Redação (22/03/2022 12:19, Gaudium Press) Todos os dias nos levantamos, fazemos a higiene pessoal, tomamos nosso café, alguns rezam, outros não, e seguimos para a nossa rotina diária, que vai até o fim do dia, quando, após o jantar, nos deitamos novamente para dormir. Alguns sonham, outros não e, na manhã seguinte, nos levantamos, fazemos a higiene pessoal, tomamos nosso café…
Quase sempre, reclamamos de alguma coisa, seja do trânsito, do clima, das tarefas que temos a fazer, dos chefes, dos colegas de trabalho, dos familiares, dos atendentes das lojas ou dos supermercados, da falta de tempo, do cansaço, da política ou do sinal ruim da internet, que atrapalha a nossa fuga para o mundo virtual, onde tentamos acalmar as nossas mazelas nos vídeos, nos grupos de conversa fiada, nas redes sociais.
No entanto, nos últimos tempos, estamos sendo constantemente retirados de nossas zonas de conforto – ou de desconforto –, por acontecimentos pesados como a pandemia, que parece estar indo embora, e a guerra da Ucrânia, que vem substitui-la e já impacta o mundo todo. E, em circunstâncias como essas, é levantado o pesado véu de duras realidades que acabam nos conduzindo a verdadeiros cenários de filmes de horror.
Imagens de bombardeios, pessoas feridas, corpos sendo jogados em valas comuns, filas intermináveis de refugiados cruzando as fronteiras, crianças chorando: tudo isso nos causa doloroso impacto. Mas, há outros aspectos terríveis que, certamente, não chamariam a nossa atenção se não fossem desnudados pela guerra. Coisas seríssimas, mas que, por estarem acontecendo (aparentemente) longe, não possuem força suficiente para furar o cerco de nossa monótona vida de dias iguais e pequenas reclamações.
Mães de aluguel
Uma dessas coisas é o nefasto comércio de seres humanos que tem ocorrido em várias partes do mundo e do qual a Ucrânia é um dos principais mercados. Anualmente, são produzidas entre 2.000 e 2.500 crianças nessas condições naquele país, onde há cerca de 40 clínicas da chamada “gestação de substituição”, popularmente conhecida como “barriga de aluguel”. 90% dos contratantes são estrangeiros, o que, até o início da guerra, colocava o país como o principal destino do chamado “turismo reprodutivo”.
Há vários outros países que realizam legalmente esse procedimento imoral, como Reino Unido, Bélgica, Holanda, Grécia, Geórgia, República Checa, Estados Unidos, Austrália, Índia, Canadá, Colômbia. Porém, na Ucrânia, é mais barato. Um bebê, novinho em folha, está saindo por uma quantia entre 40 e 65 mil euros (algo entre 220 e 350 mil reais). Nos Estados Unidos, por exemplo, uma barriga de aluguel não sai por menos de U$ 110 mil, podendo chegar a U$ 130 mil (entre 540 e 650 mil reais).
O único fator que impedia que o negócio fosse ainda mais próspero na Ucrânia é que o país coloca algumas restrições: só aceita produzir filhos para casais heterossexuais, oficialmente casados e com problemas médicos de infertilidade. Nos Estados Unidos ou na Colômbia, por exemplo, essa exigência não existe, paga e leva quem tem dinheiro, independentemente de ser uma pessoa sozinha ou um casal do mesmo sexo.
Uma das etapas do processo desse tipo de reprodução é a fertilização in vitro, quando o óvulo é fecundado em laboratório e, após o período necessário para o amadurecimento do embrião – cerca de cinco dias – ele é transferido para o útero da mãe de aluguel. O óvulo a ser fecundado pode ser da mãe pagante ou obtido através de ovodoação (ou “ovovenda”, para ser mais exato, porque o verbo “doar” não tem aplicação prática nesse tipo de transação). Entra em cena, então, uma terceira mãe, que pode ser escolhida em um catálogo, de acordo com características como altura, peso, cor de cabelo e olhos, tipo de nariz, etc. Para dar mais pompa ao negócio, usam-se termos bonitos. Não se diz, por exemplo, “pagar à doadora”, mas, “dar a ela uma compensação”.
A guerra e a “mercadoria”
Mas, a guerra chegou e a situação se complicou. Recentemente, entre um bombardeio e outro, vimos notícias e imagens de 21 recém-nascidos em bercinhos de plástico, num abrigo improvisado num porão, nos arredores de Kiev. Quem são essas crianças? Onde estão as suas famílias? As mães que alugaram os seus úteros para que elas fossem gestadas provavelmente fugiram ou estão tentando fugir para salvar as suas vidas, e os pais que encomendaram a “mercadoria” estão em várias partes do mundo, amargando o desespero de terem perdido o seu investimento e talvez nunca poderem tirar os bebês daquele país. São os filhos de ninguém, que simplesmente, foram deixados para trás.
Tudo isso lhe parece terrível? Calma, tem mais! Como o aborto é legal naquele país, após a invasão da Rússia (onde o aborto também é legal) as agências de barriga de aluguel estão pedindo para as grávidas abortarem, pois sabem que a situação de conflito não garante a finalização dos contratos e, sem a entrega dos bebês saudáveis e em perfeitas condições, não há pagamento, logo, o negócio está sofrendo um grande golpe!
Um grande problema, não é mesmo? Muitos estão preocupados com a situação das mulheres ucranianas, que agora carregam na barriga filhos que não são seus, e com os quais foram treinadas para não estabelecer vínculos de afetividade. Elas precisam deixar o país por causa da guerra, então, ou abortam ou deixam nascer as crianças que não são delas e pelas quais elas provavelmente não receberão, pois nem todos os contratantes poderão se dirigir ao país para buscar a encomenda.
Cabe lembrar que, do montante informado, apenas uma pequena parte é dada como pagamento ou “compensação” às donas dos úteros alugados. O preço por esse “trabalho” vai de 8 a 10 mil euros (entre 40 e 50 mil reais), e não há qualquer garantia de que elas receberão o valor estipulado ou de que alguém se responsabilizará por esses bebês se algo der errado. E deu.
Outros lamentam o sofrimento dos “pais” que contrataram os serviços. Casais de diversas partes do mundo que, por não aceitarem as condições impostas a eles pela vida, decidiram fazer do seu jeito e gastar o seu dinheiro comprando bebezinhos bonitinhos, gestados num país que agora sofre uma terrível invasão. Eles seguem as regras do livre comércio, afinal, o dinheiro é deles e gastam como quiserem… Até não muito tempo atrás, compravam-se escravos para os serviços domésticos ou das lavouras; hoje, compram-se filhos. E, tanto naquela época, como agora, tudo parece absolutamente normal.
Filhos de Deus
A minha preocupação não é com nenhuma dessas pessoas, que usam o seu livre-arbítrio para fazerem aquilo que acham que é certo, seja comprar ou seja vender/alugar, sem dar muita importância para valores éticos e morais. A minha preocupação é com as crianças. Elas não são coisinhas, não são brinquedinhos. São seres humanos, são filhos de Deus, são nossos semelhantes, e agora estão lá, sem culpa nenhuma, esquecidos, sem nome, sem carinho, sem calor humano, sem amamentação, sem cuidados adequados e sem qualquer segurança de que serão levadas para o destino a elas reservado.
Minha preocupação é com esses e com tantos outros que ainda estão em alguma barriga, mas que, em breve, não passarão de vísceras e que não merecerão nem mesmo a vala comum onde estão sendo jogados os cadáveres das pessoas mortas nos bombardeios.
É revoltante escrever sobre isso e, há cinco dias, eu estou procrastinando esta tarefa, porque me revira o estômago, altera os meus batimentos cardíacos e dilacera a minha alma, fazendo nela um estrago maior do que as bombas que derrubam prédios históricos nas cidades ucranianas e que o mundo inteiro lamenta.
De acordo com a agência BioTexCom, responsável por 25% desse hediondo comércio, entre 200 e 300 mães de aluguel devem dar à luz nos próximos três meses. Essa empresa é a dona dos 21 bebês que mencionamos acima, que estão num bunker no subúrbio de Kiev, sendo cuidadas por seis funcionárias da empresa.
O rico comércio já tinha sido prejudicado durante a pandemia, quando cerca de 1.000 bebês não puderam ser retirados da Ucrânia, muitos deles indo parar em abrigos, para uma possível adoção, ou sabe-se lá que triste fim.
Preocupação só com o dinheiro?
A clínica IVMED está preocupada com a parte logística da matéria-prima para a fabricação de gente, e informou que já transportou 17 armazéns congelados, com 12.000 embriões e óvulos armazenados, da zona de guerra para países vizinhos. Claro está que a preocupação é com os lucros e a manutenção do negócio após o fim do conflito.
Talvez as pessoas devessem tirar, por um tempo, a capa de herói que foi colocada sobre as costas do presidente Volodymyr Zelensky e transferi-la para pessoas como essas moças que permanecem naquele porão, cuidando dos bebês, dentro das condições possíveis, enquanto ouvem as bombas caindo ao redor.
Duas delas disseram a um repórter francês que não tiveram coragem de fugir e abandonar os recém-nascidos. Antonina Yefimovich, que é mãe de duas meninas, contou que a sua família já deixou o país, mas que ela não vai fazer a mesma coisa, porque se sente responsável pelos bebês, que “são indefesos e precisam de cuidados”. Ela disse ainda que tem muita esperança que, ao final de tudo isso, os “pais” consigam ir buscar as crianças.
A Igreja, obviamente, tem uma posição totalmente contrária a essa prática, que trata como mercadoria não apenas a criança, mas também a mãe, que comercializa o próprio corpo. Embora se solidarize com o sofrimento das mulheres afetadas pela esterilidade, a Igreja se opõe à descriminalização das barrigas de aluguel, cuja prática se baseia na instrumentalização do corpo feminino, transformando-o em ferramenta de produção, o que fere a dignidade humana.
Embora se possa argumentar que a mulher que aluga o seu corpo o faz de forma voluntária e perfeitamente consciente, a prática da barriga de aluguel contradiz o princípio de indisponibilidade do corpo, conceito que nos preserva da mercantilização do corpo humano e tenta evitar que os mais pobres sejam tentados a abdicar da sua dignidade vendendo o único bem que possuem: o próprio corpo. E, para quem argumente que não se trata de um comércio e sim de ajuda a mulheres estéreis, a Igreja leva ao questionamento: você já viu mulheres ricas emprestando seus úteros a mulheres pobres?
Podemos pensar sobre a situação econômica precária que leva uma mulher a aceitar esse tipo de “ocupação” em troca de dinheiro, ou no desvario dos casais que são capazes de fazer qualquer coisa para ter um filho e, provavelmente, pagariam pelo aluguel de uma máquina, se já tivesse sido inventada uma capaz de gestar crianças. E, claro, é quase impossível não nos comovermos com a situação desses indefesos bebês.
Justiça divina
No entanto, há uma dor mais profunda e muito maior do que todas essas. E é nessa dor que eu sugiro que cada um pense. Refiro-me à dor da Mãe de todas as mães. Pensem nas lágrimas e no sofrimento de Nossa Senhora diante desta situação.
Em uma de suas aparições, Ela disse que segurava o braço do Seu filho, numa tentativa de adiar os castigos e nos dar mais algum tempo para nos emendarmos e nos convertermos. Porém, o seu lamento, diante de tamanhas tragédias, é tão grande e suas lágrimas tão abundantes que talvez ela precise usar as duas mãos para enxugar seu rosto, deixando, assim, de ter meios de segurar o braço da justiça de Deus, que estará, então, desimpedido para fazer o que precisa ser feito.
Aí, sim, haverá choro e ranger de dentes, e isso incluirá a cada um de nós, que nos conformamos em tratar como normal os mais gritantes absurdos ou, simplesmente, não nos importamos, porque precisamos acordar de manhã, fazer a higiene pessoal, tomar nosso café e adormecer novamente, reclamando por bagatelas, enquanto, no mundo, se instala o caos, pintado de suaves cores e enfeitado com os sorrisos de crianças rosadinhas e lindas, os filhos de ninguém, que hoje, em meio a uma guerra insana, simplesmente, estão sendo deixados para trás.
Por Afonso Pessoa
Fonte: https://gaudiumpress.org/