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Crédito: Ecclesia |
Matta el Meskin:
Comunhão no Amor
trad.: Pe. José Artulino Besen*
A nossa comunhão é com o Pai
e com o seu Filho Jesus Cristo. 1Jo 1,3
V. Natal: o Cristo da História, um Cristo Vivente
E vós, quem dizeis que eu sou?...
Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivente.
(Mt 16,15-16).
Conteúdo:
V.1 Os Evangelhos, obra do Espírito Santo
V.2 Os Evangelhos são livros de fé
V.3 Cristo e a revelação do Reino
O nascimento de Cristo, sua morte e ressurreição, são acontecimentos sobrenaturais que ultrapassam em muito sua dimensão histórica, e é por isso que seu impacto direto sobre toda a humanidade superou qualquer critério da lógica humana. Quanto à autoridade de Cristo, é suficiente pensar naquilo que os discípulos afirmaram após a ressurreição, prestando seu testemunho no processo movido pelos escribas e anciãos dos judeus: Em nenhum outro há salvação; nenhum outro nome foi dado aos homens abaixo do céu pelo qual possamos ser salvos (At 4,12).
Por isso, devemos prestar a máxima atenção quando o evangelho nos narra a vida de Jesus Cristo. O que lemos no evangelho segundo Mateus e segundo Lucas, sobre o nascimento humano que acontece no coração da história, é situado por João num contexto divino que transcende a história, pois aquilo que para Mateus e Lucas é o nascimento do menino Jesus, para João é a encarnação da Palavra existente desde o princípio.
Analogamente, para sua morte: enquanto os três evangelhos sinóticos oferecem a narração do ponto de vista da história individual e humana de Jesus, o quarto evangelho deles se destaca para elevá-la além do nível de uma história individual, e nela revela o mistério da redenção divina que abraça toda a humanidade:
Os pontífices e os fariseus convocaram o Conselho e disseram: Que faremos? Este homem multiplica os milagres. Se o deixarmos proceder assim, todos crerão nele, e os romanos virão e arruinarão a nossa cidade e toda a nação. Um deles, chamado Caifás, que era o sumo sacerdote daquele ano, disse-lhes: Vós não entendeis nada! Nem considerais que vos convém que morra um só homem pelo povo, e que não pereça toda a nação? E ele não disse isso por si mesmo, mas, como era o sumo sacerdote daquele ano, profetizava que Jesus haveria de morrer pela nação e não somente pela nação, mas também, para que fossem reconduzidos à unidade os filhos de Deus dispersos (Jo 11, 47-52) O céu e a terra, o tempo e a eternidade se unem.
Podemos perceber, exatamente no coração do evangelho, como a história e a eternidade se misturaram numa assombrosa sintonia. A história é e permanece história: ela descreve apenas o passado com seus acontecimentos, concluídos e passados, gravados nos dias, nos meses e nos anos. O homem sempre julgou inconcebível a eventualidade de que num dia a história e a eternidade pudessem misturar-se. Naquele tempo, na pessoa de Jesus Cristo, a história ganhou a força de ficar em pé, viva e doadora de vida, poderosa na sua eficácia, entrecruzada com as profundezas do próprio Deus e da eternidade, pronta para transportar o passado mortal do ser humano a uma vida eterna e imortal, nada menos do que isso.
A história - o tempo - era o destino em que toda a história de cada criatura era obrigada a se aprisionar, pois era criada, vivia e morria. Foi assim até que - na plenitude do tempo - nasce, num dia, num mês e num ano preciso da história, um menino chamado Jesus; ele foi registrado como um cidadão normal nos registros do recenseamento imperial. Há dois mil anos de distância desse nascimento e de acordo com aquilo que é indicado nos evangelhos, acontecimentos claros demonstraram com insistência e com sinais evidentes que naquele lugar e naquele menino era inaugurada uma nova história da humanidade. Um mistério que engloba também o céu e suas criaturas e se dilata até a eternidade de Deus.
Eis o testemunho do evangelho segundo Lucas:
Havia naquela região alguns pastores que faziam vigília de noite guardando o seu rebanho. Um anjo do Senhor apresentou-se diante deles e a glória do Senhor os envolveu de luz. Eles foram tomados de grande temor, mas o anjo lhes disse: Não tenhais medo, eis que eu vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo: hoje nasceu para vós, na cidade de Davi, um salvador, que é o Cristo Senhor. Isso vos servirá de sinal: encontrareis um menino envolto em faixas, e jaz numa manjedoura. E imediatamente apareceu com o anjo uma multidão do exército celeste que louvava Deus e dizia: “Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens que ele ama. (Lc 2, 8-14)
Este acontecimento celeste foi a primeira violação aberta dos limites impostos ao espaço da humanidade e à sua capacidade de narrar a história segundo o nível do tempo. A violação, da parte dos anjos, do campo visível e auditivo do homem, é algo que originariamente não pertencia à história ou à capacidade receptiva humana. É evidente que o recém-nascido é de tal condição que, uma vez descido ao nível humano e terreno na manjedoura de Belém, imediatamente abriu-se uma brecha rumo à condição divina e celeste; isso não fica sem efeito no mais alto dos céus.
Aqui, o anjo desempenhou uma missão particularíssima: aparece como um evangelista a serviço dos seres humanos e assim - com base nas ordens recebidas de Deus - encarregou-se de recordar a cada um a importância deste dia na história da humanidade: dia de “grande alegria”, pela qual todos poderão alcançar sua felicidade na terra. Na ótica divina, de fato, o dia da natividade de Cristo representa o nascimento do Salvador. Aqui, o anjo entra pela primeira vez na história como um cronista, ao mesmo tempo, porém, revelando o valor deste momento, valor escondido na natureza daquele que nasceu: não é um dia à maneira dos homens, mas é “dia de salvação”, “grande alegria”, “comprazimento nos homens”. Com o nascimento deste menino salvador, terminaram os dias de dor e iniciaram os da bem-aventurança. Pôs-se fim ao tempo da desobediência do homem, e teve início o da glorificação de Deus da parte dos homens na terra e dos anjos no céu, ambos no mesmo plano! Apesar de que o “hoje” da saudação do anjo possa fazer pensar num ponto de partida temporal, trata-se do início de uma época pós-histórica: é a história da salvação eterna, a história da alegria divina que devia ser lançada na terra para jamais ser arrebatada do coração do homem.
Deste modo, a violação do mundo humano da parte dos anjos e da multidão dos exércitos celestes é, na realidade, o prelúdio do ingresso do homem no mundo celeste, no mundo dos anjos e de Deus na pessoa daquele que nasceu para transcender os limites do tempo e do espaço. Em outras palavras, o nascimento de Cristo foi o início de uma reconciliação entre dois mundos: de um lado Deus e os seus anjos e de outro, o homem e seus sofrimentos; foi o ponto de partida da revelação daquilo que está nos céus e a manifestação do invisível. É a partir da natividade que os evangelistas iniciaram a narração da história de Cristo. Mas eles narraram a história de Deus, não a do homem; narraram a realização das promessas eternas de Deus, feitas nos tempos antigos e realizadas no tempo estabelecido em Jesus Cristo seu Filho, oferecido pelo próprio Deus à nossa terra numa carne semelhante à nossa. Sua vinda tinha sido anunciada por todos os profetas nas santas Escrituras que o Espírito tinha gravado nos corações dos homens e mulheres de fé, de modo a serem conservadas e guardadas com cuidado através da sucessão dos séculos, até o dia da aparição de Cristo.
A história de Cristo é a história de Deus com relação à salvação humana, Cristo é a Palavra de Deus para o homem, como se lê na Carta aos hebreus: Nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho (Hb 1,2).
Mesmo que a história da vida de Cristo salvador possa parecer uma história narrada no tempo sob a forma de acontecimentos delimitados pelo tempo e pelo espaço, na verdade, é a manifestação de Deus na verdadeira natureza do gênero humano, a manifestação do céu na terra, da eternidade na plenitude do tempo.
V.1 Os Evangelhos, obra do Espírito Santo
Os evangelhos parecem uma narração escrita por quatro pessoas empenhadas em fazer uma pesquisa sobre tudo o que aconteceu. Mas o Espírito Santo que inspirou os evangelistas enquanto os deixava descrever Cristo segundo aquilo que tinham visto, experimentado ou observado, exercia ao mesmo tempo o próprio controle sobre cada coisa vista ou vivida. Deste modo, vinculava-os à sua fonte divina com alusões sutis e com explicações: assim, o Espírito revelava o mistério da eternidade através da história, o mistério do invisível no visível e o mistério da divindade na carne. Assim o evangelho revela infalivelmente a excepcionalidade da pessoa de Cristo. De modo algum é difícil, mesmo para gente simples e sem instrução, perceber espiritualmente este dado. Uma pessoa assim transcende a história, vai além dos acontecimentos e das circunstâncias referidas nos evangelhos, permanece sempre viva e eficaz porque cada linha do evangelho a revela como a pessoa do Filho do Deus vivente.
O Espírito Santo agiu de modo a transmitir a experiência dos evangelistas e sua compreensão espiritual com a mesma inefável alegria com que, pessoalmente, tinham acolhido a mensagem: por esse motivo confiou-lhes as mais profundas verdades da fé. O evangelista João revela-nos a autenticidade do sentimento de que era possuído enquanto escrevia o evangelho:
Aquilo que era desde o princípio, aquilo que nós ouvimos, aquilo que nós vimos com nossos olhos, aquilo que nós contemplamos e aquilo que nossas mãos tocaram, o Verbo da vida (pois a vida fez-se visível, nós a vimos e disso damos testemunho e vos anunciamos a vida eterna, que estava junto do Pai e a nós fez-se visível), aquilo que vimos e ouvimos, nós o anunciamos também a vós, para que também vós estejais em comunhão conosco. A nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. Essas coisas vos escrevemos, a fim de que a nossa alegria seja perfeita. (1Jo 1,1-4).
O leitor do evangelho deve aderir com toda confiança ao Espírito que inspirou o texto e nunca perder, de jeito algum, este elemento em seu caminho da história para a eternidade, em sua passagem do visível ao invisível; de outro modo, desanimaria nas peripécias da história, pondo-se a procurar entre os mortos aquele que está vivo! (cf. Lc 24,5)
É absolutamente impossível - conforme toda a tradição evangélica - que alguém possa reconhecer Cristo como Senhor se não for por obra do Espírito Santo. Analogamente, Cristo não pode revelar-se a alguém a não ser por meio do Pai que está nos céus. Este dado nos revela as dimensões da profunda, substancial e infinita relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, não só em sua entidade pessoal, mas também em relação à possibilidade de sua manifestação: Deus pode ser revelado somente em sua totalidade.
A encarnação, seu nascimento e ingresso na substância da história humana, puseram o evangelho em condição de movimentar-se entre a história e a eternidade, tornando verossímil um mistério que se situa além da razão. Este acontecimento torna Deus acessível ao conhecimento humano após o isolamento, o exílio, a separação e também a hostilidade em que todos viveram, distantes do único santo, absoluto e incognoscível Deus.
Não nos esqueçamos de que o encontro entre a eternidade e a história, vivido de modo realístico e sensível, nunca conhecera precedente. No nascimento de Jesus, Deus se revelou pessoalmente; o invisível tornou-se visível e o incognoscível fez-se conhecer numa fúlgida manifestação da glória de Deus.
Mas, é necessário não se esquecer de que, todo aquele que se aproxima dos evangelhos num nível de investigação puramente histórica, que faz de Cristo o objeto de suas pesquisas, perguntas e análises, ignora um outro elemento fundamental na aproximação desse livro. Os evangelistas escreveram seus textos mantendo o olhar fixo em Cristo como Senhor e Deus, que os olhos de seu coração contemplavam como vivente. Deste modo, o evangelho tomou forma em suas mãos: não como uma descrição meticulosa de um determinado acontecimento que teve como protagonista um homem chamado Jesus, mas - pelo contrário - como testemunho de uma realidade viva que tinha tocado seus olhos e coração (a realidade do Senhor Jesus Cristo, o Filho do Deus vivente que enchera seu ser, seus sentimentos e sua fé) e que tinham registrado na memória com absoluta fidelidade e precisão. Assim, estavam em condições de demonstrar aos crentes que Jesus, o Cristo vivente que ressuscitara dos mortos na glória, sem dúvida alguma era Deus; exatamente ele, o mesmo Jesus que nascera em Belém, vivera em Nazaré, pregara na Galiléia e fora crucificado em Jerusalém.
V.2 Os Evangelhos são livros de fé
É indispensável que o leitor dos evangelhos coloque diante de seus olhos esta realidade vivente, antes de mergulhar na mensagem contida naqueles textos: desta maneira a história se transfigurará diante dele. Os evangelhos, antes de serem livros de história, são livros de fé! Por isso, a fé na pessoa de Jesus Cristo revela todos os mistérios do evangelho e resolve todos os problemas históricos postos por uma narração escrita há dois mil anos. Constatamos assim, e o podemos constatar diariamente, que o evangelho é revelado com maior profundidade, graça e discernimento aos corações simples que possuem uma fé firme.
O evangelho, porém, não revela a verdade como uma hipótese global que deva ser aceita ou refutada em bloco. Pelo contrário, dirige-se a cada coração de modo específico e pessoal, a cada ser humano revelando a verdade num modo adequado à sua estatura espiritual, ao nível de sua fé, ao seu grau de aceitação da verdade, num fluxo contínuo de revelação que cresce com o crescer da fé e com o passar do tempo.
É oportuno que o leitor do evangelho se aproxime da verdade nele contida na ótica e no espírito do evangelista, de modo a receber as palavras do Espírito nele contidas. Não é nossa intenção tornar mais árdua a missão do leitor: pelo contrário, estamos oferecendo a chave de leitura do mistério do evangelho. Se o leitor obedece ao Espírito do evangelho, empenha-se em aceitá-lo e submete a própria mente à verdade, a verdade se transfigurará diante dele, tornando-se igual àquela contemplada pelo evangelista. Assim, o leitor será investido do sopro do Espírito do evangelho e de seu fluir inefável, que o levarão com a mente e o coração diretamente da palavra ao face a face com a pessoa de Jesus Cristo.
Deste modo se realiza o milagre do evangelho: Então abriu-lhes a mente à inteligência das Escrituras (Lc 24,45). Aqui a história é transfigurada e Cristo é manifestado como Deus pelo testemunho do Espírito em nossos corações.
Partindo desse ponto (da atenção à mente do evangelista e de uma livre submissão ao Espírito Santo que dirige as palavras e lhes confere forma), nos encaminhamos à indispensável atenção às palavras do próprio Cristo, por ele pronunciadas e reiteradas com calma e firmeza: da pura e simples atenção do coração por essas palavras, nós podemos perceber a pessoa do próprio Cristo. Em cada palavra e em cada frase, Cristo realmente se pronunciava a si mesmo!
Cada vez que temos o ouvido atento à sua proclamação da relação que o liga com Deus, tornamo-nos conscientes, de modo certo e seguro, do mistério de sua eterna qualidade de Filho de Deus. Ouçamos sua voz: O meu Pai que está nos céus (Mt 7,21; 10,32; 12,50; 18, 10.19; etc.), O meu Pai celeste o fará (Mt 18,35), Eu devo ficar na casa de meu Pai (Lc 2,49), O meu Pai trabalha sempre e eu também trabalho (Jo 5,17), Meu Pai que mas deu (Jo 10,29), Fiz-vos ver muitas boas obras da parte de meu Pai (Jo 10,32), Eu sou a videira verdadeira e meu Pai é o agricultor (Jo 15,1), Abbá, Pai (Mc 14,36). Aqui podemos perceber - absolutamente sem dificuldade - que a relação entre Cristo e Deus é eterna e ultrapassa sua condição humana, e que indubitavelmente existia antes de seu nascimento em Belém.
As palavras dos evangelistas revelam de per si grandeza de ânimo, mas deixam transparecer - com evidência extrema - que a magnanimidade de quem as pronunciou é ainda maior. O alcance teológico evidenciado pelos termos usados é sério e profundo, mas o leitor ou o ouvinte não tem nenhuma dificuldade para perceber que a mente que os elaborou e pronunciou possui uma profundidade e uma seriedade ainda maiores. A audácia da expressão nos trechos citados ultrapassa qualquer compreensão, mas trata-se de uma audácia confiante e humilde que leva a lógica à aceitação, sem esforço, de que Cristo não está dizendo outra coisa que a verdade, manifestando-se a si mesmo com autoridade, sem fingimento algum. Realmente, o Cristo que fala no evangelho fala de si mesmo, da verdade, de Deus! Cristo é a Palavra de Deus!
Cristo imprimiu fortemente na mente de seus discípulos esta verdade (a sua eterna qualidade de Filho de Deus) de tal modo que todos pudessem nela colher o mistério de sua ligação pessoal com o Pai, mistério que deveria revelar-se como o caminho que nEle nos faz mais próximos de Deus, Pai também nosso.
V.3 Cristo e a revelação do Reino
Cristo também insiste num outro fato de extrema importância: a manifestação do reino de Deus e a relação que este possui com a sua vinda em nosso mundo. Cristo iniciou sua pregação dirigindo ao mundo estas palavras: Convertei-vos, porque o reino dos céus está próximo! (Mt 4,17), e com elas referia-se a si mesmo. Durante sua vida terrena, empenhou-se em salientar com força que o reino de Deus já tinha iniciado, já tinha vindo, era iminente. Ele proclamou que a sua vinda ao mundo era a inauguração do tempo do reino de Deus, e indicou com sua encarnação e nascimento o autêntico ingresso da humanidade na esfera do reino de Deus. Isso significa, portanto, o ingresso de todos aqueles que estão nele unidos pela fé, como salientaram os anjos na noite de seu nascimento: Glória a Deus no mais alto dos céus e paz na terra aos homens que ele ama! (Lc 2,14). A iniciação da terra e do homem na esfera do reino e da paz de Deus, aqui significa a irrupção do reino de Deus no mundo dos homens.
Cristo continuará a insistir nisso até o dia de sua crucificação, quando estava diante de Pilatos: Pilatos lhe disse: Então tu és rei? Respondeu Jesus: Tu o dizes: Eu sou rei. Para isso nasci e para isto vim ao mundo (Jo 18,37).
Somente quando nos recordamos de que ele estava diante de Pilatos é que nós percebemos a gravidade e a enormidade da acusação legalmente levantada por Pilatos contra ele para crucificá-lo, porque tinha declarado: Eu sou rei.
Não nos esqueçamos de que Cristo afirmou a sua qualidade real tendo diante de si a cruz, enquanto os soldados se apressavam em crucificá-lo e já estava cheio e preparado o cálice da amargura! Como podemos esquecer o dorso nu, o chicote para a flagelação, a cabeça açoitada e suja de cuspe? Diante de tudo isso estava Jesus: ouvimo-lo ainda repetir: Eu sou rei. Para isso nasci e para isso vim ao mundo! E agora, por um instante fechemos os olhos, de novo imaginemos esta cena e escutemos atentamente para ouvi-lo pronunciar a solene declaração com sua voz firme. Neste ponto, um sentimento de fé nos invade e nos permite compreender que ele é verdadeiramente o Filho de Deus e que o seu reino é um reino eterno, que jamais será derrotado e que não é deste mundo. Se o reino de Deus entrou em nosso mundo através do nascimento de Cristo, é graças à sua morte que entramos no reino de Deus nos céus.
Voltemos agora ao nosso ponto de partida: estamos novamente em Belém, numa humilde casa alugada por José após o nascimento de Jesus. Maria está sentada, tendo ao colo o menino Jesus, com quase dois anos. É tarde, e a escuridão cobre a casa e a cidade. Imprevisivelmente aparece uma luz semelhante ao clarão de um relâmpago que inunda o campo e a casa. José precipita-se para fora e vê uma estrela extraordinariamente luminosa que parou exatamente sobre a casa, como se quisesse assinalar com seus raios o lugar onde se encontra o menino. José logo percebe que a estrela indica uma revelação; mal tinha entrado em casa para dizê-lo a Maria e ouve um grande tumulto na rua e à entrada da casa. Sai e vê uma cena singular: uma caravana de camelos enfeitados com muitos bordados é conduzida por um grupo de servidores e transporta alguns homens idosos, cujo aspecto revela uma condição elevada e rica: são príncipes orientais. Descem e suas faces irradiam alegria e simpatia, apesar do cansaço da longa viagem. Dão um passo em frente e perguntam a José: “Está em casa um menino de quase dois anos? Foi anunciado pelo céu, sua mãe é uma virgem e dele falaram os profetas!” Com um sinal, José pede silêncio e com pressa os conduz para dentro de casa, onde estão o menino e sua mãe. Com grande espanto vê o rosto do menino resplandecer como se um raio da estrela tivesse atravessado a parede e pousasse em sua face; a mãe é envolvida pela luz, como se os céus se tivessem aberto.
Os magos, homens sábios, prostram-se e ficam diante do menino, cantando uma doce melodia, com uma incrível veneração, enquanto que suas faces irradiam alegria e doces lágrimas escorrem por suas barbas brancas, fazendo-as resplandecer de luz.
Depois se aproximam do menino, cada príncipe tendo à mão um presente. O primeiro se prostra e abre o cofre: ouro trabalhado, semelhante àquele com que se ornamentam as coroas reais. O segundo se ajoelha e tem às mãos uma caixa de incenso de delicioso perfume: espalha-o nas mãos do menino, que assim aparece como um sacerdote que traz uma mensagem. Chega depois o terceiro, e também ele se prostra: tem em mãos uma enorme quantidade de mirra, como aquela usada para o Senhor no dia de sua sepultura; talvez seja a mesma, por ele conservada com cuidado, para o dia de sua paixão!
Não posso não maravilhar-me com esses magos e por seus presentes, e ainda mais com aquele que os enviou, guiando-os até Belém!
Ainda uma vez estamos diante do Espírito que fala, mas sem servir-se de palavras. O ouro nas mãos dos magos nada mais é do que dinheiro, riqueza, bom augúrio ou presente, mas segundo o Espírito é um ato de coroação real, com a qual o menino era coroado desde o berço, para que fosse sempre reconhecida a verdadeira realeza de Cristo. Não o tínhamos escutado dizer diante de Pilatos: Eu sou rei. Para isso nasci e para isso vim ao mundo (Jo 18,37)?
O evangelho e seu conteúdo me inspiram temor: sua conclusão se orienta para iluminar o início, e este dirige a própria luz, viva e penetrante, até a conclusão da narração.
Assim, o Espírito sopra entre as linhas e as palavras e atravessa os capítulos. Felizes aqueles que seguem o Espírito para caminhar na luz: a eles é revelado o mistério de Cristo.
Publicação em ECCLESIA autorizada pelo Tradutor, Pe. José Artulino Besen.
Fonte: https://www.ecclesia.org.br/