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sexta-feira, 18 de março de 2022

Você sabe fazer o exame de consciência?

© Luxorphoto / Shutterstock
Por Hozana

Alguns escritores nos falam que o exame de consciência pode ser dividido em três etapas.

Todos nós cristãos sabemos da grande importância do exame de consciência, não somente para quando nos preparamos para fazer uma boa confissão, mas também devemos praticar este exercício à noite antes de se fazer a oração da noite.

São João Crisóstomo dizia que se uma pessoa fizesse seu exame de consciência todos os dias no período de trinta dias, sem dúvida essa pessoa estaria no caminho da santidade. Santo Inácio de Loyola, fundador dos Jesuítas, praticamente dirigia espiritualmente seus discípulos somente com o exame de consciência e a prática dos sacramentos. 

Então vejamos como é importante praticar o exame de consciência. Alguns escritores nos falam que o exame de consciência pode ser dividido em três etapas: a primeira, identificar os nossos atos (superficial). A segunda etapa é a contrição, onde percebemos que o pecado o qual cometemos não só machuca, mas destrói. A terceira, por fim, é a etapa da resolução, do propósito de amar a Deus, cortar pela raiz os maus hábitos e os vícios arraigados no coração.

Exame de consciência: pedido, louvor e agradecimento

O exame que é praticado a noite é de grande importância porque nesse momento depositamos no Coração misericordioso de Jesus todas as nossas misérias. Tudo o que vivemos durante o dia, os bons atos e ações que praticamos. Também é o momento do louvor e do agradecimento pelo dia que está chegando ao fim. É, ainda, o momento de colocar-se em questão sobre os atos que desagradaram a Deus e ao próximo: Será que magoei alguém com atos ou palavras? Fui fiel a Deus durante esse dia? 

Assim como agradecemos pelo dia que passou, também precisamos analisar onde erramos, como está a nossa consciência? Estou indo me deitar na tranquilidade e na paz ou algo que fiz está tirando o meu sono? Depois que for realizado tudo isso podemos então fazer nossas orações rezar o ato de contrição pedindo a Deus força para não cair no mesmo erro e que a cada dia possamos crescer na fé, no amor e no caminho para a santidade.

5 passos para um bom exame de consciência

Os 5 passos para realizar o exame de consciência, recomendados por Santo Inácio de Loyola, são os seguintes:

1. Pedir luz e graça para descobrir Deus naquilo que viveu

Acalmo o meu coração para compartilhar o que vivi com um Amigo muito especial. Peço luz para conhecer os sinais e a ação de Deus neste dia. Recordo que Jesus deixou seu Espírito Santo para levar à criação a plenitude e restaurá-la segundo o plano do Criador.

2. Agradecer pelos dons recebidos

Repasso o que vivi no dia: atividades, experiências, encontros, trabalho etc. Agradeço a Deus por tudo o que vivi e penso em que momentos senti uma maior proximidade com Jesus. Posso perceber esta proximidade através do que experimentei interiormente: esperança, entrega, gratidão, serviço, liberdade etc. Estes movimentos internos vêm acompanhados de convites e, por isso, é importante reconhecê-los e agradecê-los.

3. Reconhecer as falhas (o que senti, fiz ou pensei).

Penso nos descuidos que não me permitiram obter maiores frutos no dia. Reconheço se houve alguma insensibilidade diante das necessidades que encontrei no caminho. Assumo as falhas na construção da fraternidade e da justiça com os irmãos.

4. Se houve falhas graves, fazer uma oração de perdão

Peço perdão aos que eu ofendi hoje. Dou o meu perdão aos que me machucaram. Dou a mim mesmo o perdão que Jesus me oferece.

5. Fazer um propósito para cumprir essa graça

Se houve uma falha grave, vejo a maneira de corrigi-la para o dia de amanhã. Renovo a minha amizade e meu desejo de amar e servir: “Senhor, tu sabes tudo, tu sabes que eu te amo”. Peço a bênção de Maria.

Se você deseja ser guiado(a) nesse passo a passo para a vivência de um bom exame de consciência, convido você a unir-se a mim neste retiro de 7 dias para encontrar-se consigo mesmo no qual você poderá experimentar 7 propostas de exame de consciência que lhe ajudarão a rever o seu dia. Clique aqui para se inscrever. 

Margô Teixeira, pelo Hozana

Fonte: https://pt.aleteia.org/

“CUIDADO PARA NÃO CAIR”

Foto: Divulgação

Dom Rodolfo Luís Weber
Arcebispo de Passo Fundo (RS)

            A Campanha da Fraternidade usa a metodologia de escutar a realidade, fazer o discernimento dos acontecimentos e agir para promover mudanças. Os textos bíblicos da liturgia do terceiro domingo da quaresma podem ser refletidos e rezados dentro desta metodologia educativa.

            No livro do Êxodo (3,1-15) Deus diz a Moisés que viu a aflição do povo, ouviu o seu clamor e conhece os seus sofrimentos. No evangelho (Lucas 13,1-9) Jesus está diante de dois fatos trágicos oriundos de causas diferentes. O primeiro relata a ordem de Pilatos para matar galileus no templo e misturar o sangue com os sacrifícios que ofereciam. Temos aí assassinato e sacrilégio. O segundo fato relata a morte de 18 pessoas sobre as quais caiu acidentalmente uma torre. São Paulo na 1 Carta aos Coríntios ((10, 1-12) constata que a vida cristã dos Coríntios era muito aparente e superficial. Os três relatos pedem uma escuta atenta destes fatos e um discernimento a partir da Palavra de Deus e por fim um agir ou uma conversão.

            Moisés conhecia muito bem a situação do seu povo. Tentou resolver o problema sozinho recorrendo à violência. Logo percebeu que a metodologia adotada não alcançaria os objetivos, por isso foge e se esconde no deserto. Neste contexto recebe o convite de voltar, de converter-se novamente em direção do seu povo. Agora não mais em nome próprio, mas em nome do “Deus de vossos pais que me enviou a vós”. A realidade de sofrimento somente muda com decisões eficazes e a colaboração dos sofredores.

            Jesus comenta os dois fatos trágicos que lhe são apresentados. Faz um discernimento pois havia interpretações que não condiziam com a verdade. Segundo a mentalidade da época, o povo interpretava estes acontecimentos como uma punição divina dos pecados daquelas vítimas. Transmitia-se com isso uma imagem errada de Deus, como também se culpava inocentes.

            Os fatos motivam Jesus a guiar seus ouvintes à necessidade da conversão. Não a propõe em termos moralistas, mas realistas. Perante certas desgraças as certezas humanas entram em crise. Não se pode descarregar a culpa nas vítimas. Diante da precariedade da existência humana deve-se assumir uma atitude de responsabilidade. A atitude correta, segundo Jesus, é converter-se. Ninguém está isento de ser vítima de desastres. Também não se pode gastar todo tempo em procurar culpados. Faz-se necessário rever o próprio agir e assumir a própria responsabilidade no contexto.

            A fragilidade humana também se expressa na demora para promover mudanças, mesmo aquelas que são urgentes. A parábola, ao final do Evangelho, expressa a vida infrutífera “já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro”. As mudanças exigem paciência e misericórdia, além de esforço e investimento. “Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto”.

            Muito provocativo é o alerta de São Paulo na Carta aos Coríntios. “Portanto, quem julga estar de pé tome cuidado para não cair”. A condição humana não deixa espaço para atitudes de arrogância. Achar que somente os outros erram e por isso posso emitir julgamentos é uma ilusão. Pois, posso estar muito bem hoje, ser justo e correto, mas isto não é garantia absoluta para o amanhã. Quando menos se espera também posso estar caindo. Como recomenda Paulo “cuidado para não cair”, vigilância e conversão diária.

Fonte: https://www.cnbb.org.br/

I Pregação da Quaresma 2022 - texto integral

Vatican News

Nesta sexta-feira, 11 de março, o pregador da Casa Pontifícia, cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap, propôs à Cúria Romana a primeira pregação da Quaresma: "A Liturgia da Palavra".

Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.

A LITURGIA DA PALAVRA

Primeira Pregação, Quaresma de 2022

Entre os vários males que a pandemia da Covid tem causado à humanidade, houve ao menos um efeito positivo do ponto de vista da fé. Ela nos fez tomar consciência da necessidade que temos da Eucaristia e do vazio que cria a sua falta. Durante o período mais agudo da pandemia em 2020, fiquei fortemente impressionado – e comigo, penso que muitos outros – com o que significava assistir pela televisão toda manhã à Santa Missa celebrada pelo Papa Francisco em Santa Marta.

Algumas igrejas locais e nacionais decidiram dedicar o ano corrente a uma catequese especial sobre a Eucaristia, em vista de um desejado renascimento eucarístico na Igreja católica. Parece-me uma decisão oportuna e um exemplo a ser seguido. Por isso, pensei em dar uma pequena colaboração ao projeto, dedicando as reflexões desta Quaresma a uma revisitação do mistério eucarístico.

A Eucaristia está no centro de todo tempo litúrgico, da Quaresma, não menos que nos demais tempos. É o que celebramos cada dia, a Páscoa diária. Cada pequeno progresso na sua compreensão se traduz em um progresso na via espiritual da pessoa e da comunidade eclesial. Contudo, ela é também, infelizmente, a coisa mais exposta, pela sua repetitividade, a cair na rotina, a se tornar coisa habitual. São João Paulo II, na Carta Ecclesia de Eucharistia de abril de 2003, diz que os cristãos devem redescobrir e manter sempre vivo “o estupor eucarístico”. Assim, a este fim, gostariam de servir as nossas reflexões: a reencontrar o estupor eucarístico.

Falar da Eucaristia em tempo de pandemia e agora, por acréscimo, com cenas de guerra diante dos olhos, não é um alienarmo-nos da realidade dramática em que vivemos, mas um convite a olhá-la de um ponto de vista superior e menos contingente. A Eucaristia é a presença na história do evento que inverteu para sempre os papéis entre vencedores e vítimas. Na cruz, Cristo fez da vítima o verdadeiro vencedor: “Victor quia victima”, assim define Santo Agostinho: vencedor justamente porque vítima. A Eucaristia nos oferece a verdadeira chave de leitura da história. Nos assegura que Jesus está conosco, não apenas intencionalmente, mas realmente neste nosso mundo que parece escapar de nossas mãos a qualquer momento. Ele nos repete: "Tenha coragem: eu venci o mundo!" (Jo 16:33).

A Eucaristia na história da salvação

Que posto ocupa a Eucaristia na história da salvação? A resposta é: não ocupa um lugar, mas a ocupa inteiramente! A Eucaristia é coextensiva à história da salvação. Ela, porém, está presente em três modos diversos, nos três diversos tempos, ou fases, da salvação: está presente no Antigo Testamento como figura; está presente no Novo Testamento como evento e está presente no tempo da Igreja como sacramento. A figura antecipa e prepara o evento, o sacramento “prolonga” e atualiza o evento.

No Antigo Testamento, dizia eu, a Eucaristia está presente “em figura”. Uma destas figuras era o maná, uma outra era o sacrifício de Melquisedec, uma outra ainda era o sacrifício de Isaac. Na sequência Lauda Sion Salvatorem, composta por Santo Tomás de Aquino para a festa de Corpus Christi, canta-se: “As figuras o simbolizam: é Isaac que se imola, o cordeiro que se destina à Páscoa, o maná dado a nossos pais”: In figúris præsignátur, / cum Isaac immolátur: /agnus paschæ deputátur: /datur manna pátribus.  Enquanto figuras da Eucaristia, Santo Tomás chama estes ritos de “os sacramentos da antiga Lei” [1].

Com a vinda de Cristo e o seu mistério de morte e ressurreição, a Eucaristia não está mais presente como figura, mas como evento, como realidade. Nós o chamamos “evento” porque é algo historicamente acontecido, um fato único no tempo e no espaço, ocorrido apenas uma vez (semel) e irrepetível: Cristo, “na plenitude dos tempos, uma vez por todas, se manifestou para destruir o pecado pelo sacrifício de si mesmo” (Hb 9,26).

Enfim, no tempo da Igreja, a Eucaristia, eu dizia, está presente como sacramento, isto é, no sinal do pão e do vinho, instituído por Cristo. É importante que compreendamos bem a diferença entre o evento e o sacramento: na prática, a diferença entre a história e a liturgia. Deixemo-nos ajudar por Santo Agostinho.

Nós – afirma o santo doutor – sabemos e cremos com fé certíssima que Cristo morreu uma só vez por nós, ele, justo pelos pecadores, ele, Senhor pelos servos. Sabemos perfeitamente que isso aconteceu uma só vez; e, contudo, o sacramento periodicamente o renova, como se se repetisse várias vezes o que a história proclama ter acontecido uma só vez. E, ainda assim, evento e sacramento não contrastam entre si, quase como se o sacramento fosse enganoso e apenas o evento fosse real. De fato, do que a história afirma ter acontecido na realidade, uma só vez, o sacramento renova (renovat) frequentemente a celebração disso no coração dos fiéis. A história desvela o que aconteceu uma vez e como aconteceu, a liturgia faz com que o passado não seja esquecido; não no sentido de que o faz acontecer de novo (non faciendo), mas no sentido de que o celebra (sed celebrando) [2].

Precisar o nexo que existe entre o sacrifício único da cruz e a Missa é algo bem delicado e tem sido sempre um dos pontos de maior discordância entre católicos e protestantes. Agostinho usa, como vimos, dois verbos: renovar celebrar, que são justíssimos, com a condição, porém, de serem compreendidos um à luz do outro: a Missa renova o evento da cruz celebrando-o (não reiterando-o!) e o celebra renovando-o (não apenas recordando-o!). A palavra, na qual se realiza hoje o maior consentimento ecumênico, é talvez o verbo (usado também por Paulo VI, na Encíclica Mysterium fideirepresentar, compreendido no sentido forte de re-apresentar, isto é, tornar novamente presente [3]. Neste sentido, dizemos que a Eucaristia “representa” a cruz.

Segundo a história, houve, portanto, uma só Eucaristia, aquela realizada por Jesus com a sua vida e a sua morte; segundo a liturgia, ao contrário, ou seja, graças ao sacramento, há tantas Eucaristias quantas são celebradas e serão celebradas até o fim do mundo. O evento se realizou uma só vez (semel), o sacramento se realiza “cada vez” (quotiescumque). Graças aos sacramento da Eucaristia, nós nos tornamos, misteriosamente, contemporâneos do evento; o evento se faz presente a nós e nós ao evento.

As nossas reflexões quaresmais terão por objeto a Eucaristia em seu estágio presente, isto é, como sacramento. Na Igreja antiga existia uma catequese especial, chamada mistagógica, que era reservada ao bispo e era ministrada depois, não antes, do batismo. O seu objetivo era revelar aos neófitos o significado dos ritos celebrados e as profundezas dos mistérios da fé: batismo, crisma ou unção, e, particularmente, a Eucaristia. O que nos propomos fazer é justamente uma pequena catequese mistagógica sobre a Eucaristia. Para permanecer o mais ancorados possível na natureza sacramental e ritual dela, seguiremos de perto o desenvolvimento da Missa em suas três partes – liturgia da palavra, liturgia eucarística e comunhão –, acrescentando no fim uma reflexão sobre o culto eucarístico fora da Missa.

Liturgia da palavra

Nos primeiríssimos dias da Igreja, a liturgia da Palavra era separada da liturgia eucarística. Os discípulos, referem os Atos dos Apóstolos, “dia após dia, unânimes, frequentavam o templo”; aí escutavam a leitura da Bíblia, recitavam os salmos e as orações, junto com os outros judeus; faziam o que se faz na liturgia da Palavra; depois se reuniam à parte, em suas casas, para “partir o pão”, isto é, para celebrar a Eucaristia (cf. At 2,46).

Bem cedo, contudo, esta praxe se tornou impossível, seja pela hostilidade da parte das autoridades hebraicas em relação a eles, seja porque as Escrituras tinham então adquirido para eles um sentido novo, orientado todo a Cristo. foi assim que também a escuta da Escritura se transferiu do templo e da sinagoga aos lugares de culto cristãos, assumindo pouco a pouco a fisionomia da atual liturgia da Palavra que precede a oração eucarística. Na descrição da celebração eucarística feita por São Justino no II século, não apenas a liturgia da Palavra é parte integrante dela, mas às leituras do Antigo Testamento se juntaram aquelas que o santo chama “as memórias dos apóstolos”, isto é, os Evangelhos e as Cartas, na prática o Novo Testamento [4].

Escutadas na liturgia, as leituras bíblicas assumem um sentido novo e mais forte do que quando lidas em outros contextos. Não têm tanto a finalidade de conhecer melhor a Bíblia, como quando é lida em casa ou em uma escola bíblica, quanto a de reconhecer aquele que se faz presente no partir o pão, de iluminar a cada vez um aspecto particular do mistério que está por se receber. Isto aparece, de modo quase programático, no episódio dos dois discípulos de Emaús. Foi escutando a explicação das Escrituras que o coração dos discípulos começou a se abrir, de modo que foram depois capazes de reconhecê-lo “ao partir o pão” (Lc 24,1ss.). A de Jesus ressuscitado foi a primeira “liturgia da palavra” na história da Igreja!

Segunda característica: na Missa, as palavras e os episódios da Bíblia não são apenas narrados, mas revividos; a memória se torna realidade e presença. O que acontece “naquele tempo”, acontece “neste tempo”, “hoje” (hodie), como ama expressar-se a liturgia. Nós não somos apenas ouvintes da palavra, mas interlocutores e atores nela. É a nós, ali presentes, que é dirigida a palavra; somos chamados a assumir o lugar dos personagens evocados.

Alguns exemplos ajudarão a entender. Uma vez se lê, na primeira leitura, o episódio de Deus que fala a Moisés da sarça ardente: nós estamos, na Missa, diante da verdadeira sarça ardente... Uma outra vez, fala-se de Isaías que recebe nos lábios a brasa ardente que o purifica para a missão: nós estamos prestes a receber nos lábios a verdadeira brasa ardente, o fogo que Jesus veio trazer sobre a terra... Ezequiel é enviado para comer o rolo dos oráculos proféticos: nós nos aproximamos para comer aquele que é a própria palavra feita carne e feita pão.

A coisa se torna ainda mais clara se, do Antigo Testamento, passamos ao Novo, da primeira leitura ao trecho evangélico. A mulher que sofria de hemorragia está certa de ser curada se conseguir tocar a barra do manto de Jesus: o que dizer de nós, que estamos prestes a tocar bem mais do que a barra do seu manto? Uma vez, escutava no Evangelho o episódio de Zaqueu e fui tocado pela “atualidade”. Eu era Zaqueu; eram dirigidas a mim as palavras: “Hoje eu devo ficar na tua casa”; era de mim que se podia dizer: “Ele foi hospedar-se na casa de um pecador!”, e era a mim, após tê-lo recebido na comunhão, que Jesus dizia: “Hoje a salvação entrou nesta casa” (cf. Lc 19,9).

Assim também de cada episódio evangélico. Como não se identificar na Missa com o paralítico ao qual Jesus diz: “Os teus pecados estão perdoados” e “Levanta-te e anda” (cf. Mc 2,5.11); com Simeão, que segura nos braços o Menino Jesus (cf. Lc 2, 27-28); com Tomé, que toca as suas feridas (Jo 20,27-28)? No segundo domingo do Tempo Comum do corrente ciclo litúrgico, há o trecho evangélico em que Jesus diz ao homem da mão paralisada: “‘Estende a mão’. Ele a estendeu e a mão ficou curada” (Mc 3,5). Nós não temos a mão paralisada; porém, temos todos, quem mais e quem menos, a alma paralisada, o coração ressecado. É a quem escuta que Jesus diz naquele momento: “Estende a tua mão! Estende o teu coração diante de mi, com a fé e a prontidão daquele homem”.

A Escritura proclamada durante a liturgia produz efeitos que estão acima de toda explicação humana, à maneira dos sacramentos que produzem o que significam. Os textos divinamente inspirados também têm um poder de cura. Após a leitura do trecho evangélico na Missa, a liturgia convida o ministro a beijar o livro dizendo: “Pelas palavras do santo Evangelho sejam perdoados os nossos pecados” (Per evangelica dicta deleantur nostra delicta).

Ao longo da história da Igreja, eventos de época aconteceram como resultado da escuta das leituras bíblicas durante a Missa. Um jovem ouviu um dia o trecho evangélico em que Jesus diz a um jovem rico: “Se queres ser perfeito, vai, vende os teus bens, dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem, e segue-me” (cf. Mt 19,21). Entendeu que aquela palavra era dirigida a ele pessoalmente, por isso, foi para casa, vendeu tudo o que tinha e se retirou no deserto. Seu nome era Antão, o iniciador do monaquismo. Muitos séculos depois, em Assis, um outro jovem, há pouco convertido, entrou em uma igreja com um amigo. No Evangelho do dia, Jesus dizia aos seus discípulos: “Não leveis nada pelo caminho: nem cajado, nem sacola, nem pão, nem dinheiro, nem duas túnicas” (Lc 9,3). O jovem se voltou ao seu amigo e disse: “Ouviste isso? É isso que o Senhor que façamos também nós”. E iniciou daí a ordem franciscana.

A liturgia da Palavra é a melhor fonte que temos para fazer cada vez, da Missa, uma celebração nova e atraente, evitando assim o grande perigo de uma repetição monótona que, especialmente os jovens, acham entediante. Para que isto se realize, devemos investir mais tempo e oração na preparação da homilia. Os fiéis deveriam poder entender que a palavra de Deus toca as situações reais da vida e é a única a ter respostas às questões mais sérias da existência.

Há dois modos de preparar uma homilia. Alguém pode se sentar à escrivaninha e escolher o tema em base às próprias experiências e conhecimentos; assim, uma vez preparado o texto, pôr-se de joelhos e pedir a Deus para que infunda o Espírito nas próprias palavras. É algo bom, mas não é um modo profético. Para sermos proféticos, é preciso seguir a via inversa: antes, pôr-se de joelhos e perguntar a Deus qual é a palavra que ele quer fazer ressoar para seu povo

Deus, de fato, tem uma sua palavra para cada ocasião e não deixa de revelá-la ao seu ministro que a pedir humildemente e com insistência. No início, não se tratará mais do que um pequeno movimento do coração, uma luz que se acende na mente, uma palavra da Escritura que chama a atenção e que lança luz sobre uma situação vivida. Trata-se, aparentemente, de uma pequena semente, mas contém o que o povo precisa escutar naquele momento.

Depois disso, alguém pode se sentar à escrivaninha, abrir os próprios livros, consultar anotações, reunir e organizar os próprios pensamentos, consultar os Padres da Igreja, os mestres, às vezes, os poetas; mas agora, não é mais a palavra de Deus que está à serviço da sua cultura, mas a sua cultura a serviço da palavra de Deus. Só assim a Palavra manifesta o seu poder intrínseco.

A obra do Espírito Santo

Mas é preciso acrescentar uma cosa: toda a atenção dada à palavra de Deus, por si só, não basta. Sobre ela deve descer “a força do alto”. Na Eucaristia, a ação do Espírito Santo não é limitada apenas ao momento da consagração, à epiclese que se recita antes dela A sua presença é igualmente indispensável para a liturgia da palavra, e veremos, a seu tempo, para a comunhão.

O Espírito Santo continua, na Igreja, a ação do Ressuscitado que, após a Páscoa, “abria a inteligência dos discípulos para entenderem as Escrituras” (cf. Lc 24,45). A escritura, afirma a Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, “deve ser lida e interpretada com o mesmo espírito com que foi escrita” [5]. Na liturgia da palavra, a ação do Espírito Santo é exercida mediante a unção espiritual presente em quem fala e em quem escuta.

“O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque ele me consagrou com a unção
para anunciar a Boa-nova aos pobres” (Lc 4,18).

Jesus indicou assim de onde tira força a palavra anunciada. Seria um erro confiar-se apenas na unção sacramental que recebemos uma vez por todas na ordenação sacerdotal ou episcopal. Ela nos habilita a cumprir certas ações sagradas, como governar, pregar e ministrar os sacramentos. Ela nos dá, por assim dizer, a autorização para fazer certas coisas, não necessariamente algo da autoridade que as multidões percebiam quando Jesus falava; assegura a sucessão apostólica, não necessariamente o sucesso apostólico!

Mas se a unção é dada pela presença do Espírito e é seu dom, o que podemos fazer para tê-la? Primeiramente, devemos partir de uma certeza: “Nós recebemos a unção do Santo”, assegura-nos São João (1Jo 2,20). Ou seja, graças ao batismo e à crisma – e, para alguns, à ordenação presbiteral ou episcopal –, nós já possuímos a unção. Na verdade, segundo a doutrina católica, ela imprimiu em nossa alma um caráter indelével, como uma marca ou um selo: “É Deus – escreve o Apóstolo – que nos confirma juntamente convosco, em Cristo, como também é Deus que nos ungiu, nos marcou com seu selo e deu-nos, em nossos corações, a garantia Espírito” (2Cor 1,21-22).

Esta unção, porém, é como um unguento perfumado fechado em um vaso: permanece inerte e não libera nenhum perfume se não se quebrar e não se abrir o vaso. Assim acontece com o caso de alabastro quebrado pela mulher do evangelho, cujo perfume encheu a casa inteira (Mc 14,3). Aí está onde se insere a nossa parte em relação à unção. Ela não depende de nós, mas depende de nós remover os obstáculos que impedem sua irradiação. Não é difícil entender o que significa para nós quebrar o vaso de alabastro. O vaso é a nossa humanidade, o nosso eu, às vezes, o nosso árido intelectualismo. Quebrá-lo, significa pôr-se em estado de submissão a Deus e de resistência ao mundo.

Felizmente, nem tudo é confiado ao esforço ascético. Muito mais, nesse caso, a fé, a oração, a humilde súplica. Pedir, assim, a unção antes de nos dirigirmos a uma pregação ou a uma ação importante a serviço do Reino. Enquanto nos preparamos à leitura do evangelho e à homilia, a liturgia nos faz pedir ao Senhor para purificar o nosso coração e os nossos lábios para poder anunciar dignamente o evangelho. Por que não dizer, vez ou outra (ou ao menos pensar para si mesmo): “Ó Deus todo-poderoso, ungi-me o coração e os lábios, para que eu anuncie com a doçura e a força do Espírito a vossa palavra”?

A unção não é necessária apenas aos pregadores para proclamar eficazmente a palavra, também o é aos ouvintes para acolhê-la. O evangelista João escrevia à sua comunidade: “Vós já recebestes a unção do Santo e todos tendes conhecimento... a unção que recebestes da parte de Jesus permanece convosco e não tendes necessidade de que alguém vos ensine” (1Jo 2,20.27). Não significa que todo ensinamento seja inútil. Por que, então, João escreve a sua carta e nós lhes pregamos?, comenta Agostinho, e responde: “É o mestre interior quem realmente instrui, é Cristo e a sua inspiração a instruir. Quando falta a sua inspiração e a sua unção, as palavras externas fazem apenas um inútil ruído” [6].

Esperamos que também hoje Cristo nos tenha instruído com sua inspiração interior e o meu falar não tenha sido “um inútil ruído”.

Tradução de fr. Ricardo Farias, ofmcap

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[1] Tomás de Aquino, S.Th., III, q.60, a. 2,2.

[2] Cf. Agostinho, Sermo 112 (PL 38, 643).

[3] Paulo VI, Mysterium fidei (AAS 57, 1965, p. 753ss).

[4] Justino, I Apologia, 67,3-4

[5] Dei Verbum, 12.

[6] Cf. Agostinho, Comentário à Primeira Epístola de João, 3,13.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

II Pregação da Quaresma do cardeal Cantalamessa

Vatican News

"Para compreender o papel do sacerdote na consagração, é de vital importância conhecer a natureza do sacrifício e do sacerdócio de Cristo, pois é deles que deriva o sacerdócio cristão, seja o batismal comum a todos, seja o dos ministros ordenados."

Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap.

“TOMAI, COMEI: ISTO É O MEU CORPO”

Segunda Pregação, Quaresma de 2022

O assunto da nossa catequese mistagógica de hoje é a parte central da Missa, a Oração eucarística, ou Anáfora, que tem em seu cento a consagração. Sobre ela, façamos dois tipos de consideração: uma litúrgica e ritual, a outra, teológica e existencial.

Do ponto de vista ritual e litúrgico, hoje temos um novo recurso que não tinham os Padres da Igreja e os doutores medievais. O recurso novo de que dispomos hoje é a reaproximação entre cristãos e judeus. Desde os primeiríssimos dias da Igreja, diversos fatores históricos levaram a acentuar a diferença entre cristianismo e judaísmo, até a contrapô-los entre si, como o faz já Inácio de Antioquia [1]. Distinguir-se dos judeus ‒ sobre a data da Pasqua, os dias de jejum e em várias outras coisas ‒ tonar-se uma espécie de palavra de ordem. Uma acusação frequentemente dirigida aos próprios adversários e aos hereges é a de “judaizar”.

A tragédia do povo hebreu e o novo clima de diálogo com o judaísmo, iniciado a partir do Concílio Vaticano II, tornaram possível um melhor conhecimento da matriz hebraica da Eucaristia. Como não se entende a Páscoa cristã se não é considerada como o cumprimento daquilo que a Páscoa hebraica preanunciava, assim não se entende a fundo a Eucaristia se não é vista como o cumprimento daquilo que os hebreus faziam e diziam no curso da sua refeição ritual. Um primeiro resultado importante desta retomada foi que nenhum estudioso sério, hoje, avança mais na hipótese de que a Eucaristia cristã seja explicada à luz da ceia em voga em alguns cultos mistéricos do helenismo, como se tentou fazer por mais de um século.

Os Padres da Igreja consideraram as Escrituras do povo hebreu, mas não a sua liturgia, à qual não tinham mais acesso, após a separação da Igreja da Sinagoga. por isso, eles utilizaram as figuras contidas nas Escrituras ‒ o cordeiro pascal, o sacrifício de Isaac, o de Melquisedec, o maná ‒, mas não o contexto litúrgico concreto em que o povo hebreu celebrava todas essas recordações, isto é, a refeição ritual celebrada, uma vez por ano, na ceia pascal (o Seder) e, semanalmente, no culto sinagogal. O primeiro nome com que a Eucaristia é designada no Novo Testamento por Paulo é o de “ceia do Senhor” (kuriakon deipnon) (1Cor 11,20), com referência evidente à ceia hebraica, da qual já se diferencia pela fé em Jesus. A Eucaristia é o sacramento da continuidade entre Antigo e Novo Testamento, entre judaísmo e cristianismo.

A Eucaristia e a Beraká hebraica

É esta a perspectiva em que se situa Bento XVI, no capítulo dedicado à instituição da Eucaristia em seu segundo volume sobre Jesus de Nazaré. Seguindo a opinião já predominante entre os estudiosos, ele aceita a cronologia joanina, segundo a qual a última ceia de Jesus não foi uma ceia pascal, mas foi uma solene refeição de despedida (a “última ceia”!) e considera que se possa “traçar o desenvolvimento da eucharistia cristã, isto é, do cânon, a partir da beraká hebraica” [2].

Por várias razões culturais e históricas, a partir da Escolástica em diante, buscou-se explicar a Eucaristia à luz da filosofia, particularmente, das noções aristotélicas de substância e de acidentes. Isto era também um pôr a serviço da fé os novos conhecimentos do momento e, portanto, um imitar o método dos Padres. Em nossos dias, devemos fazer o mesmo com os novos conhecimentos, desta vez, de ordens históricas e litúrgicas, mais do que filosóficas. Eles têm a vantagem de ser as categorias com que pensava e falava Jesus, que não eram, certamente, os conceitos aristotélicos de matéria e forma, substância e acidentes, mas as de sinal e realidade e de memorial.

Na linha de alguns estudos recentes, sobretudo o de L. Bouyer, gostaria de mostrar a vívida luz que é lançada sobre a Eucaristia cristã quando colocamos as narrativas evangélicas da instituição como pano de fundo do que sabemos da refeição ritual hebraica. A novidade do gesto de Jesus não parecerá diminuída, mas exaltada ao máximo.

O elo entre o antigo e o novo rito é dado pela Didaké, um escrito da era apostólica, que podemos considerar o primeiro esboço de anáfora eucarística. O rito sinagogal era composto por uma série de orações chamadas de “berakah”, que em grego é traduzido por “Eucarestia”. No início da refeição, cada um, à sua vez, tomava em mãos um cálice de vinho e, antes de levá-lo aos lábios, repetia uma bênção que a liturgia atual nos faz repetir quase literalmente no momento do ofertório: “Sê bendito, Senhor, nosso Deus, Rei dos séculos, que nos deste este fruto da videira”.

Mas a refeição começava oficialmente apenas quando o pai de família, ou o chefe da comunidade, tivesse partido o pão que devia ser distribuído entre os comensais. E, de fato, Jesus toma o pão, recita a bênção e o distribui dizendo: “Isto é o meu corpo...” E aqui, o rito ‒ que era apenas uma preparação ‒ torna-se a realidade.

Depois da bênção do pão, eram servidos os pratos de costume. Quando a refeição está prestes a terminar, os comensais estão prontos para o grande ato ritual que conclui a celebração e lhe dá o significado mais profundo. Todos lavam as mãos, como no início. Feito isto, tendo diante de si um cálice de vinho misturado com água, quem preside convida a fazer as três orações de agradecimento: a primeira a Deus criador, a segunda pela libertação do Egito, a terceira porque a sua obra continua no presente. Terminada a oração, o cálice passava de mão em mão e cada um bebia. Este, o rito antigo realizado por Jesus em vida.

Lucas afirma que, após ter ceado, Jesus tomou o cálice, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu Sangue, que é derramado por vós”. Algo de decisivo acontece no momento em que Jesus acrescenta estas palavras à fórmula das orações de agradecimentos, isto é, à beraká hebraica. Aquele rito era um banquete sagrado, no qual se celebrava e se agradecia a um Deus salvador, que tinha redimido o seu povo para estreitar com ele uma aliança de amor, concluída no sangue de um cordeiro. A refeição diária bendizia Deus por aquela Aliança, mas agora, no momento e, que Jesus decide dar a vida pelos seus como o verdadeiro cordeiro, ele declarou concluída aquela velha Aliança que todos juntos estavam celebrando liturgicamente.

Naquele momento, com poucas e simples palavras, ele estreita com os seus a nova e eterna Aliança no seu Sangue. Acrescentando as palavras “fazei isto em memória de mim”, Jesus confere um alcance duradouro ao seu dom. Do passado, o olhar se projeta ao futuro. Tudo quanto ele fez até agora na ceia é posto em nossas mãos. Repetindo aquilo que ele fez, renova-se aquele ato central da história humana, que é a sua morte pelo mundo. A figura do cordeiro pascal que, na cruz, torna-se evento, na ceia nos é dado como sacramento, isto é, como memorial perene do evento.

Sacerdote e vítima

Isto, dizia eu, no que se refere ao aspecto litúrgico e ritual. Passemos agora à outra consideração, àquela de tipo pessoal e existencial, em outras palavras, ao papel que desempenhamos nós, sacerdotes e fiéis, em tal momento da Missa. Para compreender o papel do sacerdote na consagração, é de vital importância conhecer a natureza do sacrifício e do sacerdócio de Cristo, pois é deles que deriva o sacerdócio cristão, seja o batismal comum a todos, seja o dos ministros ordenados.

Nós não somos mais, na realidade, “sacerdotes segundo a ordem de Melquisedec”; sosmos sacerdotes “segundo a ordem de Jesus Cristo”; sobre o altar, agimos “in persona Christi”, isto é, representamos Sumo Sacerdote que é Cristo. Sobre este tema, o Simpósio sobre o sacerdócio, acontecido nesta Sala no mês passado, disse infinitamente mais do que eu posso dizer nesta minha breve reflexão (preparada, além do mais, antes daquela data), mas é também necessário dizer algo aqui para a compreensão da Eucaristia.

A Carta aos Hebreus explica em que consiste a novidade e a unicidade do sacerdócio de Cristo: “Ele entrou no Santuário, não com o sangue de bodes e bezerros, mas com seu próprio sangue, e isto, uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna” (Hb 9,12). Todo sacerdote oferece algo de exterior a si mesmo, Cristo ofereceu a si mesmo; todo outro sacerdote oferece vítimas, Cristo se ofereceu vítima!

Santo Agostinho encerrou em poucas palavras a natureza deste novo gênero de sacerdócio, em que sacerdote e vítima são a mesma pessoa: “Ideo sacerdos quia sacrificium”, sacerdote porque vítima [3]. Um notável estudioso definiu esta novidade do sacrifício de Cristo como “o fato central na história religiosa da humanidade”, que pôs fim para sempre à intrínseca aliança entre o sacro e a violência [4].

Em Cristo, é Deus quem se faz vítima. Não são mais os seres humanos que oferecem sacrifícios a Deus para aplacá-lo e torná-lo favorável; é Deus quem sacrifica a si mesmo pela humanidade, entregando à morte por nós o seu Filho unigênito (cf. Jo 3,16). Jesus não veio com o sangue alheio, mas com o próprio sangue; não pôs os seus pecados sobre as costas de outros – animais ou criaturas humanas –, mas pôs os pecados dos outros sobre as suas costas: “Carregou nossos pecados em seu próprio corpo, sobre o lenho da cruz” (1Pd 2,24). Tudo isso significa que, na Missa, nós devemos ser ao mesmo tempo sacerdotes e vítimas.

À luz disso, reflitamos sobre as palavras da consagração: “Tomai, comei: isto é o meu corpo, que será entregue por vós”. Quero dizer, a este propósito, a minha pequena experiência, isto é, como cheguei a descobrir o alcance eclesial e pessoal da consagração eucarística. Eis como eu vivia o momento da consagração na santa Missa nos primeiros anos do meu sacerdócio: eu fechava os olhos, inclinava a cabeça, buscava alienar-me de tudo o que me circundava, para me identificar em Jesus que, no Cenáculo, pronunciou pela primeira vez aquelas palavras: “Accipite et manducate: Tomai, comei...”. A própria liturgia inculcava esta postura, fazendo pronunciar as palavras da consagração a baixa voz e em latim, inclinado sobre as espécies.

Em seguida, houve a reforma litúrgica do Vaticano II. Começou-se a celebrar a Missa olhando a assembleia; não mais em latim, mas na língua do povo. Isto me ajudou a entender que aquela minha postura, sozinho, não exprimia todo o significado da minha participação na consagração. Aquele Jesus do Cenáculo não existe mais! Existe o Cristo ressuscitado: o Cristo, para sermos exatos, que morreu, mas agora vive para sempre (cf. Ap 1,18). Mas estes Jesus é o “Cristo total”, Cabeça e corpo inseparavelmente unidos. Portanto, se é este Cristo total que pronuncia as palavras da consagração, eu também as pronuncio com ele. Eu as pronuncio, sim, “in persona Christi”, em nome de Cristo, mas também “em primeira pessoa”, isto é, em meu nome.

A partir daquele dia em que compreendi isso, comecei a não mais fechar os olhos no momento da consagração, mas a olhar – ao menos vez ou outra ‒ os irmãos que tenho diante, ou, se celebro sozinho, penso naqueles que devo encontrar durante o dia e aos quais devo dedicar o meu tempo, ou penso mesmo em toda a Igreja e, voltado para eles, digo com Jesus: “Tomai, todos, e comei: isto é o meu corpo, que quero dar por vós... Tomai, todos, e bebei: isto é o meu sangue, que quero derramar por vós”.

Em seguida, veio Santo Agostinho a tirar-me toda dúvida. “Naquilo que oferece, a Igreja oferece a si mesma” [5], escreve em uma famosa passagem do De civitate Dei. Mais perto de nós, a mística mexicana Concepción Cabrera de Armida, familiarmente chamada Conchita, falecida em 1937 e beatificada pelo Papa Francisco em 2019, ao filho jesuíta, prestes a ser ordenado sacerdote, escreveu estas palavras: "Lembre-se, meu filho, quando tiver na mão a Hóstia Sagrada, não dirá: 'Aqui está o corpo de Jesus, aqui está o seu sangue', mas dirá: 'Isto é o meu corpo, este é o meu sangue': isto é, um a transformação deve ocorrer em você total, você deve se perder nele, ser outro Jesus”.[6]

Tudo isso não se aplica apenas aos bispos e sacerdotes ordenados, mas a todos os batizados. Um famoso texto do Concílio assim se expressa:

“Os fiéis, por sua parte, concorrem para oblação da Eucaristia em virtude do seu sacerdócio real... Pela participação no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela; assim, quer pela oblação quer pela sagrada comunhão, não indiscriminadamente, mas cada um a seu modo, todos tomam parte na ação litúrgica” [7].

Há dois corpos de Cristo sobre o altar: há o seu corpo real (o corpo “nascido da Virgem Maria”, morto, ressuscitado e subido ao céu) e há o seu corpo místico, que é a Igreja. Contudo, sobre o altar, está presente realmente o seu corpo real e está presente misticamente o seu corpo místico, em que “misticamente” significa: por força da sua inseparável união com a Cabeça. Nenhuma confusão entra as duas presenças, que são distintas, mas inseparáveis.

Dado que há duas “ofertas” e dois “dons” sobre o altar – o que deve se tornar o corpo e o sangue de Cristo (o pão e o vinho) e o que deve se tornar o corpo místico de Cristo –, assim há também duas “epicleses” na Missa, isto é, duas invocações do Espírito Santo. Na primeira, reza-se: “Por isso, nós vos suplicamos: santificai pelo Espírito Santo as oferendas que vos apresentamos para serem consagradas, a fim de que se tornem o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo”; na segunda, que se recita após a consagração, reza-se: “sejamos repletos do Espírito Santo e nos tornemos em Cristo um só corpo e um só espírito. Que ele faça de nós uma oferenda perfeita”.

Eis como a Eucaristia faz a Igreja: a Eucaristia faz a Igreja, fazendo da Igreja uma Eucaristia! A Eucaristia não é apenas, genericamente, a fonte ou a causa da santidade da Igreja; é também a sua “forma”, isto é, o modelo. A santidade do cristão deve se realizar segundo a “forma” da Eucaristia; deve ser uma santidade eucarística. O cristão não pode se limitar a celebrar a Eucaristia, deve ser Eucaristia com Jesus.

O corpo e o sangue

Agora podemos tirar as consequências práticas desta doutrina para a nossa vida diária. Se, na consagração, também somos nós que dizemos, voltados aos irmãos: “Tomai, comei: isto é o meu corpo. Tomai, comei: isto é o meu sangue”, devemos saber o que significam “corpo” e “sangue”, para saber o que oferecemos.

A palavra “corpo” não indica, na Bíblia, um componente, ou uma parte, do homem que, unido aos outros componentes que são a alma e o espírito, forma o homem completo. Na linguagem bíblica e, portanto, na de Jesus e de Paulo, “corpo” indica o homem inteiro, na medida em que vive a sua vida em um corpo, em uma condição corpórea e mortal. “Corpo”, portanto, indica toda a vida. Ao instituir a Eucaristia, Jesus nos deixou toda a sua vida como um dom, desde o primeiro momento da encarnação até o último momento, com tudo o que preenchia concretamente aquela vida: silêncio, suor, fadigas, oração, lutas, humilhações...

Em seguida, Jesus diz: “Isto é o meu sangue”. O que acrescenta com a palavra “sangue”, se já nos deu toda a sua vida em seu corpo? Acrescenta a morte! Depois de nos ter dado a vida, ele também nos dá a parte mais preciosa dela, a sua morte. De fato, o termo “sangue”, na Bíblia, não indica uma parte do corpo, isto é, uma parte de uma parte do homem; indica um evento: a morte. Se o sangue é a sede da vida (assim se pensava então), seu “derramamento” é o sinal plástico da morte. A Eucaristia é o mistério do corpo e do sangue do Senhor, isto é, da vida e da morte do Senhor!

Agora, vindo a nós, o que oferecemos, oferecendo nosso corpo e nosso sangue, junto com Jesus, na Missa? Nós também oferecemos o que Jesus ofereceu: a vida e a morte. Com a palavra “corpo”, damos tudo o que constitui concretamente a vida que levamos neste mundo, a nossa experiência: tempo, saúde, energias, capacidades, afeto, talvez apenas um sorriso. O sorriso é algo que só um espírito que vive em um corpo pode fazer e é, às vezes, algo tão precioso. Com a palavra “sangue”, também nós expressamos a oferta da nossa morte. Não necessariamente a morte definitiva, o martírio por Cristo ou pelos irmãos. É morte tudo o que em nós, a partir de agora, prepara e antecipa a morte: humilhações, fracassos, doenças que imobilizam, limitações causadas pela idade, pela saúde, tudo isso, em uma palavra, que nos “mortifica”.

Tudo isso exige, contudo, que nós, assim que saímos da Missa, empenhemo-nos em cumprir o que dissemos; que realmente nos esforcemos, com todas as nossas limitações, para oferecer aos irmãos o nosso “corpo”, isto é, o tempo, as energias, a atenção; em uma palavra, a nossa vida. É preciso, portanto, que, depois de ter dito aos irmãos: “Tomai, comei”, nós nos deixemos realmente “comer”, e nos deixemos comer sobretudo por quem não o faz com toda a delicadeza e cortesia que esperaríamos. Santo Inácio de Antioquia, a caminho de Roma para aí morrer mártir, escrevia: “Sou trigo de Deus, serei triturado pelos dentes das feras para tornar-me o puro pão de Cristo” [8]. Cada um de nós, se olhar bem ao redor, verá esses dentes afiados de feras que ameaçam: são críticas, contrastes, oposições ocultas ou às claras, divergências de opiniões com quem está ao nosso lado, diversidades de caráter.

Tentemos imaginar o que aconteceria se celebrássemos a Missa com esta participação pessoal, se todos realmente disséssemos, no momento da consagração, quem em voz alta, quem em silêncio, segundo o ministério de cada um: “Tomai, comei”. Um sacerdote, um pároco e, mais ainda, um bispo, celebra assim a sua Missa, depois sai: reza, prega, confessa, recebe pessoas, visita doentes, escuta... Também o seu dia é Eucaristia. Um grande mestre espiritual francês, Pierre Olivaint (1816-1871), dizia: “De manhã, na Missa, eu sou sacerdote e Jesus é vítima; ao longo do dia, Jesus é sacerdote e eu, vítima”. Assim um sacerdote imita o “bom Pastor”, porque dá realmente a vida pelas suas ovelhas.

A nossa assinatura sobre o dom

Gostaria de resumir, com a ajuda de um exemplo humano, o que acontece na celebração eucarística. Pensemos em uma numerosa família na qual há um filho, o primogênito, que admira e ama sem medidas o próprio pai. Pelo seu aniversário, que dar-lhe um presente precioso. Antes de presenteá-lo, porém, pede secretamente a todos os seus irmãos e irmãs para pôr sua assinatura sobre o presente. Este chega às mãos do pai, portanto, como sinal de amor de todos os seus filhos, indistintamente, mesmo se, na realidade, apenas um pagou o preço dele.

É o que acontece no sacrifício eucarístico. Jesus admira e ama sem medidas o Pai celeste. A Ele, quer dar, cada dia, até o fim do mundo, o dom mais precioso que se possa imaginar, o da sua própria vida. Na Missa, ele convida todos os seus irmãos e irmãs a pôr a própria assinatura sobre o dom, de maneira que ele chegue a Deus Pai como dom indistinto de todos os seus filhos, ainda que apenas um tenha pagado o preço de tal dom. E que preço!

A nossa assinatura são as poucas gotas de água que são misturadas ao vinho no cálice. Não são mais do que água, mas, misturadas no cálice, tornam-se uma única bebida. A assinatura de todos é o solene Amém que a assembleia pronuncia, ou canta, ao término da doxologia: “Por Cristo, com Cristo, em Cristo, a vós, Deus Pai todo-poderoso, na unidade do Espírito Santo, toda a honra e toda a glória, agora e para sempre... AMÉM!”.

Sabemos que quem assinou um compromisso, tem o dever de honrar a própria assinatura. Isto quer dizer que, saindo da Missa, devemos fazer também nós da nossa vida um dom de amor ao Pai e aos irmãos. Nós, repito, não somos chamados apenas a celebrar a Eucaristia, mas também a nos fazer eucaristia. Que Deus nos ajude nisto!

Tradução de fr. Ricardo Farias, ofmcap

[1] Cf. Inácio de Antioquia, Carta aos Magnésios, 10,3.

[2] Cf. J. Ratzinger – Benedetto XVI, Gesù di Nazaret, vol. II, LEV, Roma 2011, p.132-163; cf. L. Bouyer, Eucharistie. Théologie et spiritualità de la prière eucharistique. Desclée, Tournai 1966 (trad. ital. Eucaristia. Teologia e spiritualità della Preghiera eucaristica, LDC, Torino 1983.

[3] Agostinho, Confissões, X,43.

[4] Cf. R. Girard, Des choses cachées depuis la fondation du monde, Grasset, Paris 1978.

[5] Cf. Agostinho, De civitate Dei, X, 6: “In ea re quam offert, ipsa [Ecclesia] offertur”.

[6] Diario spirituale di una madre di famiglia, a cura di M.-M. Philipon, Roma, Città Nuova, 1985, p. 117.

[7] Lumen gentium, 10-11.

[8] Cf. Inácio de Antioquia, Carta aos romanos, 4,1.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

São Cirilo de Jerusalém

S. Cirilo de Jerusalém | arquisp
18 de março

São Cirilo de Jerusalém

Desde o início dos tempos cristãos a heresia se infiltrara na Igreja, mas, foi no século IV, que ocorreram as do arianismo e do nestorianismo causando profundas divisões. Cirilo viveu nesse período em Jerusalém, perto de onde nascera em 315, de pais cristãos e bem situados financeiramente. Muito preparado, desde a infância, nas Sagradas Escrituras e nas matérias humanísticas, em 345, foi ordenado sacerdote.

Em 348, foi consagrado, bispo de Jerusalém. Ocupou o cargo durante aproximadamente trinta e cinco anos, dezesseis dos quais passou no exílio, em três ocasiões diferentes. A primeira porque o bispo Acácio, de grande influencia na Igreja, cuja obra foi citada por São Jerônimo, acusou Cirilo de heresia. A segunda por ordem do imperador Constâncio que entendeu ser Cirílo realmente um simpatizante dos hereges, mas em sua defesa atuaram os bispos, Atanásio e Hilário, ambos Padres da Igreja assim como o próprio bispo Cirilo o é. A terceira, foi a mais longa , porque o imperador Valente, este sim herege, decidiu mandar de volta ao exílio todos os bispos anistiados, fato que fez Cirilo peregrinar durante onze anos, por várias cidades da Ásia, até a morte do soberano, em 378.

O seu trabalho, entretanto resistiu a tudo e chegou até nossos dias e especialmente porque ele sabia ensinar o Evangelho, como poucos. Em sua cidade, logo que se tornou sacerdote e no início do episcopado era o responsável por preparar os catecúmenos, isto é, os adultos que se convertiam e iriam ser batizados. Foi nesse período que escreveu dezoito discursos catequéticos, um sermão, a carta ao imperador Constantino e outros pequenos fragmentos. Treze escritos eram dedicados à exposição geral da doutrina e cinco dedicados ao comentário dos ritos Sacramentais da iniciação cristã . Assim, seus escritos explicam detalhadamente os "como" e os "porquês" de cada oração, do batismo, da crisma, da penitência, dos sacramentos e dos mistérios do Cristianismo, ditos dogmas da Igreja..

Cirilo também soube viver a religião na prática. Numa época de grande carestia, por exemplo, não hesitou em vender valiosos vasos litúrgicos e outras preciosidades eclesiásticas, para matar a fome dos pobres da cidade. Ele morreu no ano 386.

Desde o início de sua vida religiosa, Cirilo cujo caráter era afável e suave, sempre preferiu a catequese aos assuntos polêmicos, chegando quase a se comprometer com os arianos e semi-arianos. Porém, de maneira contundente aderiu à doutrina ortodoxa da Igreja no III Concílio ecumênico de Constantinopla, em 382, no qual ficou clara sua sempre fiel postura à Santa Sé e à Verdade de Cristo. Nessa oportunidade teve em seu favor a eloqüência das vozes dos sinceros bispos e amigos, Atanásio e Hilário, que o chamaram "valente lutador para defender a Igreja dos hereges que negam as verdades de nossa religião".

Sua canonização demorou porque, durante muito tempo, seu pensamento teológico foi considerado vascilante, como dizem os registros. Em 1882, o Papa Leão XIII, na solenidade em que instituiu sua veneração, honrou São Cirilo de Jerusalém, com os títulos de doutor da Igreja e príncipe dos catequistas católicos.

*Fonte: Pia Sociedade Filhas de São Paulo Paulinas http://www.paulinas.org.br

https://arquisp.org.br/

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF