se já nos deu toda a
sua vida em seu corpo? Acrescenta a morte! Depois de nos ter dado a vida, ele
também nos dá a parte mais preciosa dela, a sua morte. De fato, o termo
“sangue”, na Bíblia, não indica uma parte do corpo, isto é, uma parte de uma
parte do homem; indica um evento: a morte. Se o sangue é a sede da vida (assim
se pensava então), seu “derramamento” é o sinal plástico da morte. A Eucaristia
é o mistério do corpo e do sangue do Senhor, isto é, da vida e da morte do
Senhor!
Agora, vindo a nós, o que
oferecemos, oferecendo nosso corpo e nosso sangue, junto com Jesus, na Missa?
Nós também oferecemos o que Jesus ofereceu: a vida e a morte. Com a palavra
“corpo”, damos tudo o que constitui concretamente a vida que levamos neste
mundo, a nossa experiência: tempo, saúde, energias, capacidades, afeto, talvez
apenas um sorriso. O sorriso é algo que só um espírito que vive em um corpo
pode fazer e é, às vezes, algo tão precioso. Com a palavra “sangue”, também nós
expressamos a oferta da nossa morte. Não necessariamente a morte definitiva, o
martírio por Cristo ou pelos irmãos. É morte tudo o que em nós, a partir de
agora, prepara e antecipa a morte: humilhações, fracassos, doenças que
imobilizam, limitações causadas pela idade, pela saúde, tudo isso, em uma
palavra, que nos “mortifica”.
Tudo isso exige, contudo, que
nós, assim que saímos da Missa, empenhemo-nos em cumprir o que dissemos; que
realmente nos esforcemos, com todas as nossas limitações, para oferecer aos
irmãos o nosso “corpo”, isto é, o tempo, as energias, a atenção; em uma
palavra, a nossa vida. É preciso, portanto, que, depois de ter dito aos irmãos:
“Tomai, comei”, nós nos deixemos realmente “comer”, e nos deixemos comer
sobretudo por quem não o faz com toda a delicadeza e cortesia que esperaríamos.
Santo Inácio de Antioquia, a caminho de Roma para aí morrer mártir, escrevia:
“Sou trigo de Deus, serei triturado pelos dentes das feras para tornar-me o
puro pão de Cristo” [8]. Cada um de nós, se olhar bem ao redor, verá esses
dentes afiados de feras que ameaçam: são críticas, contrastes, oposições
ocultas ou às claras, divergências de opiniões com quem está ao nosso lado,
diversidades de caráter.
Tentemos imaginar o que
aconteceria se celebrássemos a Missa com esta participação pessoal, se todos
realmente disséssemos, no momento da consagração, quem em voz alta, quem em
silêncio, segundo o ministério de cada um: “Tomai, comei”. Um sacerdote, um
pároco e, mais ainda, um bispo, celebra assim a sua Missa, depois sai: reza,
prega, confessa, recebe pessoas, visita doentes, escuta... Também o seu dia é
Eucaristia. Um grande mestre espiritual francês, Pierre Olivaint (1816-1871),
dizia: “De manhã, na Missa, eu sou sacerdote e Jesus é vítima; ao longo do dia,
Jesus é sacerdote e eu, vítima”. Assim um sacerdote imita o “bom Pastor”,
porque dá realmente a vida pelas suas ovelhas.
A nossa assinatura sobre o dom
Gostaria de resumir, com a
ajuda de um exemplo humano, o que acontece na celebração eucarística. Pensemos
em uma numerosa família na qual há um filho, o primogênito, que admira e ama
sem medidas o próprio pai. Pelo seu aniversário, que dar-lhe um presente
precioso. Antes de presenteá-lo, porém, pede secretamente a todos os seus
irmãos e irmãs para pôr sua assinatura sobre o presente. Este chega às mãos do
pai, portanto, como sinal de amor de todos os seus filhos, indistintamente,
mesmo se, na realidade, apenas um pagou o preço dele.
É o que acontece no sacrifício
eucarístico. Jesus admira e ama sem medidas o Pai celeste. A Ele, quer dar,
cada dia, até o fim do mundo, o dom mais precioso que se possa imaginar, o da
sua própria vida. Na Missa, ele convida todos os seus irmãos e irmãs a pôr a
própria assinatura sobre o dom, de maneira que ele chegue a Deus Pai como dom
indistinto de todos os seus filhos, ainda que apenas um tenha pagado o preço de
tal dom. E que preço!
A nossa assinatura são as
poucas gotas de água que são misturadas ao vinho no cálice. Não são mais do que
água, mas, misturadas no cálice, tornam-se uma única bebida. A assinatura de
todos é o solene Amém que a assembleia pronuncia, ou canta, ao término da
doxologia: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso,
na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para
sempre... AMÉM!”.
Sabemos que quem assinou um
compromisso, tem o dever de honrar a própria assinatura. Isto quer dizer que,
saindo da Missa, devemos fazer também nós da nossa vida um dom de amor ao Pai e
aos irmãos. Nós, repito, não somos chamados apenas a celebrar a Eucaristia, mas
também a nos fazer eucaristia. Que Deus nos ajude nisto!
Tradução de fr. Ricardo
Farias, ofmcap
[1] Cf. Inácio de
Antioquia, Carta aos Magnésios, 10,3.
[2] Cf. J. Ratzinger –
Benedetto XVI, Gesù di Nazaret, vol. II, LEV, Roma 2011, p.132-163;
cf. L. Bouyer, Eucharistie. Théologie et spiritualità de la prière
eucharistique. Desclée, Tournai 1966 (trad. ital. Eucaristia.
Teologia e spiritualità della Preghiera eucaristica, LDC, Torino 1983.
[3] Agostinho, Confissões,
X,43.
[4] Cf. R. Girard, Des
choses cachées depuis la fondation du monde, Grasset, Paris 1978.
[5] Cf. Agostinho, De
civitate Dei, X, 6: “In ea re quam offert, ipsa [Ecclesia] offertur”.
[6] Diario spirituale
di una madre di famiglia, a cura di M.-M. Philipon, Roma, Città Nuova,
1985, p. 117.
[7] Lumen gentium,
10-11.
[8] Cf. Inácio de Antioquia, Carta aos romanos, 4,1.