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8. SÃO
PAULO, MESTRE DA LUTA ESPIRITUAL
Um olhar
humilde e agradecido
São Paulo, no final da primeira Carta aos Coríntios, após falar das diversas
aparições de Cristo e evocar o seu encontro com Jesus ressuscitado às portas de
Damasco, diz com humildade: E, por último de todos, apareceu também a
mim, como a um abortivo. Porque sou o menor dos Apóstolos, e não sou digno de
ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus… (1 Cor
15,8-9).
São Paulo é uma testemunha excepcional da Ressurreição de Jesus.
Para ele, o fato decisivo, que transformou toda a sua vida, foi o encontro
pessoal que teve com Cristo ressuscitado às portas de Damasco (At 9,1ss.).
Paulo, por mais que passassem os anos, nunca se esquecia de que fora um
perseguidor dos cristãos, de quem Jesus teve misericórdia, e de que Cristo o
escolheu, sem mérito algum da sua parte, para fazê-lo Apóstolo. Não se sentia
digno disso. Comparando-se com os outros Apóstolos, via-se a si mesmo como
um aborto, como o mais indigno… Ele mesmo dirá que Deus
escolheu o que é fraco no mundo para confundir os fortes; e o que é vil e
desprezível no mundo, como também aquelas coisas que nada são, para destruir as
que são. Assim, nenhuma criatura se vangloriará diante de Deus (1 Cor
1,27-29).
É importante ter presente essa sua declaração, totalmente sincera, de ser nada, o último,
para avaliar melhor o que afirma a seguir, após aquelas palavras: não
sou digno de ser chamado apóstolo. Textualmente, diz: Mas,
pela graça de Deus, sou o que sou, e a graça que Ele me deu não tem sido
inútil. Ao contrário, tenho trabalhado mais do que todos eles; não eu, mas a
graça de Deus que está comigo (1 Cor 15-10). Não parece
que agora, de repente, Paulo fica orgulhoso, convencido e arrogante, ao
dizer: Tenho trabalhado mais do que todos eles, do que todos
os outros Apóstolos…? Que significa isso?
Significa que São Paulo era humilde de verdade, e não de fachada: porque a
humildade é a verdade – como gostava de lembrar Santa Teresa de Ávila –, e São
Paulo não se gaba de nada. Está feliz de poder louvar a Deus que, com a
sua graça o tornou, mesmo sendo o menor, capaz de trabalhar
por Cristo com uma eficácia inexplicável, enorme. Ele agradece, comovido, e
sabe bem que tudo é puro dom de Deus: Pela graça de Deus sou o que sou…
Tenho trabalhado…, não eu, mas a graça de Deus comigo. Fica bem claro.
A
humildade e a esperança
Estamos aqui perante um paradoxo, que faz parte da essência da
vida cristã, ainda que pareça um contra-senso. O paradoxo é que, ao mesmo tempo
que – com muita humildade – devemos considerar que não somos capazes de
fazer nada, devemos esforçar-nos e trabalhar como quem é capaz
de tudo, porque confiamos na graça que Deus nos dá. Toda a vida
cristã – toda a santidade – consiste em saber conjugar a graça de Deus e a
nossa correspondência, a humildade com a luta cheia de esperança.
O próprio Jesus, por meio da comparação
da videira e das varas, nos disse que, por nós mesmos, somos incapazes da fazer
nada, nada que tenha valor aos olhos de Deus, nada que santifique, nada que
valha para a vida eterna.: Eu sou a videira, vós os ramos. Quem
permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis
fazer (Jo 15,5)
São Paulo estava tão consciente disso que podia escrever, falando da sua
vocação de Apóstolo: Deus fez brilhar a sua luz [a luz
da fé] em nossos corações, para que irradiássemos o conhecimento do
esplendor de Deus, que se reflete na face de Cristo [para que déssemos
a conhecer a luz da verdade de Cristo]. Porém –continua -, temos
este tesouro em vasos de barro, para que transpareça claramente que este poder
extraordinário vem de Deus e não de nós (2 Cor 4,6-7). Sem a graça,
Paulo sabe que não tem nada, não pode nada e não é nada. Isto ele sentiu-o, de
uma maneira muito especial, num momento dramático de sua vida.
“Basta-te
a minha graça”: as fontes da graça
Abrindo a alma aos coríntios, o Apóstolo conta-lhes que houve um momento em que
quase se desesperou. A par de muitas graças de Deus, experimentou também muitas
limitações, dificuldades e sofrimentos. De modo especial, o fez sofrer um tipo
de fraqueza física ou de doença, que nós não conhecemos exatamente, mas que a
ele o apavorava, porque achava que ia impedi-lo de continuar a trabalhar no
apostolado. Como sofria! Era um desespero! Comparava esse mal a um anjo
de Satanás, que me esbofeteia, para me livrar do perigo da vaidade. E
dizia: Três vezes roguei ao Senhor que o apartasse de mim. Mas Ele me
disse: “Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a
minha força” … Portanto, prefiro gloriar-me nas minhas fraquezas, para
que habite em mim a força de Cristo (2 Cor, 12,7-9).
Bem claramente se vê a consciência que tinha de que, sem a graça de Deus, não
podia nada. Sentia-se um zero absoluto. Que fazia, então? Porventura ficava
passivo, esperando que a graça descesse do Céu sobre ele? Não. Fazia duas
coisas, que todos os cristãos deveríamos fazer. Primeira: procurava
constantemente a graça nas suas fontes. Segunda: lutava com
todas as suas energias para corresponder às graças que Deus
lhe concedia. É muito bonito e ilustrativo recordar algumas das recomendações
que fazia aos seus discípulos, porque refletem o que acabamos de lembrar.
Numa das suas primeiras cartas, dizia aos tessalonicenses: Vivei
sempre contentes. Orai sem interrupção…orai também por nós (1 Tes
5,16-17.25). Sentia a necessidade da oração constante, sem pausas,
lembrando-se de que Deus vincula muitas das suas graças à oração – Pedi
e recebereis! (Mt 7,7) –, e que o próprio Cristo tinha
insistido na necessidade de orar sempre e não desfalecer (Lc
18,1). Também dizia aos filipenses: Não vos inquieteis com coisa
alguma! Em todas as circunstâncias apresentai a Deus as vossas preocupações,
mediante a oração, as súplicas e a ação de graças (Fil 4,6). E,
aos romanos: Sede alegres na esperança, pacientes na tribulação e
perseverantes na oração (Rm 12,12). Tinha a certeza de que, com a
oração, tudo se alcança de Deus, tudo o que nos é necessário para vivermos como
bons filhos de Deus e para superar o que nos quer afastar dessa vida santa.
Na mesma carta aos romanos, Paulo usa uma expressão muito sugestiva. Compara a
oração a uma grande arma de combate: Rogo-vos, irmãos, em nome de nosso
Senhor Jesus Cristo e do amor que é dado pelo Espírito Santo, combatei comigo,
dirigindo as vossas orações a Deus por mim (Rm 15,30). O
Catecismo da Igreja pode falar, por isso, do “combate da oração” (n. 2725).
A oração é tão importante, tão fundamental, que Santo Afonso Maria de Ligório chegava
a dizer: Quem reza certamente se salva; quem não reza certamente se
condena.
Além dessa insistência na necessidade da oração, São Paulo afirma também, de
uma maneira impressionante, que os que desprezam a graça da Comunhão, por
tratarem com desrespeito a Eucaristia, por comungarem mal, ficam doentes
espiritualmente e morrem, perdem a vida divina: Esta é a razão por que
entre vós há muitos adoentados e fracos, e muitos mortos (1 Cor 11,30). Lembrava-se
muito bem de que Jesus afirmara taxativamente, falando da Eucaristia: Este
é o pão que desceu do céu… Quem come deste pão viverá eternamente, e Se
não comerdes a carne do Filho do Homem…não tereis a vida em vós mesmos (Jo
6, 51 e 53).
Ao lado dessa exortação a tirar forças desse alimento eucarístico, que é o
próprio Cristo, São Paulo não deixava de recordar aos fiéis a necessidade de
estar em estado de graça para comungar; algo que é extremamente importante
lembrar nos dias de hoje: Que cada um se examine a si mesmo, e assim
coma deste pão e beba deste cálice. Aquele que o come e o bebe indignamente,
sem distinguir o Corpo do Senhor, come e bebe a sua própria condenação (1
Cor 11, 27-29). É forte, mas a Igreja sempre fez eco a essas palavras
inspiradas pelo Espírito Santo: Examine-se cada um a si mesmo… E,
se reconhecer que está afastado de Deus por algum pecado grave, um pecado
mortal, vá confessar-se quanto antes e, sem dúvida, confesse antes de
comungar.
O ensinamento de São Paulo deixa bem claro que, para vivermos bem a vida dos
filhos de Deus, precisamos absolutamente da graça divina – da graça do Espírito
Santo – que conseguimos por meio dos sacramentos – especialmente da Penitência
e da Eucaristia –, e por meio da oração e do amor a Deus com que fazemos as
coisas. Essas são as três grandes fontes da graça: os Sacramentos,
a eficácia impetratória da oração e o mérito sobrenatural das boas obras
realizadas por amor a Deus.
A luta
ascética do cristão
Estivemos vendo a necessidade da graça. Vamos considerar agora o segundo “pólo”
do paradoxo de que falávamos acima: a necessidade de lutarmos sinceramente
para corresponder à graça que Deus nos dá.
Sobre essa segunda “necessidade” – a necessidade de lutar, além de rezar – ,
São Paulo é mestre, e mestre genial. Já recordamos que ele dizia, após
considerar-se nada: Mas, pela graça de Deus sou o que sou, e a graça
que Ele me deu não tem sido inútil. Ao contrário, tenho trabalhado – tenho
lutado – mais do que todos eles. Esse homem de garra fala
sempre da luta do cristão como de um desafio otimista, como de uma competição
atlética ou esportiva. Como nos faz bem lembrar-nos disso e decidir-nos também
nós a ser “lutadores” – no esforço por melhorar – , cheios de otimismo e
espírito esportivo. Não vemos que é assim que se manifesta a nossa esperança na
graça de Deus? Se não tivéssemos essa confiança na ajuda de Deus, não
lutaríamos, largaríamos tudo.
Vamos, pois, meditar sobre um par de trechos dos mais “esportivos” de São
Paulo. Podemos começar com aquele que fala do estádio olímpico. São Paulo
está escrevendo aos coríntios (que, por sinal, lhe deram muito trabalho), e
diz-lhes: Nas corridas de um estádio, todos correm, mas bem sabeis que
um só recebe o prêmio. Correi, pois, de tal maneira que o alcanceis… Assim
corro eu, mas não sem rumo certo. Dou golpes [aqui pensa nos
pugilistas], mas não no ar… (1 Cor 9,24-27).
Quantas sugestões não contêm essas
palavras! Não é verdade que, muitas vezes, nos sentimos espiritualmente
parados, estagnados? Os nossos defeitos, em vez de diminuir, parece que
aumentam. Não falo agora dos que se despreocupam da perfeição cristã, e só
querem saber da “boa vida”. Estou pensando em gente que tem fé, que tem amor a
Deus, e que desejaria melhorar. Mas, apesar da boa vontade, percebe que não
avança nem um milímetro; pelo contrário, parece que a cada dia recua um pouco .
E assim passam os anos, e aumenta o desânimo. E a esperança, onde fica? Parece
que não existe. Mas, como pode existir se rezamos pouco,
e não lutamos esportivamente, a sério, como os atletas no
estádio?
Poucos podem dizer que, para ganhar mais fé, mais paciência, mais compreensão,
mais ordem, mais formação, mais constância, mais generosidade com o próximo,
mais qualidade e profundidade na oração e no trabalho…, poucos podem dizer –
insisto – que fazem o que diz São Paulo, ou seja, que lutam com a garra de um
campeão no estádio olímpico. Para isso, precisariam ter metas concretas de
oração e de luta, e não só boa vontade e bons sentimentos. Deveriam
determinar-se e dizer: “Eu me proponho isto, a partir de amanhã: aquela oração,
aquele esforço, e aquela mudança de atitude; não quero ficar dando golpes no
ar (muito sentimento, muitas palavras vãs e pouco sacrifício)”.
Deveriam evitar, além disso, correr sem rumo, ou seja, deveriam
procurar ter uma orientação, uma direção espiritual que lhes facilitasse traçar
roteiros, concretizar um plano de vida; que acompanhasse a aceleração da sua
“corrida”, e os ajudasse a retificar e a aprender com os erros, como faz o
treinador com os atletas… Sim. Quantos há que possam dizer que fazem o
que Paulo recomenda? Poucos. Muito poucos. Somos comodistas. Não gostamos dos
nossos defeitos, mas conformamo-nos com eles. Não lutamos como Paulo pedia a
Timóteo: Combate o bom combate da fé, conquista a vida eterna! …Nenhum
atleta será coroado, se não tiver lutado segundo as regras… (1 Tim
6,12 e 2 Tim 2,5).
Paulo podia pedir isso a Timóteo –e a todos os fiéis –porque
ele o praticava. É tocante a “confissão” que faz na Carta aos Filipenses.
Depois de falar das suas ânsias de conhecer mais e mais a
Cristo e de experimentar o poder da sua ressurreição, diz que luta
para conquistar Cristo, e explica como é essa luta: Não
pretendo dizer que já alcancei esta meta e que cheguei à perfeição. Não. Mas
empenho-me em conquistá-la, uma vez que também eu fui conquistado por Jesus
Cristo. Consciente de não tê-la ainda conquistado, só procuro isto:
prescindindo do passado e atirando-me ao que resta para a frente, persigo o
alvo, rumo ao prêmio celeste, ao qual Deus me chama em Jesus Cristo (Fil
3,10-14).
Bastaria que cada um de nós meditasse devagar essas
palavras, para perceber que nelas se encerra um magnífico programa de luta – de
vida – cristã. Um programa que poderíamos resumir assim: Se confiarmos na graça
de Deus – no auxílio do Espírito Santo -, nunca iremos sentir-nos “satisfeitos”
(“não pretendo ter alcançado a meta”); nunca iremos parar de nos
propormos novas metas de melhora (“olhando para a frente”); nunca iremos
olhar com desânimo para os nossos fracassos e erros, já perdoados por Deus (“esquecendo
o que fica para trás”), mas continuaremos a esforçar-nos com alegria e
otimismo renovados em cada instante (“atirando-me ao que resta para a
frente”).
Como animam essas palavras! Basta meditá-las
um pouco, para nos sentirmos dispostos a não abandonar a luta – as batalhas que
Deus nos pede – por maiores que sejam as dificuldades.
Essa é a grande lição ascética de São
Paulo: se formos humildes, se confiarmos totalmente em Deus, se perseverarmos
na oração e na prática dos Sacramentos, se encararmos a luta com otimismo e
espírito esportivo, Deus fará com que a nossa vida na terra seja uma caminhada
feliz, que sempre progride – por mais que esteja pontilhada de quedas – e que
desembocará na alegria inefável da meta, do prêmio celeste,
ao qual Deus nos chama.
Fonte: https://presbiteros.org.br/