|
Ressuscitou | Com. Cat. Shalom |
4.
RESGATANDO SÃO TOMÉ
Coração
valente
São Tomé
é uma figura que costuma ser apresentada como símbolo do ceticismo: Já há até
uma frase feita: “Ver para crer, como Tomé”. E, no entanto, Tomé é um dos
personagens mais comoventes do Evangelho. Vamos procurar compreender, nesta
meditação, que, em boa parte, Tomé é um injustiçado. Como é que era mesmo Tomé
na realidade? Que nos diz dele o Evangelho?
Para
começar o “resgate” de Tomé (que resgata os bons exemplos que nos dá), é
preciso dizer que, dele, sabemos uma coisa certa, e é que foi um dos idealistas
que, deixando todas as coisas, seguiram Jesus. Portanto, confiava
em Jesus, acreditava nele – senão, não teria largado tudo e apostado nele – ;
além disso, tinha-lhe amor, pois ninguém se entrega nas mãos de uma pessoa que
lhe é indiferente; e era generoso.
Logicamente
era humano, e, portanto, tinha fraquezas como aliás todos os Apóstolos, como
todos nós. Mas, antes da Paixão de Jesus, o Evangelho mais nos mostra nele
fortaleza que fraqueza. Refiro-me àqueles momentos críticos – pouco antes da
Paixão – , em que Jesus já era perseguido de morte em Jerusalém e teve de
retirar-se para além do Jordão, juntamente com os Apóstolos, porque ainda não
tinha chegado a sua hora. O que lá aconteceu é tocante…
Naquele
lugar retirado, Jesus recebeu o recado de Marta e Maria, pedindo-lhe que fosse
de novo a Jerusalém (a Betânia, pertíssimo de Jerusalém), porque seu irmão
Lázaro estava muito doente: Senhor, aquele que amas está enfermo.
Jesus, no entanto, deixou-se ficar ali ainda dois dias. Mas, de repente,
disse: Voltemos para a Judéia. Isso assustou os discípulos: Mestre –
disseram-lhe –, há pouco os judeus te queriam apedrejar, e voltas para
lá? Jesus não ligou, e disse-lhes abertamente que Lázaro já tinha
morrido, mas –acrescentou – vamos a ele. Todos ficaram gelados,
pensando que aquilo era pôr-se na boca do lobo…
Todos
menos um! Tomé! Só ele, cheio de coragem, foi capaz de dizer aos seus
condiscípulos: Vamos também nós, e morramos com ele! Estava
disposto a morrer com Jesus, por Jesus. Como vemos, no coração de Tomé não há
nada de covardia, nem de dúvidas, nem de vacilações.
Coração
sincero
E ainda
há um outro traço do caráter de Tomé que o Evangelho põe em relevo.Tomé era um
homem que era sincero e gostava da objetividade. Não era daquele tipo de homens
que são “objetivos” só para pôr dificuldades, tirar o corpo e dizer que não dá
(“sou realista”, dizem, e, na realidade, são pessimistas ou comodistas). Ele
gostava da objetividade para entender melhor as coisas e, assim, poder agir
melhor e resolver melhor os assuntos. Isso não diminuía nem um pouco a fé que
tinha em Jesus. Tomé unia a fé ao realismo, um binômio excelente em
si mesmo…, mas que pode desequilibrar-se, e então se torna perigoso (como logo
veremos). É algo que fica bem claro na Última Ceia.
Naquela noite
da Quinta-feira Santa, Jesus estava despedindo-se dos seus discípulos, e
consolava-os com infinita ternura dizendo-lhes: Não se perturbe o vosso
coração. Na casa de meu Pai há muitas moradas …; vou preparar-vos um lugar.
Depois de ir e vos preparar um lugar, voltarei e tomar-vos-ei comigo… E vós
conheceis o caminho para onde eu vou. Neste ponto interveio Tomé, com
a sua franqueza um pouco brusca, mas cheia de confiança em Jesus: Disse-lhe
Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos saber o caminho? Jesus
não levou a mal essa pergunta nem a achou indelicada. Ao contrário, tomou pé
dela para dizer umas palavras que ficarão para sempre gravadas no coração do
cristão: Jesus respondeu-lhe: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida;
ninguém vai ao Pai senão por mim”.
Mas houve
um outro momento crucial, em que esse realismo franco de Tomé… espanou. Foi
após os acontecimentos perturbadores da Paixão, quando Jesus já havia
ressuscitado (e daí vem a “má fama” de Tomé).
Lembremos
o que aconteceu. Na tarde do domingo de Páscoa, em que Jesus apareceu aos
Apóstolos no Cenáculo, Tomé – diz o Evangelho – não
estava com eles. Ou seja, não viu Jesus. Provavelmente, chegou bem mais
tarde, naquela noite, ou então só voltou à casa no dia seguinte. Podemos
imaginar que chegou ao Cenáculo triste, com olheiras de pouco dormir e o ricto
amargo na boca de muito sofrer. Pois bem, mal acabava de subir a escada até o
segundo andar – a sala de cima –, quando os outros que lá estavam
se lhe atiraram em cima, agitadíssimos, dizendo: Vimos o Senhor!
Pobre
Tomé! Aquela enxurrada de entusiasmo, totalmente inesperada, caiu-lhe como um
golpe de malho na cabeça. Deixou-o atordoado. Eu o imagino de olhos arregalados,
assustado com a estranha euforia dos outros, balbuciando: “Estão loucos! Vocês
perderam o juízo?” E o bom Tomé, o sofrido Tomé, o franco Tomé, de repente
embirrou. A sua tendência para o realismo e a objetividade saiu dos eixos,
extrapolou em casmurrice e desequilibrou-se: Mas ele replicou-lhes: Se
não vir nas suas mãos o sinal dos pregos, e não puser o meu dedo no lugar dos
pregos, e não introduzir a minha mão no seu lado, não acreditarei! Emburrou,
e não havia modo de fazê-lo sair atitude fechada.
O amor
que faz duvidar
Vemos
nessa atitude só um defeito? Será que não poderíamos pensar que era tão grande
o carinho de Tomé por Jesus, que não aguentava pensar sequer na possibilidade
de que houvesse um engano? Não tinha coragem para deixar que a sua esperança
subisse a mil por hora como um foguete, na crença de que Jesus vivia, para
depois cair vertiginosamente e espatifar-se no chão, na decepção. E se tudo não
passasse de histeria dos amigos? Não esqueçamos que, às vezes, a alegria dá
medo. Temos tanto receio de embarcar numa alegria grande que depois nos possa
decepcionar! Por isso, quando desejamos muito, muito mesmo, uma coisa que nos
promete enorme alegria, temos a tendência instintiva de começar a pensar nas
coisas “ruins” que poderão acontecer: vai surgir um imprevisto, vai falhar na
última hora, vou chegar atrasado, não vai dar certo…
Isso pode
explicar a reação negativa de Tomé. No entanto, é preciso reconhecer que houve
mesmo uma falha. De fato, Jesus teve de corrigi-lo… E, do erro dele, nosso Senhor
quis que nós aprendêssemos. Ele sempre tira o bem de tudo, mesmo do mal.
Em que
consistiu seu erro? Naquela hora decisiva, faltaram-lhe a fé e a esperança
sobrenaturais. Tomé quis ser tão realista, tão terra-a-terra – para se garantir
– , que só ficou vendo o que tinha debaixo dos pés e na ponta do nariz. Isto é
o que acontece com todos os que se chamam a si mesmos “realistas”, gente de “pé
no chão”, “experientes” e “conhecedores da vida” …, e se esquecem de que a
coisa mais “realista” que há no mundo é a presença viva de Deus, o seu poder e
a sua ação amorosa… e muitas vezes inesperada e desconcertante.
Um
realismo que se torna pessimismo
É
interessante observar que todos os pessimistas se chamam a si mesmos realistas
e desprezam os “sonhadores” (assim chamam aos que vivem da fé), como se fossem
ingênuos ou tolos. Felizmente, nós cremos no Deus da esperança, e
por isso somos necessariamente otimistas.
Cristo
quer, sem dúvida, que vivamos uma vida realista, mas contando com o “fator”
mais real de todos, que é Ele e a força assombrosa do seu amor e da fidelidade
às suas promessas. Assim o expressa, de maneira maravilhosa, a Carta aos
Hebreus: A fé é o fundamento das coisas que se esperam, é uma
certeza a respeito do que não se vê. Foi ela que fez a glória dos nossos
antepassados. A falta desta fé no amor e nas promessas de Deus traz
consigo a falta da esperança que a fé deveria gerar. Este foi o motivo da
repreensão afetuosa que Jesus deu a Tomé. E deu-a com razão, pois Tomé não
soube pôr toda a sua fé nas promessas anteriores de Cristo – voltarei a
vós…., ao terceiro dia o Filho do homem ressuscitará… –; e não
deu crédito ao testemunho dos outros Apóstolos que, por ser unânime, merecia
confiança.
Mas a
repreensão de Jesus, como todas as suas palavras e atos, é uma grande luz para
a nossa alma. Vejamos o que diz o Evangelho:
Oito dias
depois (da
aparição aos Apóstolos no dia da Páscoa), estavam os seus discípulos
outra vez no mesmo lugar e Tomé com eles. Estando trancadas as portas, veio
Jesus, pôs-se no meio deles e disse: “A paz esteja convosco” … Podemos
imaginar a cara de espanto do nosso Tomé… O seu coração deve ter ficado
acelerado, quase que a estourar-lhe o peito, quando Jesus se dirigiu
pessoalmente a ele. Depois, Jesus disse a Tomé: “Introduz aqui o teu
dedo, e vê as minhas mãos. Põe a tua mão no meu lado, e não sejas incrédulo,
mas homem de fé! E, apanhando a mão de Tomé, fez como estava dizendo.
A reação
de Tomé, caindo em lágrimas aos pés de Jesus, foi esplêndida: Respondeu-lhe
Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!” Ele, que tinha duvidado, acabou fazendo
o maior ato de fé até então pronunciado por qualquer dos Apóstolos: um ato de
fé absolutamente explícita, luminosa, na divindade de Cristo: Meu
Deus! E Jesus encerrou a questão, pensando em nós, em todos os que
haveríamos de ser os seus discípulos, no decorrer dos séculos: Creste
porque me viste. Felizes aqueles que creem sem terem visto!
O lado
luminoso da lição de Tomé
É como
se, com as palavras que dirigiu a Tomé, Cristo nos perguntasse: “Você crê mesmo
em mim?” “Você, por crer em mim, sabe esperar nas coisas que não se veem,
que só se preveem com a fé, sabe esperar nas coisas que Deus
quer, mas que os “realistas” chamam “impossíveis?” Vale a pena lembrar o que
escreve São Paulo: Porque pela esperança é que fomos salvos. Ora, ver o
objeto da esperança já não é esperança; porque o que alguém vê, como é que
ainda o espera?[1]
Deus –
por assim dizer – “desafia-nos” a viver de esperança, a saber esperar do seu
amor coisas grandes que não vemos, coisas que nos parecem impossíveis, mas que
Ele nos quer dar. Mesmo diante das maiores dificuldades, todos podemos dizer
com São João: Nós conhecemos o amor de Deus, e acreditamos nele.
O
“realismo” cristão está feito de fé, de audácia e de magnanimidade. O
nosso realismo é a esperança. Aí está o segredo do
otimismo do cristão. É preciso que, aquecidos pela fé, pelo amor e
pela esperança, saibamos apontar alto, apontar para coisas grandes, para
ambições santas, e confiar plenamente em Deus. A mulher de fé, o homem de fé,
confia sobretudo em dois pilares fortíssimos sobre os quais se apoia a
esperança cristã: a obediência a Deus (fazer o que sabemos que
Deus nos pede), e a oração (pedir com a fé com que um filho
pede a um pai de cujo amor não duvida). Apoiada na obediência e na oração, a
nossa esperança ficará, como diz o Livro da Sabedoria”, cheia de
imortalidade.
Há alguns
exemplos, no Evangelho, que ilustram tudo isto muito bem. Hoje vamos focalizar
apenas um deles, que é especialmente claro e tocante.
Generosidade
e esperança
Todos nos
lembramos, provavelmente, da passagem do Evangelho que narra a primeira multiplicação
dos pães. E talvez tenhamos presente a figura encantadora daquele
menino – de que fala São João no capítulo sexto do seu Evangelho –,
que colaborou com o milagre.
Mais de
cinco mil pessoas estavam certa vez em um lugar afastado, ouvindo Jesus. Passou
o tempo e sentiram fome. Percebendo isso, o Senhor disse aos Apóstolos que lhes
dessem de comer. Mas como poderiam fazê-lo? Não havia nem pão nem dinheiro para
comprá-lo. De repente, André apareceu trazendo pela mão um garoto, que estava,
ao mesmo tempo, feliz e meio encabulado: “Eu posso dar – assim deve ter falado
o menino a André – cinco pães de cevada e dois peixes”. Ao vê-lo, Jesus sorriu,
pegou os pães e os peixinhos, e deu a entender a todos que tudo estava
resolvido. Mandou sentar na relva todo o mundo, pediu aos Apóstolos que repartissem
os cinco pães e os dois peixes e … comeram todos à vontade e ainda sobraram
doze cestos! Um milagre apoiado num “impossível”, numa oferenda pequena, mas
cheia de amor, de generosidade…
Não é
clara a mensagem? Cristo – com esse milagre – diz-nos: “Não desanime se acha
que não tem meios para resolver os problemas, para sair de uma situação de
pecado, para ajudar um filho ou um amigo, se acha que não tem capacidade para
aliviar as necessidades de tantas pessoas que carecem de tudo e sofrem; ou para
fazer apostolado; ou que não tem forças para adquirir determinadas virtudes.
Tenha confiança em mim, e faça da sua parte o que puder, ainda que seja
pouquinho…; mas que seja tudo o que pode mesmo, como o menino
que deu tudo o que tinha. O resto – acrescenta Jesus – é comigo.
Concluindo
esta meditação, não vemos que o maior e melhor realismo do mundo é ter fé e
confiança em Deus? As pessoas que agem “como se Deus não existisse, ou não
visse, ou não amasse” caem na e mais trágica falsificação da realidade.
As pessoas que ainda não perceberam que a oração é infinitamente mais forte que
a energia atômica e que o poder quase ilimitado do dinheiro, estão fora da
realidade. As pessoas que não percebem que a maior garantia de que receberão os
dons de Deus é obedecer a Deus – obedecendo ao seu Evangelho e à sua santa
Igreja – estão fora da objetividade. Não nos deixemos dominar nunca – ainda que
a nossa vida atravesse momentos muito difíceis – por uma visão acanhada e
míope. Peçamos a Tomé que nos ajude a ser os “realistas da esperança”, que com
certeza ele nos acudirá. Tem experiência…
______________________________
[i] São Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, n. 313
Fonte: https://presbiteros.org.br/