Santo Inácio de Antioquia | Cléofas |
Sobre a Vida dos Primeiros Cristãos
Aristides de Atenas (+ 130) ao
imperador Adriano:
“Os cristãos ó rei, vagando e
buscando, acharam a verdade conforme pudemos achar em seus livros, estão mais
próximos que os outros povos da verdade e do conhecimento certo, pois creem no
Deus criador do céu e da terra, naquele em quem tudo é e de quem tudo procede,
que não tem outro Deus por companheiro e do qual eles mesmos receberam os
preceitos que guardam no coração, com a esperança e expectativa do século
futuro. Por isso, não cometem adultério, não praticam a fornicação, não
levantam falso testemunho, não recusam devolver um depósito, não se apropriam
do que não lhes pertence. Honram pai e mãe, fazem bem ao próximo e, quando em
juízo, julgam com equidade. Não adoram os ídolos – semelhantes aos homens. O
que não desejam lhes façam os outros não o fazem também; não comem alimentos de
sacrifícios idolátricos, pois são puros. Exortam os que os afligem, a fim de
fazê-los amigos. Suas mulheres, ó rei, são puras como virgens, suas filhas são
modestas. Seus homens se abstém de toda união ilegítima e da impureza,
esperando a retribuição que terão no outro mundo. Aos escravos e escravas, bem
como a seus filhos – se os têm – persuadem a tornar-se cristãos, em razão do
amor que lhes dedicam, e quando se tornam, chamam-nos indistintamente irmãos.
Não adoram a deuses estranhos e vivem com humildade e mansidão, sem qualquer
mentira entre eles. Amam-se uns aos outros, não desprezam as viúvas. Protegem o
órfão dos que os tratam com violência. Possuindo bens, dão sem inveja aos que
nada possuem. Avistando o forasteiro, introduzem-no na própria casa e se
alegram por ele, como se fora verdadeiro irmão: pois se dão o apelativo de
irmãos, não segundo o corpo, mas segundo o espírito e em Deus. Se algum pobre
passa deste mundo, alguém sabendo, encarrega-se – na medida de suas forças – de
dar-lhe sepultura. Se conhecem um encarcerado ou oprimido por causa do nome do
seu Cristo, ficam solícitos a seu respeito e se possível libertam-no.
Quando um pobre ou necessitado surge
entre eles e não possuem abundância de recursos para ajudá-lo, jejuam dois ou
três dias para obter o necessário para o seu sustento. Guardam com diligência
os preceitos do seu Cristo, vivem reta e modestamente – conforme lhes ordenou o
Senhor Deus. Todas as manhãs e horas louvam e glorificam a Deus pelos
benefícios recebidos, dando graças por seu alimento e bebida. Mesmo se acontece
que um justo – entre eles – passa deste mundo, alegram-se e dão graças a Deus,
ao acompanharem o cadáver, como se emigrasse de um lugar para outro. E assim
como quando nasce um filho louvam a Deus, também se ele morre na infância
glorificam a Deus, por quem atravessou o mundo sem pecados. Mas vendo alguém
morrer na malícia e nos pecados, choram amargamente e gemem por ele, supondo-o
ir ao castigo. Tal é, ó rei, a constituição da lei dos cristãos e tal a sua
conduta” (Apologia).
Da Carta a Diogneto:
Esta Carta é um dos mais antigos
documentos que conta a vida dos primeiros cristãos; é de um autor desconhecido,
que escreveu a Diogneto; é do século II.
Em seguida, temos um trecho da Carta:
“Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto a quem é devido; a taxa a quem é
devida; a reverência a quem é devida; a honra a quem é devida [Rom 13,7]. Os
cristãos residem em sua própria pátria, mas como residentes estrangeiros.
Cumprem todos os seus deveres de cidadãos e suportam todas as suas obrigações,
mas de tudo desprendidos, como estrangeiros… Obedecem as leis estabelecidas, e
sua maneira de viver vai muito além das leis… Tão nobre é o posto que lhes foi
por Deus outorgado, que não lhes é permitido desertar (5,5; 5,10;6,10). Os
cristãos não diferem dos demais homens pela terra, pela língua, ou pelos
costumes. Não habitam cidades próprias, não se distinguem por idiomas
estranhos, não levam vida extraordinária. Além disso, sua doutrina não
encontraram em pensamento ou cogitação de homens desorientados. Também não
patrocinam, como fazem alguns, dogmas humanos… Qualquer terra estranha é pátria
para eles; qualquer pátria, terra estranha. Tem a mesa em comum, não o leito.
Vivendo na carne, não vivem segundo a carne. Na terra vivem, participando da
cidadania do céu. Obedecem às leis, mas as ultrapassam em sua vida. Amam a
todos, sendo por todos perseguidos (…). E quando entregues à morte, recebem a
vida. Na pobreza, enriquecem a muitos; desprovido de tudo, sobram-lhes os bens.
São desprezados, mas no meio das desonras, sentem-se glorificados. Difamados,
mas justo; ultrajados, mas benditos, injuriados prestam honra. Fazendo o bem
são punidos como malfeitores; castigados, rejubilam-se como revificados. Os
judeus hostilizam-nos como alienígenas; os gregos os perseguem, mas nenhum de
seus inimigos pode dizer a causa de seu ódio. Para resumir, numa palavra, o que
é a alma no corpo, são os cristãos no mundo: como por todos os membros do corpo
está difundida a alma, assim os cristãos, por todas as cidades do universo
(…)”.
Sobre o Martírio dos cristãos
Santo Inácio de Antioquia (+107):
“De viagem da Síria para Roma estou
lutando com feras, por terra e por mar, de noite e de dia. Acorrentado a dez
leopardos, os milicianos da minha escolta militar… Espero poder enfrentar com
alegria as feras que estão preparando para mim, e peço a Deus que eu possa
encontrá-las prontas a lançarem-se sobre mim. Se não quiserem, eu mesmo as
instigarei para que me devorem num instante (…). Vocês tenham compaixão de mim.
Eu sei muito bem o que é útil para mim. Somente agora começo a ser discípulo.
Não me deixo impressionar por coisa alguma, visível ou invisível, para poder
unir-me a Cristo Jesus. Fogo, cruzes, feras, lacerações, desconjuntura dos
ossos, o corpo reduzido a pedaços, as piores torturas caiam sobre mim:
importante é unir-me a Jesus Cristo. Que proveito poderão dar-me os prazeres do
mundo ou os reinos da terra? Nenhum. Para mim é melhor morrer por Jesus Cristo,
do que reinar sobre toda a terra. A minha vida é busca contínua daquele que
morreu por nós: quero aquele que por nós ressuscitou. Vejam, meu nascimento se
aproxima. Nada melhor podeis fazer por mim, do que deixar que eu seja
sacrificado a Deus… Rogo-vos, não tenhais para comigo uma benevolência
inoportuna! Deixem-me ser pasto das feras, pelas quais chegarei a Deus. Sou o
trigo de Deus, moído pelos dentes das feras para tornar-me o pão duro de
Cristo… Quando o mundo não puder mais ver o meu corpo, serei verdadeiramente
discípulo de Cristo” (Carta aos Romanos).
São Policarpo (+156):
Diante do martírio no anfiteatro de
Esmirna “Eu te bendigo [Senhor] por me terdes julgado digno deste dia e dessa
hora, digno de ser contado no número dos vossos mártires… guardastes vossa
promessa, Deus da felicidade e da verdade. Por essa graça e por todas as
coisas, eu vos louvo, vos bendigo e vos glorifico pelo eterno e celeste
sacerdote, Jesus Cristo, vosso Filho bem amado. Por Ele, que está conosco e com
o Espírito, vos seja dada a glória, agora e por todos os séculos. Amém”
(Martírio 14,2-3).
Martírio dos primeiros cristãos de Roma
Na primeira perseguição contra a Igreja,
desencadeada pelo imperador Nero, depois do incêndio da cidade de Roma no ano
64, muitos cristãos foram martirizados com atrozes tormentos. Este fato é
testemunhado pelo escritor pagão Tácito (annales 15,44) e por São Clemente,
bispo de Roma, papa, na sua Carta ao Coríntios (cap. 5-6), do ano 96: “Deixemos
de lado os exemplos dos antigos e falemos dos nossos atletas mais recentes.
Apresentemos os generosos de nosso tempo. Vítimas do fanatismo e da inveja,
sofreram perseguição e lutaram até à morte. Tenhamos diante dos olhos os bons
apóstolos. Por causa de um fanatismo iníquo, Pedro teve de suportar duros
tormentos, não uma ou duas vezes, mas muitas; e depois de sofrer o martírio,
passou para o lugar que merecia na glória. Por invejas e rivalidades, Paulo
obteve o prêmio da paciência: sete vezes foi lançado na prisão, foi exilado e
apedrejado, tornou-se pregoeiro da Palavra no Oriente e no Ocidente, alcançando
assim uma notável reputação por causa da sua fé. Depois de ensinar ao mundo
inteiro o caminho da justiça e de chegar até os confins do ocidente, sofreu o
martírio que lhe infligiram as autoridades. Partiu, pois, deste mundo para o
lugar santo, deixando-nos um perfeito exemplo de paciência.
A estes homens, mestres de vida
santa, juntou-se uma grande multidão de eleitos que, vítimas de um ódio iníquo
sofreram muitos suplícios e tormentos, tornando-se, desta forma, para nós um
magnífico exemplo de fidelidade. Vítimas do mesmo ódio, mulheres foram
perseguidas, como Danaides e Dircéia. Suportando graves e terríveis torturas,
correram até o fim a difícil corrida da fé e mesmo sendo fracas de corpo,
receberam o nobre prêmio da vitória. O fanatismo dos perseguidores separou as
esposas dos maridos, alterando o que disse nosso pai Adão: É osso dos meus ossos
e carne de minha carne (cf. Gn 2,23). Rivalidades e rixas destruíram grandes
cidades e fizeram desaparecer povos numerosos. Escrevemos isto, não apenas para
vos recordar os deveres que tendes, mas também para nos alertarmos a nós
próprios. Pois nos encontramos na mesma arena e combatemos o mesmo combate.
Deixemos as preocupações inúteis e os vãos cuidados, e voltemo-nos para a
gloriosa e venerável regra da nossa tradição.
Consideramos o que é belo, o que é
bom, o que é agradável ao nosso Criador. Fixemos atentamente o olhar no sangue
de Cristo e compreendamos quanto é precioso aos olhos de Deus seu Pai esse
sangue que, derramado para nossa salvação, ofereceu ao mundo inteiro a graça da
penitência”.
Martírio de São Policarpo (+156)
Carta Circular da Igreja de Esmirna
“A Igreja de Deus, estabelecida em
Esmirna, à Igreja de Deus estabelecida em Filomélia e a todas as comunidades da
Igreja santa e universal, onde quer que esteja: a misericórdia, a paz e a
caridade de Deus Pai, de Jesus Cristo nosso Senhor, superabundem em vós. Escrevemos-vos,
irmãos, a respeito dos mártires e do bem-aventurado Policarpo, cujo martírio
foi, por assim dizer, o selo final, que pôs termo à perseguição. Na verdade,
quase todos os acontecimentos anteriores se efetuaram para que o Senhor nos
mostrasse do céu o martírio narrado no Evangelho. Policarpo esperou
tranquilamente ser entregue, como o Senhor, para que aprendêssemos, com seu
exemplo, a não ter em mira somente o que nos concerne, mas também os interesses
do próximo” (Fl 2,4).
Realmente, a caridade verdadeira e
firme consiste em não desejar apenas a própria salvação, mas a dos irmãos.
Felizes, pois, e generosos todos estes martírios que se deram conforme a
vontade de Deus. Pois é dever da nossa piedade tudo atribuir ao poder de Deus.
Deveras, quem não admiraria a generosidade desses mártires, a sua paciência, e
amor ao Mestre? Dilacerados pelos açoites a ponto de se tornar visível a
estrutura íntima da carne, das veias e das artérias, suportaram tudo com tal
firmeza que os circunstantes se compadeciam e choravam. Eles, porém, chegaram a
tanto heroísmo, que de nenhum se ouviu grito ou se viu lágrima. Assim, esses
generosos mártires de Cristo mostraram que naquela hora em que sofriam não
estavam mais no corpo; mais ainda que o próprio Cristo, presente, se entretinha
com eles. Confiando unicamente na graça de Cristo, desprezavam os sofrimentos
do mundo e, por uma hora de tormento, se resgatavam do castigo eterno. O fogo
dos algozes cruéis parecia-lhes frio; querendo fugir do fogo que não se apaga
eternamente, fitavam com os olhos do coração os bens reservados aos que
perseveram até o fim – “bens que o ouvido não ouviu, os olhos não viram, nem
subiram ao coração do homem” (1Cor 2,9), mas que o Senhor lhes mostrava porque
já não eram homens e sim anjos. Com a mesma coragem, outros enfrentaram
sofrimentos horríveis; lançados às feras, estirados sobre conchas marinhas,
torturados por toda sorte de suplícios, que o tirano prolongava para ver se
seria possível induzi-los a renegar. Mas apesar de Satanás ter maquinado muitas
coisas contra eles, graças a Deus nada alcançou.
Pois Germânico fortaleceu pela
heroica resistência, no seu maravilhoso combate com as feras, a pusilanimidade
de outros.
Querendo o cônsul persuadi-lo a ter
compaixão da sua juventude, Germânico, ao contrário, com pancadas excitou a
fera contra si, na ânsia de livrar-se quanto antes da convivência daquela gente
iníqua e criminosa. Por isso o povo, espantado diante do heroísmo dos cristãos,
dessa raça que ama a Deus e é amada por ele, gritou: “Abaixo os ateus! (Ateus
aqui seriam os cristãos). Tragam Policarpo!” Um apenas, chamado Quinto, frígio
e recentemente chegado da Frígia, ao ver as feras, acovardou-se. Esse,
justamente, tinha desafiado espontaneamente o poder público e incitado outros a
fazerem o mesmo. Mas não resistiu às instâncias repetidas do procônsul, fez
juramento e ofereceu. Eis por que, irmãos, não louvamos os que se entregam
espontaneamente a si mesmo; de mais a mais não é isso que ensina o Evangelho.
Policarpo, o mais admirável longe de se perturbar ao receber esta notícia, quis
permanecer na cidade. Muitos, entretanto, o persuadiram a retirar-se. E ele se
retirou para uma pequena casa de campo, a pouca distância, onde permaneceu, com
poucos amigos, nada fazendo senão rezar dia e noite por todos e por todas as
igrejas conforme o seu hábito. E quando rezava teve uma visão, três dias antes
de ser preso. Viu seu travesseiro pegando fogo.
Voltando-se para os que estavam com
ele, disse-lhes: “Devo ser queimado vivo”. Como prosseguissem em buscá-lo,
transferiu-se Policarpo para outra casa de campo. Logo depois chegaram seus
perseguidores, e como não o achassem, prenderam dois jovens escravos, um dos
quais, vencido pela tortura, lhes deu a indicação. Já então não lhe era mais
possível escapar, uma vez que os traidores eram de sua própria casa. O chefe de
polícia, que com razão tinha o nome de Herodes, apressou-se em conduzir
Policarpo para o estádio. Assim devia ele obter sua parte na herança do Cristo
a quem aderira; ao passo que os traidores, parte no castigo de Judas. Numa
Sexta-feira, mais ou menos pela hora da ceia, partiram os perseguidores com um
destacamento de cavalaria, armado na forma habitual, “como se procurassem um
ladrão” (Mt 26,55). Servia-lhes de guia um escravo. Chegando alta noite foram
encontrar Policarpo no primeiro andar da pequena casa. Teria tido tempo de
buscar outro refúgio; mas não o quis, dizendo: “Seja feita a vontade de Deus”.
Informado da presença dos soldados, desceu e conversou com eles, que ficaram
pasmos vendo sua idade e sua calma, e perguntaram entre si por que capturar com
tanto empenho um ancião como aquele.
Policarpo, entretanto, mandou servir-lhes
comida e bebida à vontade e pediu-lhes apenas o prazo de uma hora para rezar
livremente. Tendo eles consentido, Policarpo começou de pé a sua oração; a
graça divina transbordava nele de tal maneira que pelo espaço de duas horas não
pôde interrompê-la. Todos os que ouviram se encheram de espanto e muitos se
arrependeram de perseguir a um ancião tão cheio do amor de Deus. Concluindo a
oração, na qual se lembrara de todos que havia conhecido, grandes e pequenos,
nobres e humildes e da Igreja católica de toda parte do mundo, chegou o momento
da partida. Montando um jumento foi conduzido para a cidade, já na manhã do
grande Sábado. Vieram a seu encontro Herodes, o chefe de polícia, e Niceto, seu
pai, os quais o fizeram sentar-se consigo no carro e tentaram persuadi-lo: “Que
mal pode haver em dizer: César é Senhor, oferecer o sacrifício, e dizer as coisas
que o seguem, para salvar-se?” A princípio não respondeu, mas como insistissem,
disse-lhes Policarpo: “Não teria o que me aconselhais!” Perdida assim, a
esperança de seduzi-lo, insultaram-no com palavras ameaçadora e jogaram-no do
carro com tanta precipitação que feriu na queda a parte anterior da perna.
Policarpo nem sequer voltou-se, mas prosseguiu alegremente o caminho para o
estádio, depressa como se nada houvesse sofrido. Aí, reinava tal tumulto que
ninguém podia fazer-se ouvir. Quando ele entrou, foi ouvida uma voz do céu,
dizendo: “Coragem, Policarpo, seja homem!” Ninguém viu quem falou, mas a voz
foi ouvida pelos irmãos presentes.
No momento em que Policarpo chegou e
a multidão soube que estava preso, aumentou o barulho. Foi levado à presença do
procônsul, que iniciou o interrogatório, perguntando se de fato era Policarpo.
Recebida a resposta afirmativa tentou persuadi-lo a renegar a fé: “Respeita a
tua velhice”. E seguiram-se os argumentos usuais, em tais circunstâncias. “Jura
pela sorte de César, renega as tuas ideias e dizer: Morte aos ateus!” Policarpo
então, voltando-se para a multidão do estádio, fixando firmemente com um olhar
severo aquela ralé criminosa, elevou a mão contra ela e disse, com os olhos
voltados para o céu: “Morte aos ateus”. Insistiu ainda o procônsul: “Fazer o
juramento e eu te libertarei. Insulta ao Cristo”. Respondeu Policarpo: “Há
oitenta e seis anos que o sirvo e nunca me fez mal algum. Como poderia
blasfemar meu Rei e Salvador?” Como de novo insistisse, dizendo: “Jura pela
sorte de César”, replicou Policarpo: “Se esperas, em vão, que vá jurar pela
sorte de César, simulando ignorares quem sou, ouve o que te digo com franqueza:
sou cristão! Se, por acaso, quiseres aprender a doutrina do cristianismo,
concede-me o prazo de um dia e presta atenção!” Disse-lhe o procônsul:
“Experimenta persuadir o povo”. Respondeu-lhe Policarpo: “Julgo que diante de
ti devo explicar-me, pois aprendemos a honrar devidamente os princípios e as
autoridades estabelecidas por Deus quando não são nocivas à nossa fé. Quanto
àquela gente, porém, não a julgo digna de ouvir a minha justificação”. Nem com
isso desistiu o procônsul: “Tenho feras”, disse, “às quais te lançarei, se não
te converteres”.
“Faze-as vir”, respondeu Policarpo;
“impossível para nós uma conversão do melhor ao pior; o bem é poder passar dos
males à justiça”. De novo, o procônsul: “Se não te convertes, se desprezas as
feras, eu te farei consumir pelo fogo”. Policarpo: “Ameaças com o fogo que arde
um momento e logo se apaga. Não conheces o fogo do juízo que há de vir e da
pena eterna onde serão queimados os inimigos de Deus. Mas, que esperas ainda?
Dá a sentença que te apraz!” Proferindo estas e outras palavras, transbordaram
nele a generosidade e a alegria e no seu rosto resplandeceu a graça. Não
somente o interrogatório não o perturbou, mas foi o procônsul quem perdeu a
calma. Este mandou então o arauto proclamar por três vezes no estádio:
“Policarpo acaba de confessar-se cristão”. Mal tinha anunciado, a multidão de
gentios e judeus de Esmirna prorrompeu em gritos furiosos e desenfreados: “Eis
o mestre da Ásia, o pai dos cristão, o blasfemador dos nossos deuses, o que
induz tantos outros a não mais honrá-los com sacrifício e orações”. E assim
gritando, exigiram do asiarca Filipe que lançasse um leão sobre Policarpo. Ele
recusou-se, observando que isso era impossível, pois os combates de feras
haviam sido proibidos. Ocorreu imediatamente outra idéia à multidão gritando, a
uma só voz: “Que Policarpo seja queimado vivo!” Com efeito, era preciso que se
cumprisse a visão do travesseiro. Tinha visto em chamas, quando estava em
oração e voltando-se para os fiéis que o rodeavam dissera em tom profético:
“Devo ser queimado vivo”. E isso foi feito mais rapidamente do que falado. O
povo saiu à busca de lenha nos armazéns e nos banhos, e, como sempre nestas
ocasiões, os judeus eram os mais ardorosos. Armada a fogueira, Policarpo despiu
as suas vestes, desatou o cinto, tentou desamarrar as sandálias, o que já não
fazia, pois os fiéis sempre se apressavam em ajudá-lo, no desejo de tocar-lhe o
corpo, no qual muito antes do martírio já brilhava o esplender da santidade de
sua vida.
Rapidamente cercaram-no com as coisas
trazidas para o fogo. Quando os algozes quiseram amarrá-lo, disse-lhes:
“Deixa-me livre. Quem me dá forças para suportar o fogo, dar-me-á igualmente a
de ficar nele imóvel sem necessitar deste vosso cuidado”. Não o fixaram,
amarram-lhe apenas as mãos. Policarpo, de mãos ligadas às costas, cordeiro de
escolha tomado de um grande rebanho para o sacrifício, holocausto agradável
preparado ao Senhor, olhando o céu disse: “Senhor, Deus onipotente, Pai de
Jesus Cristo, teu Filho amado e bendito, pelo qual te conhecemos: Deus de toda
a família dos justos que vive na tua presença – eu te bendigo por me haveres
julgado digno deste dia e desta hora, digno de participar no número dos
mártires, do cálice do teu Cristo para a ressurreição da vida eterna do corpo e
da alma, na incorruptibilidade do Espírito Santo! Recebe-me, hoje, com eles, na
tua presença como sacrifício agradável e perfeito e o que me havias preparado e
revelado realiza-o agora, Deus da verdade.
Por isto e por tudo eu te louvo, te
bendigo, te glorifico por teu Filho, Jesus Cristo, nosso eterno Sumo Sacerdote
no céu. Por ele, com ele e o Espírito Santo, glória seja dada a ti, agora e nos
séculos futuros. Amém”. Pronunciado este amém e completa a oração, os algozes
atearam o fogo e levantou-se uma grande chama. Nós – a quem foi dado ver –
vimos um prodígio (e para anunciá-lo aos outros fomos poupados), o fogo tomou
uma forma de cúpula, como a vela de um barco batido pelo vento e envolveu o
corpo do mártir por todos os lados. Ele estava no meio, não como carne
queimada, mas como um pão que se assa ou como ouro ou para candentes, na
fornalha. Sentimos então um odor suave como o do incenso ou de outra essência
preciosa. Vendo, afinal que o fogo não conseguia consumir o corpo, os ímpios
mandaram o executor transpassá-lo com o punhal. E quando isto foi feito, saiu
da ferida tal quantidade de sangue que apagou o fogo. E toda a multidão ficou
pasma ao verificar tão grande diferença entre os infiéis e os eleitos. Um
destes era certamente Policarpo, o admirável mártir bispo da Igreja católica de
Esmirna, que, em nossos dias foi verdadeiramente apóstolo e profeta, pela
doutrina, pois toda a palavra saída da sua boca já foi ou será realizada.
Mas o espírito maligno, invejoso,
perverso adversário do povo dos justos, conhecendo a vida de Policarpo,
imaculada desde o começo, e vendo que agora, depois do seu admirável martírio,
recebera a coroa da imortalidade e entrara na posse da recompensa eterna,
que ninguém poderia mais disputar ou roubar, fez tudo que pôde para impedir que
seu corpo fosse levado por nós, embora muitos desejassem possuir seus santos
despojos, Satanás sugeriu a Nicete, pai de Herodes e irmão de Alceu, que fosse
ter com o governador para pedir-lhe que não entregasse o corpo. “Seriam
capazes”, disse Niceto, “de abandonar o crucificado, para adorar a Policarpo”!
Isso tudo isso instigado e apoiado pelos judeus, que nos espiavam quando
queríamos tirar o corpo do fogo. Ignoravam que nunca poderemos abandonar o
Cristo que sofreu para a salvação dos que se salvam no mundo inteiro, inocente
pelos pecadores. Como havíamos de adorar a outro? Ao Cristo adoramos como Filho
de Deus, aos mártires amamos como discípulos e imitadores do Senhor, dignos da
nossa veneração pela fidelidade inquebrantável ao seu Rei e Mestre.
Oxalá pudéssemos unir-nos a eles e
tornar-nos seus condiscípulos! Vendo o centurião a oposição dos judeus, fez
queimar publicamente o corpo, conforme o costume pagão. Deste modo pudemos mais
tarde recolher seus restos, mais preciosos do que pedras raras e mais valiosos
do que ouro, para depositá-los em lugar conveniente, onde todos, quando
possível, nos reunimos com a ajuda do Senhor, para celebrar com alegria e
júbilo o dia do seu nascimento pelo martírio, em memória dos que combateram
antes de nós, preparando-nos e fortificando-nos para as lutas futuras. Eis a
história do bem-aventurado Policarpo. Com os outros cristão de Filadélfia foi o
duodécimo martirizado em Esmirna. Mas dele principalmente se conservou a
memória, e até os pagãos falam em toda parte. Não foi somente mestre pela
doutrina, foi mártir extraordinário, cujo martírio conforme o Evangelho de
Cristo todos desejam imitar.
Triunfou sobre o governador iníquo
por sua paciência e conquistou assim a coroa da incorruptibilidade. Por isso
participa da alegria dos apóstolos e dos justos, glorifica a Deus, Pai
todo-poderoso, e bendiz a nosso Senhor Jesus Cristo, Salvador das nossas almas
e guia dos nossos corpos, Pastor da Igreja católica espalhada pela terra.
Pedistes uma narração pormenorizada dos acontecimentos. Mas por enquanto
fizemos redigir, por nosso irmão Marcião, somente um resumo. Lida esta carta
mandai-a aos irmãos que moram mais longe para que também louvem ao Senhor pelas
escolhas que faz entre os seus servos. A Deus, que na sua graça e liberalidade
pode fazer entrar no seu reino eterno a todos nós por Jesus Cristo, seu Filho
unigênito – glória, honra, poder e majestade pelos séculos! Saudai todos os
santos. Saudações dos nossos e de Evaristo, que escreve esta carta, e de toda a
sua casa.