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terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Dai ao pobre o que lhe pertence

Uma trabalhadora rural brasileira no Estado de Pernambuco | 
30Giorni
Arquivo 30Dias - 01/2007

Os quarenta anos da encíclica Populorum progressio

Dai ao pobre o que lhe pertence

Entrevista com o cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa, em Honduras: a atualidade da encíclica de Paulo VI, que, em vez de dividir o mundo entre Leste e Oeste, o dividiu entre povos da opulência e povos da fome.

Entrevista com o cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga de Gianni Cardinale

“Eu gostaria de acrescentar que, logo depois do Concílio, o servo de Deus Paulo VI, há exatos quarenta anos, mais precisamente no dia 26 de março de 1967, dedicou ao desenvolvimento dos povos a encíclica Populorum progressio.” Essas palavras, pronunciadas por Bento XVI durante a homilia proferida por ocasião da solene liturgia da Epifania, em 6 de janeiro passado, lembraram a toda a Igreja o aniversário de um dos mais importantes, e por certos aspectos mais discutidos, documentos promulgados pelo papa Montini. Sobre esse aniversário, e a atualidade da Populorum progressio30Dias falou com o cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa e, entre outras coisas, membro do mesmo Pontifício Conselho de Justiça e Paz que Paulo VI citava, no início de sua encíclica, como organismo criado propositalmente para responder ao desejo de “voltar de forma concreta a contribuição da Santa Sé para essa grande causa dos povos em via de desenvolvimento”. Encontramos o purpurado salesiano durante uma passagem sua pela Itália, onde participou de uma reunião plenária da Pontifícia Comissão para a América Latina e recebeu um diploma honoris causa da Universidade de Urbino.
“Fico muito contente com o fato de o Papa, num de seus primeiríssimos discursos deste ano, ter lembrado, entre os aniversários mais significativos de 2007, o quadragésimo ano da Populorum progressio”, nos diz o cardeal, que no passado foi também presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam).
Eminência, que lembranças o senhor tem da saída da encíclica de Paulo VI?
OSCAR ANDRÉS RODRÍGUEZ MARADIAGA: Quando saiu a Populorum progressio, eu era um jovem estudante de teologia. A primeira coisa que me impressionou foi que o Papa quis assiná-la em 26 de março, data que em 1967 correspondia à “solenidade da ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo”. Não foi uma data escolhida por acaso, pois – são palavras da encíclica –, “fiel ao ensinamento e ao exemplo de seu divino Fundador, que punha ‘o anúncio da boa nova aos pobres’ (cf. Lc 7, 22) como sinal de sua missão, a Igreja nunca se descuidou de promover a elevação humana dos povos aos quais levava a fé em Cristo”. A Populorum progressio foi ainda, para os sacerdotes e seminaristas daquele período, um grande impulso ao nosso compromisso social. Eram tempos de grande fervor pós-conciliar. Eram tempos de grande impulso da pastoral social e, em geral, de toda a atividade social da Igreja. Eram tempos muito bonitos para a Igreja latino-americana. O otimismo que havia caracterizado a “aliança para o progresso” lançada pelo presidente Kennedy estava superado, mas continuava-se a dizer que a América Latina era o continente da esperança.

Paulo VI assina a Populorum progressio, em
26 de março de 1967, domingo de Páscoa
30Giorni

A encíclica suscitou esperanças, mas também críticas...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Na época, a encíclica foi acusada de ser “marxismo reaquecido”. De certa forma, todo o compromisso social da Igreja era etiquetado como marxismo. O próprio documento final da Conferência Geral do Celam, celebrada em Medellín em 1968, sobre o qual a Populorum progressio teve uma grandíssima influência, também foi visto como um texto subversivo.
Como se explica esse tipo de crítica?
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Essas acusações surgiram porque o documento do papa Montini, de maneira clara e corajosa para a época, dizia pela primeira vez que a justiça social era necessária para um autêntico desenvolvimento. E, quando a Igreja fala em favor dos pobres, há sempre alguém que a repreenda por querer fazer política e entrar num campo que não é seu. Sobre a acusação de que o documento era marxista, digo que ela era e continua a ser ridícula. A encíclica retomava esta célebre frase de Santo Ambrósio: “Não é o que tu tens que doas ao pobre. Nada mais fazes senão dar-lhe o que a ele mesmo pertence. Pois aquilo que tomas entre teus bens é na verdade o que é dado em comum para o uso de todos. A terra é dada a todos, não somente aos ricos”. E acrescentava: “Ninguém está autorizado a reservar para seu uso exclusivo o que supera a sua necessidade, quando aos outros falta o necessário”. Isso não me parece marxismo. Santo Ambrósio escreveu essas coisas alguns séculos antes de Marx...
No entanto, afirmava-se na encíclica que em determinadas situações o bem comum exige “a expropriação de certas posses”...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Era um conceito retomado da constituição conciliar Gaudium et spes, portanto nada de revolucionário. Da mesma forma como não era de forma alguma revolucionária a advertência contra o risco de que o lucro fosse considerado o “motor essencial do progresso econômico” e de que a concorrência fosse venerada como “lei suprema da economia”. Paulo VI, nesse sentido, falava de “liberalismo desenfreado”. Também neste caso, não parece realmente que se tenham passado quarenta anos, ainda que hoje não falemos mais em “liberalismo desenfreado”, mas de economia neoliberal.
A encíclica dedicava também um capítulo à insurreição revolucionária...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Mas para dizer que ela só era lícita “no caso de uma tirania evidente e prolongada que atente gravemente contra os direitos fundamentais da pessoa e traga perigosos danos ao bem comum do país”. Do contrário – explicava a encíclica –, essa insurreição revolucionária “é fonte de injustiças, introduz novos desequilíbrios e provoca novas ruínas. Não se pode combater um mal real ao preço de um mal maior”. É verdade que, na época, houve quem interpretasse a seu modo esse ponto da encíclica, quase como se fosse a aprovação de uma espécie de teologia da revolução. Nada mais errado. Tanto assim que Paulo VI, em seguida, reafirmou peremptoriamente que “a violência não é evangélica e não é cristã”.

Na encíclica afirma-se que “entre as civilizações, como entre as pessoas, um diálogo sincero cria efetivamente a fraternidade”. Uma afirmação que talvez compreendamos melhor hoje do que há quarenta anos. Um motivo a mais para recordar e difundir essa encíclica mesmo entre aqueles que infelizmente profetizam e, às vezes, até desejam e provocam “conflitos de civilizações” dos quais a humanidade não sente absolutamente necessidade.

Qual é a atualidade da Populorum progressio?
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Hoje os tempos mudaram, não existe mais o conflito que existia na época entre marxismo e capitalismo. Vivemos a atmosfera da chamada globalização dos mercados. Globalização que, porém, traz consigo um grande componente de injustiça, com a marginalização daqueles que não conseguem entrar nesse novo tipo de mercado. Há uma redução da concepção do desenvolvimento a um nível puramente econômico. O aspecto social é completamente negligenciado. Cuida-se das cifras da macroeconomia mas não se consideram os homens concretos. Mas é o homem, como explica com força a Populorum progressio, o sujeito principal do desenvolvimento. Por isso, a encíclica não perdeu muito de sua atualidade. Suas palavras sobre a justiça social, sobre o que se deve entender por desenvolvimento, sobre a paz, conservam todo o seu valor.
Portanto, ainda é atual o conceito de que “o desenvolvimento é o novo nome da paz”...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: É um conceito profético, mas que não foi ouvido. Passaram-se quarenta anos e é cada vez mais verdadeiro: se não há desenvolvimento, se os povos não têm como progredir no bem-estar também material, então a paz é uma miragem cada vez mais inalcançável. E aqui eu me refiro não apenas à paz entre os Estados, entre os povos, mas também à paz dentro dos países, dentro de cada sociedade. Penso na América Latina, mas não só nela. Nossos jovens, se não têm a possibilidade de possuir um trabalho honesto, têm dois caminhos pela frente: migrar ou entrar para o terrível mundo do narcotráfico.
Sobre o fenômeno da migração, a encíclica lembra o dever de acolher benignamente “os trabalhadores imigrantes que vivem em condições muitas vezes desumanas, obrigados a espremer seu salário para aliviar um pouco as famílias que ficaram na miséria em sua terra natal”...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: É uma advertência de extrema atualidade. Como pastor da Igreja latino-americana, faço votos de que essas palavras sejam ouvidas também por nossos irmãos mais ricos do Norte. E não me refiro à Igreja norte-americana, que sempre esteve e está muito próxima de nós. Mas aos responsáveis políticos. O presidente Bush e o Congresso não deveriam fazer leis contra os imigrantes. Não convém a eles. Essas leis os tornam antipáticos aos nossos povos. Os Estados Unidos são uma grande nação, mas devem fazer mais para apoiar o desenvolvimento da América Latina. Do contrário, esse vazio de iniciativa política é preenchido por outras potências emergentes, como a China, ou discutidas, como o Irã. E então não se pode lamentar muito quando isso acontece.
O senhor antes mencionava a influência que a Populorum progressio teve sobre a segunda Conferência Geral do Celam, celebrada em Medellín, na Colômbia, em 1968...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Foi um impacto realmente notável. A sua influência se manifestou nas numerosas citações, mas sobretudo na ênfase que a Igreja pôs sobre o tema dos pobres depois da Conferência.

Paulo VI com os campesinos colombianos; Bogotá,
23 de agosto de 1968 | 30Giorni

Em maio será celebrada em Aparecida, no Brasil, a quinta Conferência Geral do Celam. O senhor acha que a Populorum progressio será lembrada nessa ocasião?
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Espero mesmo que a próxima Conferência de Aparecida lembre adequadamente a encíclica. Até porque não existe hoje o clima de 1968 e, portanto, não existe o perigo daquelas instrumentalizações que na época foram quase inevitáveis.
Hoje, na América Latina, se registra também uma guinada política para a esquerda, em alguns casos com fortes traços populistas...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Sem sombra de dúvida, aqui e ali traços populistas vêm aparecendo. O que traz problemas para a manutenção da democracia. Mas a pergunta que os ricos, os países ricos e também as instituições financeiras internacionais devem-se fazer é esta: o que foi feito para impedir esses resultados eleitorais que eles agora desaprovam? Como nos lembra justamente a Populorum progressio, “o supérfluo dos países ricos deve servir aos países pobres [...]. De resto, os ricos serão os primeiros a tirarem vantagem disso. Do contrário, obstinando-se em sua avareza, só poderão suscitar o juízo de Deus e a cólera dos pobres, com conseqüências imprevisíveis”. Ora, os poderosos deste mundo podem não crer e portanto não temer o juízo de Deus. Mas, da cólera dos pobres, que se pode expressar também por determinados resultados eleitorais imprevisíveis e desagradáveis, deveriam ao menos ter um certo temor. Mas não me parece que seja assim.
Eminência, uma última pergunta. Na encíclica afirma-se que “entre as civilizações, como entre as pessoas, um diálogo sincero cria efetivamente a fraternidade”...
RODRÍGUEZ MARADIAGA: Essa também é uma afirmação profética! Que talvez compreendamos melhor hoje do que há quarenta anos. Um motivo a mais para recordar e difundir essa encíclica mesmo entre aqueles que infelizmente profetizam e, às vezes, até desejam e provocam “conflitos de civilizações” dos quais a humanidade não sente absolutamente necessidade.
O cardeal salesiano de Honduras

O cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga durante
um encontro com os jovens de Tegucigalpa | 30Giorni
O cardeal Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga, salesiano, 64 anos completados no final de dezembro, bispo desde 1978, é arcebispo de Tegucigalpa desde 1993. João Paulo II conferiu a ele o barrete cardinalício no consistório de 21 de fevereiro de 2001. Por vinte anos, desenvolveu sua missão também no Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), até ser eleito seu presidente para o quadriênio 1995-1999. Desde 2003, é presidente da Divisão de Justiça e Solidariedade do Celam. Na Cúria Romana, é membro da Congregação para o Clero, do Pontifício Conselho de Justiça e Paz, do Pontifício Conselho das Comunicações Sociais e da Pontifícia Comissão para a América Latina.

O que a Bíblia não é

Anelina/Shutterstock
Por Peter Cameron

A Bíblia não foi escrita para ser um livro de história ou um livro de regras.

O Bíblia é um presente inestimável. Mas você já pensou o contrário, ou seja, o que a Bíblia não é?

A Bíblia não existe para ser um livro didático, um livro de história, um livro de regras, uma crônica, um manual de operação, um anais ou um arquivo. Nas palavras de um proeminente estudioso católico das Escrituras, “os evangelistas não tinham intenção de fornecer um registro estenográfico do que Cristo disse ou um relatório de suas ações, como um policial poderia fazer” (R. Schnackenburg).

Em vez disso, a Bíblia é a memória do escritor sagrado de fatos excepcionais que aconteceram – anúncios para que esses eventos salvíficos também possam acontecer a nós. Através da Sagrada Escritura, Deus quer comunicar-se conosco. As Escrituras são escritas do jeito que são – em linguagem literária, não em prosa seca e técnica – precisamente porque pretendem revelar Deus a nós como uma pessoa para amar. 

Deus fala conosco através das Escrituras

A própria Bíblia afirma que “a Palavra de Deus é viva e eficaz” (Hb 4,12). E, como disse Paul Claudel, “o texto respira”. 

Por sua vez, os documentos da Igreja acentuam este fato: “Nos livros sagrados, o Pai que está no céu vem amorosamente ao encontro de seus filhos e fala com eles” (Dei Verbum). “Cristo está presente na Palavra, pois é Ele mesmo quem fala quando as Sagradas Escrituras são lidas na Igreja…. Pois, na Liturgia, Deus fala ao seu povo e Cristo anuncia o seu Evangelho” (Sacrosanctum Concilium).

São Gregório Magno aponta um mistério que parece impossível: “Toda a Bíblia foi escrita para nós“. 

A Escritura pretende compartilhar conosco o próprio coração de Deus e apelar para o nosso coração. A Bíblia foi escrita para nos mover no nível de nossa afeição, não apenas no nível do intelecto. “Nas Escrituras”, observou o teólogo moral Pe. Servais Pinckaers, OP, “Deus sempre nos aborda com promessas de felicidade antes de falar de preceitos.” 

Até mesmo São Tomás de Aquino insiste que “a doutrina da Sagrada Escritura contém não apenas assuntos para especulação, mas também assuntos para serem aceitos pelo coração”. É por isso que “em cada Palavra de Deus, o que mais importa é Deus abrir-nos o seu próprio coração nela, e é por isso que o nosso coração deve ser tocado, mudado de alto a baixo” (L. Bouyer). Santo Agostinho nos exorta: “Aprenda a conhecer o coração de Deus nas palavras de Deus”.

Como ler a Bíblia

Isso determina a maneira como devemos ler a Bíblia. Nunca é apropriado dissecar ou desmontar a Bíblia peça por peça ou tentar reduzi-la a tantas proposições, preceitos, moral ou máximas. “As Escrituras sempre conterão mais revelações do que as formuladas nas definições dogmáticas” porque “os ‘modos’ literários das Escrituras transmitem a verdade mais elevada” (L. Alonso-Schökel). E o significado que a Escritura contém é inesgotável – toda vez que a lemos, descobrimos riquezas mais profundas. 

Sabemos disso por experiência própria. Sempre que queremos expressar verdades profundas, recorremos a modos literários, como a metáfora. Por exemplo, no aniversário de casamento, o marido pode dar à esposa um cartão de aniversário que diz: “Você torna o céu azul”. Esta não é uma declaração meteorológica – é um dispositivo poético que tenta articular as profundezas inexprimíveis do amor que ele tem por sua mulher. Devemos ler a Bíblia com a mesma imaginação com que o escritor sagrado a escreveu. 

Quando vamos ler a Bíblia, é importante lembrar disso: Deus pretende entrar em diálogo conosco por meio de sua Palavra.

A Palavra de Deus: consolação em nossas lutas

Santo Ambrósio pergunta: “Quando Deus, a Palavra, bate com mais frequência à sua porta? Ele visita com amor aqueles que estão com problemas e tentações para salvá-los de serem subjugados por suas provações”. 

A Sagrada Escritura existe, de fato, para ser um consolo. Através da Palavra de Deus, o Senhor nos consola em nossas dores, lutas e solidão. “As mãos da Palavra de Deus estão estendidas para nós quando estamos fora de nossa profundidade” (São Gregório de Nissa).

São Gregório Magno nos instrui que “as palavras divinas crescem com quem as lê. Onde a mente do leitor é direcionada, também o texto sagrado ascende. Pois cresce conosco. Quando o leitor faz uma pergunta ao texto, a resposta é proporcional à maturidade do leitor.”

São Tomás de Aquino identifica outros efeitos da leitura da Palavra de Deus: “A Bíblia nos ensina a verdade; protege-nos de cair no erro; ela nos impede de fazer o mal e nos move a fazer o bem, porque o efeito último da Sagrada Escritura é levar as pessoas à perfeição”. 

Um monge do século IX, Ardo Smaragdus, nos aconselha que ler a Bíblia em oração “aguça a percepção, enriquece o entendimento, desperta a preguiça, bane a ociosidade, ordena a vida, corrige maus hábitos, arranca lágrimas de corações contritos, refreia a fala ociosa e a vaidade e desperta a saudade de Cristo e da pátria celeste”.

O importante é apenas pegar a Bíblia e ler, não importa se tudo o que você consegue ler é uma ou duas passagens. São João Crisóstomo dá este encorajamento: “Mesmo que a frase bíblica seja curta, seu poder é grande”. Traga para a sua leitura todas as suas frustrações, ansiedades, buscas, confusões, expectativas e dúvidas. 

Enfim, a Palavra de Deus é uma amiga fiel, engenhosa e generosa, pronta para ouvir e responder.

Fonte: https://pt.aleteia.org/

História da Igreja: Os Primeiros Concílios – Parte 3

Os Primeiros Concílios | Cléofas

História da Igreja: Os Primeiros Concílios – Parte 3

 POR PROF. FELIPE AQUINO

EPÍSTOLA DE BARNABÉ (100-130).– O Autor da mesma afirma que o Senhor em certa ocasião diz: Que me importa a multidão de vossos sacrifícios? Estou farto dos holocaustos de carneiros… (Is 1, 11). Falando do salmo 33,13 e do Êxodo 15,26 os cita dizendo: o Espírito do Senhor profetiza.

CONCLUSÃO: A crença em livros inspirados era comum entre os cristãos do primeiro século da Igreja; era uma verdade admitida como verdade de fé.

QUAIS ERAM ESSES LIVROS?

Do AT se admitiram todos os 24 livros (tantos quantas as letras gregas do abecedário) que em Jamnia (100 dC), sob a direção de rabi Akiba eram só 22 tantos quantos os caracteres do alfabeto hebraico, porque dois dos livros foram divididos ou separados (Rute dos Juizes e Lamentações de Jeremias), para completar as 24 letras do alfabeto grego. Segundo Flávio Josefo desses 22 cinco correspondem a Moisés (Torah), treze aos profetas (Nebuim) e quatro são livros de louvor (Meguiloth). Nos tempos de Jesus a Escritura era conhecida com o nome de Lei e Profetas, (nomos kai profetai). O Talmud (=doutrina) babilônico confirma a seleção feita em Jamnia. Este cânon de Jamnia refletia uma opinião muito anterior ao sínodo, como o confirma o fato dos setenta ser uma tradução grega dos livros sagrados terminada perto do ano 130 a C que continha os 24 livros aprovados por Jamnia e outros sete mais: Sabedoria, Eclesiástico, Judite, Tobias, no códice Vaticano; mais 1 e 2 Macabeus nos outros dois códices mais respeitados, como são o Sinaítico e Alexandrino. A estes últimos deu-se o nome de deuterocanônicos (os novos canônicos) para distingui-los dos protocanônicos, (os primeiros canônicos). Os livros deuterocanônicos estão misturados com os outros livros como se o cânon não fizesse distinção entre um e outros. Pois a Igreja apostólica recebeu esses livros com a mesma devoção que os protocanônicos, de modo que o cânon dos judeus alexandrinos formou parte do cânon da Igreja. Tenhamos em conta que a linguagem da Igreja era o grego. Portanto foi a sessenta e consequentemente o cânon alexandrino o que foi a setenta, a bíblia grega do cânon alexandrino, o texto usado pelos primitivos cristãos, pelos evangelistas e pelos padres apostólicos como conjunto de livros inspirados. Exemplo: das trezentas e cinqüenta citações do AT no NT trezentas são tomadas do texto grego dos setenta.. O texto hebraico só foi fixado definitivamente nos séculos VI a X dC pelos masoretas (a palavra masora significa tradição). Devido à falta de vogais e separação entre palavras o texto hebraico resultava difícil e até duvidoso; até tal ponto que o texto grego dos setenta aparece mais antigo e confiável do que o texto masorético. Por isso os livros dos setenta em seu texto grego são considerados como os verdadeiramente inspirados e sagrados pelos teólogos modernos.

A HEXAPLA: Como as divergências entre o texto hebraico e a tradução dos setenta, além das alterações de outras transmissões eram pretextos para os judeus não aceitarem os comentários das profecias do NT, Orígenes entre 240-245 dC dispôs em seis colunas os diversos textos, como eram o hebraico, o mesmo em letras gregas, e as versões gregas de Áquila (130-140), Simmaco (200), os setenta e Teodocião (180). Daí o nome de hexapla (seis colunas). Interessante nas Héxaplas é a quinta coluna que reflete o texto dos setenta muito semelhante ao códice Vaticano. Hoje só temos fragmentos dessa imensa obra de Orígenes que provavelmente tinha mais de 6 mil fólios (vide postera).

CÓDICES ATUAIS: A palavra códice significa um manuscrito escrito em forma de livro, no início composto por tabuinhas de madeira, cobertas de cera, sobre a qual se escrevia com punção; mais tarde substituídas por folhas de pergaminho, com o nome de fólios (= folha). O fólio tinha 33 cm de comprimento, por 25 cm de largura como uma página de um missal, ou uma folha de formato A4 com mais três centímetros de comprimento e largura. O material do pergaminho era a pele de vitela (vaca ou terneira, especialmente de fetos) ou ovelha, adobada (curtida), rasurada e esticada para poder escrever. As capas de certos livros antigos eram forradas de pergaminho, que pode hoje ser imitado com papel envolto numa capa de gordura. Para um códice de 300 páginas eram necessárias 70 ovelhas, a razão de 4 páginas por ovelha, o que resultava caríssimo. Por isso eram mais comuns os papiros em forma de rolos, cujo material, semelhante ao papel grosso, era feito de uma planta muito comum nas margens do Nilo. Os papiros, por sua fragilidade, não se conservam ou são extremamente fragmentários. Daí o valor dos códices como testemunhas dos textos mais antigos. Dentre estes últimos vamos falar dos códices unciais. Uncial é o tipo de letra maiúscula, imitadora das letras usadas nas lápides e inscrições de pedra e mármore, do tamanho de uma polegada (2,5 cm), usado na escrita até o século VII, em que se começou a usar a letra cursiva ou minúscula, imitando a escrita a mão. O mais antigo dos códices conservados é o Vaticano conhecido pela letra B.

CÓDICE VATICANO: É do primeiro terço do século IV, contemporâneo, pois do concilio de Nicéia, chamado assim porque hoje está guardado na Biblioteca Vaticana. É um códice uncial (escrito com letras maiúsculas) que contém o AT e o NT. (Os códices mais antigos dos autores clássicos, para se ter uma ideia clara, não são anteriores ao século IX). As palavras não estão separadas, nem existem sinais ortográficos, mas empregam os copistas a colometria e a esticometria. A colometria era o estilo chamado de comma et commata. Os termos colon e comma são quase idênticos e assim significava que se escrevia uma frase mais ou menos breve em cada linha que tivesse um sentido relativamente completo. A esticometria era o sistema de escrever por esticos de modo que cada linha devia ter tantas sílabas como um hexâmetro (estico) isto é de 15 a 16 sílabas com 36 letras por linha. Neste sistema não se tem em conta o sentido, mas o número de sílabas, com o fim de pagar os copistas ou calígrafos, Esta forma foi comum nos copista bíblicos desde o século VI. Nos códices antigos encontram-se muitas abreviaturas, especialmente nos nomes sagrados. Exemplo: IC por Jesus Cristo. A divisão atual por capítulos foi feita por Estevão Langton (+1228), arcebispo de Canterbury e os versículos por Santes Pagnino (+1541) no AT e Robero Stéfano para o NT (1551). Enquanto os papiros eram escritos com o talho da mesma planta (o papiro), cortado na ponta de modo a parecer um pincel. Os pergaminhos eram escritos com o cálamo (assim eram as chamadas, vulgarmente, penas), ou seja o talho de algumas gramíneas dividido em dois por um corte, como eram as antigas penas, quando se escrevia com tinta. Os talhos foram posteriormente substituídos por penas de ganso, daí o nome de pena de escrever.

RESUMO: Temos visto como se formou o cânon do AT. No tempo do Concílio de Nicéia (325) todo o Oriente era majoritariamente cristão. Somente Cartago e sua vizinhança podia dizer outro tanto. dentro da oikumene, ou terra do império conhecida. Roma estava isolada e a maior parte do Ocidente era ainda pagã, sendo que os cristãos ocupavam alguma seção das grandes cidades. Isso refletia na Liturgia e nas escolas teológicas. A linguagem da Igreja era o grego, que no tempo se denominava koiné, comum. Por isso temos unicamente até o século IV códices escritos nessa língua. Como exemplo deste predomínio do grego no império e em Roma em particular, podemos citar as duas cartas mais importantes dirigidas aos romanos: a de Paulo no ano 57, e a carta de Ignácio de Antioquia aos mesmos, pouco antes de sua morte como mártir em 107. De Roma também Clemente, Papa (+97), dirige uma carta aos de Corinto também em grego. Um último exemplo: o Pastor de Hermas (150) também está em grego e escrito na própria Roma. Até S Cipriano (+258) não temos uma literatura própria em latim, a língua do império ocidental. Será no tempo de Ambrósio (340-397) bispo de Milão que a língua latina substituirá o grego na liturgia. A bíblia em latim era a “vetus latina” (= antiga [versão] latina) da que pouco conhecemos a exceção do NT que não foi retocado por S. Jerônimo (342-420) na sua revisão dos quatro evangelhos e do saltério em 383 por ordem do Papa Dâmaso (366-384), de modo que os Atos e as epístolas pertencem a essa vetus latina. Jerônimo traduziu do hebraico o AT e retocando a vetus latina dos evangelhos do NT, formou e consolidou a Vulgata que será a Bíblia oficial do Ocidente durante cinco séculos e a declarada oficial na Igreja Romana. Até o final do século III os romanos cultos tinham predileção pelo grego, de modo que Juvenal (55-125) comenta ironicamente esse costume. O imperador Adriano, no comando de 117 até 138, provocado pela ironia do Senado que ridicularizava sua pronúncia provinciana de origem hispânica, do latim, após tentar corrigi-la, e após sua visita à Grécia em 135 não mais quis falar a língua do Lácio e preferiu a de Homero e Heródoto. No fim do século III temos duas versões latinas: a africana de Cartago usada por S. Cipriano e a chamada ítala, a que teve origem em Milão e foi usada por S. Ambrósio e S. Agostinho (354-430), que sendo professor de retórica não quis se aprimorar na língua grega. Porém parece que o texto original do qual as versões latinas são literalmente traduzidas, é o texto chamado neutro do Vaticano e do Sinaítico, os dois códices do século IV que hoje conservamos.

CONCLUSÃO: No que diz respeito ao AT vemos que os cristãos, pelas citações do NT, escolheram o texto grego e o cânon grego tal e como o conhecemos pelos textos dos setenta, nos códices escritos na comunidade judaica de Alexandria. Assim os livros deutero-canônicos entraram a formar parte do “está escrito” desde o tempo dos mesmos apóstolos. Nada existe de um cânon escolhido ao azar ou por meio de um fato extraordinário como quer provar o autor do artigo que estamos debatendo, Roberto C.P. Junior. Falta por estudar a seleção que a Igreja fez dos numerosos textos do NT e como foram rejeitados os livros heréticos e apócrifos (= oculto, secreto) com o significado de não autênticos ou fora do cânon da Igreja, dos quais hoje temos fragmentos em vinte evangelhos diferentes, dos quase cinquenta títulos que tem chegado ao nosso conhecimento. (continua)

O CÂNON DO NOVO TESTAMENTO:

À parte as citações dos escritos patrísticos, temos alguns documentos escritos desde o século segundo como, os escritos de Papias, o cânon de Muratori e o Pastor de Hermas. Deles vamos falar.

PAPIAS: Foi bispo de Hierápolis na Ásia Menor e escreveu cinco livros sob o título de Explicação das sentenças do Senhor. Seu interesse era saber o que tinha dito o Senhor através de seus discípulos diretos como André, Pedro, Filipe, Tomás ou Tiago, João ou Mateus. A eles acrescenta Aristião e o ancião João, também discípulos do Senhor, pois pensava que os livros pudessem ser de tanto proveito como a palavra viva e permanente. Aqui temos o princípio básico da tradição. Ele fala de Marcos como intérprete de Pedro. Marcos escreveu nem sempre ordenadamente o que recordava (de Pedro) sem omitir nada, nem mentir absolutamente. Fala também sobre o evangelho de Mateus: Ordenou em língua hebraica as sentenças de Jesus; e cada um as interpretou (traduziu ao grego) segundo sua capacidade.

MURATORI: Luigi ou Ludovico (segundo a Britannica e outros autores) Antonio Muratori (1672-1750) era um dos grandes eruditos de seu tempo. Nascido de uma família pobre em Vignola no distrito de Módena (Itália), foi aluno dos jesuítas e estudou leis, Filosofia, e Teologia na Universidade de Módena, donde destacou-se especialmente em Literatura e História. Ordenado sacerdote foi chamado a Milão para a Biblioteca Ambrosiana onde imediatamente começou a recopilar antigos manuscritos ainda não publicados. Publicou diversos livros e foi nomeado arquivista e bibliotecário da biblioteca de Módena donde trabalhou até sua morte. Uma das obras históricas em 6 volumes é “Antiquitates italicae medii aevi”. No terceiro volume aparece o cânon que foi chamado de Muratori. Como sacerdote foi exemplar, caridoso com os pobres, e diligente em visitar abandonados e presos.

O CÂNON: O Cânon de Muratori é o documento mais antigo que se tem a respeito do cânon bíblico do NT, por ter sido escrito por volta do ano 150, uma vez que cita o nome de Pio, bispo de Roma de 143 à 155, irmão do Hermas, autor de “O Pastor”. Trata-se de um manuscrito do séc. VIII, cópia do original, descoberto pelo nosso Ludovico no seu trabalho como bibliotecário e arquivista. O manuscrito encontra-se mutilado no princípio e no fim, mas permite distinguir quatro espécie de livros: 1.-Os que são lidos publicamente na Igreja. 2.-Os que algumas pessoas querem que sejam lidos publicamente na Igreja.-3 Os que são lidos particularmente.4.-Os que devem ser desprezados. O testemunho inicia-se com o evangelho de Marcos ao qual se referem estas palavras: …”aos quais esteve presente e assim o fez”, pois sabemos por outros testemunhos que “esse aos quais esteve presente”, eram os sermões de Pedro. Do evangelho de Lucas diz: “O terceiro evangelho é o de Lucas”… Do evangelho de João diz: “O quarto evangelho é de João, um dos discípulos”… Como comentário podemos ler: “Assim, ainda que pareça que ensinem coisas distintas nestes distintos evangelhos, a fé dos fiéis não difere, já que o mesmo Espírito inspira para que todos se contentem sobre o nascimento, paixão e ressurreição” [de Cristo]. Enumera como livros sagrados os Atos e as epístolas de Paulo, excetuando as dirigidas aos Laodicenses e aos Alexandrinos que favoreciam a heresia de Marcião. Dos dois Apocalipses João e Pedro, diz deste último: “alguns não querem seja lido na Igreja”. O Pastor deve ser lido ainda que não seja publicamente. (*)

COMENTÁRIO: Vemos como a teoria de serem os livros sagrados escolhidos por um golpe de mágica ao caírem os falsos do altar, não tem cabimento nesta simples narração feita duzentos anos antes. Eram considerados sagrados porque eram lidos publicamente na Igreja, tal e como atualmente é feito na parte dedicada à Palavra. Vemos como eram quatro os evangelhos, dois dos quais recebem o nome de seus autores. Nisto o manuscrito segue a tradição de Papias.

FORMAÇÃO DO CÂNON DO NT

S JUSTINO, MÁRTIR: (100-165). É uma testemunha crucial da situação do corpo bíblico do NT no século II mencionando três dos evangelhos: Mateus, Marcos e Lucas, e citando e parafraseando as letras de S Paulo e a I de Pedro. É também o primeiro em citar os Atos.

TACIANO (120-173): É o autor do DIATESSARON (=desde os quatro) uma versão dos quatro evangelistas numa única e contínua narrativa que em sua forma síria serviu como evangelho fundamental para a Igreja síria até ser substituído pelos quatro evangelhos no século V. Fundou a seita dos Encratitas, seita que integrava um severo ascetismo com elementos da filosofia estoica.

IRINEU (+ 155): Combatendo o herege Marcion que negava o antigo Testamento, ou a Bíblia Judaica, e ajudou a estabelecer o cânon das escrituras. Admite tanto o AT como o NT ambos provindo do mesmo Deus. No NT Irineu admite os quatro evangelhos, as epístolas de Paulo, os Atos dos apóstolos, as epístolas de S. João, o Apocalipse, a primeira carta de Pedro mas não a epístola aos Hebreus. E admite também como grafé (escrita) o Pastor de Hermas, livro de recente composição em Roma. Sobre os evangelhos diz: Entre os hebreus e em sua língua, Mateus publicou uma espécie de evangelho escrito, enquanto Pedro e Paulo predicavam em Roma e fundavam a Igreja. Depois de sua morte, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, nos transmitiu também por escrito o que Pedro tinha pregado. Assim mesmo Lucas, o companheiro de Paulo, consignou num livro o evangelho pregado por este. Mais tarde João, o discípulo do Senhor, o mesmo que tinha se recostado sobre seu peito, também ele publicou o evangelho durante sua moradia em Éfeso. E explica que não é possível que existam mais de quatro evangelhos nem menos. São quatro as regiões do mundo em que vivemos, quatro os ventos e quatro os pontos cardinais. Porque por outra parte a Igreja está difundida por toda a terra e a coluna e o fundamento da Igreja é o evangelho e o Espírito (sopro) de vida. É pois, natural que tenha quatro colunas que de todos os ângulos soprem incorruptibilidade e reavivem nos homens o fogo da vida. Por tudo isso é evidente que o fazedor de todas as coisas, o Verbo, que está sentado sobre os querubins e sustém o Universo, quando se manifestou aos homens deu-nos seu evangelho sob quatro formas, mas sustentadas por um só Espírito.

Como vemos existe uma diferença entre o texto total e o parcial citado por nosso amigo, Roberto C. P. Junior, que afirma coisas que Irineu não escreveu como as quatro formas dos querubins. O argumento do nosso santo é simples: Deus construiu um mundo material sobre quatro fundamentos, tal e como se acreditava na antiguidade. Esse mundo era uma cópia do mundo espiritual (crença comum na época) que também encontra Irineu construído sobre quatro pilares (os quatro evangelhos) tendo como vento ou espírito, Jesus. Esta é a comparação que Irineu encontra para dizer que os outros evangelhos novos, especialmente os que provinham dos gnósticos, cujo chefe era Marcião, não tinham cabida num mundo projetado pela sabedoria de Deus sobre quatro pilares básicos.

CRITÉRIOS DE CANONICIDADE: O cânon de Muratori, resposta provável ao cânon de Marcion restritivo e redutivo, já declarava o critério para aceitar um livro como sagrado: Distingue entre quatro espécies de livros:

a) Os que são lidos publicamente na Igreja.

b) Os que algumas pessoas querem que sejam lidos publicamente na Igreja.

c) os que são lidos particularmente.

d) Os que devem ser desprezados. Os primeiros (grupo a) são os livros que hoje chamamos de canônicos. À parte de Muratori, podemos afirmar com a Britânica que os critérios essenciais foram: 1o) a apostolicidade: se o livro em questão era dos tempos apostólicos. 2o) a regula fidei ou seja se o livro não continha elementos heréticos ou erros de doutrina. 3o) finalmente a sua catolicidade, ou seja se era lido em todas as igrejas e dirigido a todas as igrejas, como endereçado a todos os eleitos, especialmente falando das cartas chamadas apostólicas…

Igreja como artigo de fé dogmática

Imagem de Jesus e apóstolos no alto da fachada da Basílica
de São Pedro | Vatican News

"A Igreja não é mera associação de fiéis de Cristo, mas, por assim dizer, de uma estrutura divina, que integra Deus: Cristo, como cabeça e o Espírito Santo como alma, bem como todos os cristãos, elevados pelo batismo a uma ordem sobrenatural, como membros. Em outras palavras, a Igreja é divina."

Jackson Erpen - Cidade do Vaticano

“Que a Igreja é um corpo, ensinam-nos muitos passos da sagrada Escritura: "Cristo, diz o Apóstolo, é a cabeça do corpo da Igreja" (Cl 1, 18). Ora, se a Igreja é um corpo, deve necessariamente ser um todo sem divisão, segundo aquela sentença de Paulo: "Nós, muitos, somos um só corpo em Cristo" (Rm 12, 5). E não só deve ser um todo sem divisão, mas também algo concreto e visível, como afirma nosso predecessor de feliz memória Leão XIII, na encíclica "Satis cognitum" (...). O corpo requer também multiplicidade de membros, que unidos entre si se auxiliem mutuamente. E como no nosso corpo mortal, quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele, e os sãos ajudam os doentes; assim também na Igreja os membros não vivem cada um para si, mas socorrem-se e auxiliam-se uns aos outros, tanto para mútua consolação, como para o crescimento progressivo de todo o Corpo. (CARTA ENCÍCLICA MYSTICI CORPORIS n. 14-15)”

"A doutrina do Corpo Místico de Cristo, que é a Igreja (cf. Cl 1, 24), recebida dos lábios do próprio Redentor e que põe na devida luz o grande e nunca assaz celebrado benefício da nossa íntima união com tão excelsa Cabeça, é de sua natureza tão grandiosa e sublime que convida à contemplação todos aqueles a quem move o Espírito de Deus; e, iluminando as suas inteligências, incita-os eficazmente a obras salutares, consentâneas com a mesma doutrina." Assim começa a Carta Encíclica Mystici Corporis do Papa Pio XII publicada em 29 de junho de 1943.

Depois de "A Igreja vista como uma continuidade e um todo", padre Gerson Schmidt* resgata hoje o tema da Igreja como Corpo Místico:

"Na Primeira Carta aos Coríntios, São Paulo compara a Igreja de Cristo a um Corpo. Põe Cristo como cabeça, o Espírito Santo como alma, os cristãos batizados como membros desse corpo orgânico.

O filósofo, teólogo e canonista, Dom Dadeus Grings, arcebispo emérito da Arquidiocese de Porto Alegre-RS, em seu livro “Igreja do Diálogo Ecumênico”, afirma assim: “A consideração do Papa Pio XII, com a Encíclica Mystici Corporis – a Igreja como Corpo Místico – tirou a Igreja da teologia fundamental, como uma espécie de base racional do embasamento da teologia, para elevá-la à categoria dogmática, como exigia o artigo de fé (ou seja, o Credo que professamos). De fato, na profissão da fé apostólica, se vê a Igreja na base da fé cristã: creio na Igreja” [1].  Portanto, Pio XII tirou a eclesiologia da teologia fundamental, para colocá-la na teologia dogmática. A Igreja não é tema de argumentos racionais, mas da fé. Cremos na Igreja conforme afirmamos na Profissão da Fé, desde tempos antigos. “O Papa Pio XII abriu uma nova visão da Igreja. Na verdade, era de toda a cristandade. Fazia parte dos artigos da fé cristã. Não por nada o Concílio de Constantinopla, em 381, a apresenta sob quatro notas: “A Igreja de Cristo é una, santa, católica e apostólica”. Assim passou para a História e se desenvolveu, ao longo dos tempos. O século XX a retomou como Corpo Místico de Cristo, na Teologia Sistemática”[2].

A Igreja não é mera associação de fiéis de Cristo, mas, por assim dizer, de uma estrutura divina, que integra Deus: Cristo, como cabeça e o Espírito Santo como alma, bem como todos os cristãos, elevados pelo batismo a uma ordem sobrenatural, como membros. Em outras palavras, a Igreja é divina.

“Surgiu uma nova eclesiologia. Não apenas está atenta ao surgimento deste organismo vivo, mas elabora para a teologia, principalmente, para a espiritualidade eclesial. Não basta apenas, crer na Igreja. É preciso também assumi-la pela espiritualidade, de quem vive sua fé, numa dimensão eclesial: somos Corpo Místico de Cristo”[3].

Nós somos Igreja. Um dos conceitos que o Concílio Vaticano II em recuperado é que todo o batizado não só pertence à Igreja, mas é membro ativo e protagonista do Reino. Antes a visão da Igreja foi muito hierárquica, atribuindo a missão de evangelizar somente ao clero e aos religiosos. Todo o batizado na verdade é um missionário. Cada um tem uma missão específica dentro do Corpo Místico. A espiritualidade do corpo aponta para isso. O importante no corpo não é ser olho para ver, nem ouvido para ouvir, nem pés para andar, mas fazer parte e ser corpo para viver e gerar vida. O importante é o todo, bem maior que a soma das partes. Cada membro tem sua função e missão específica, de acordo com sua condição, idade, profissão, carisma, ministério. “Assim aparece a maravilha do corpo, com seus membros, tanto contemplativos como ativos. Na atuação de cada um está a espiritualidade do todo”[4].

Dom Dadeus Grings ainda aponta a beleza dessa analogia paulina da Igreja como um organismo vivo e comparada a um corpo orgânico: “A curiosidade de conhecer todo e de assumir a própria responsabilidade nele. Este corpo existe e nós nele. É vivo e atuante no mundo. É preciso conhecê-lo como um todo, amá-lo como parte dele e colaborar com ele e nele, para o bem da humanidade. Foi colocado exatamente no mundo para o bem de todos, mesmo para os que não lhe pertencem. A humanidade inteira é beneficiada com sua presença e atuação. Contemplamos esse corpo maravilhoso. Constitui uma das grandes maravilhas do universo, com sua Cabeça, sua Alma e seus Membros. Trata-se de uma beleza que extasia! Foi o que de mais precioso Deus colocou no universo criado”"[5].

*Padre Gerson Schmidt foi ordenado em 2 de janeiro de 1993, em Estrela (RS). Além da Filosofia e Teologia, também é graduado em Jornalismo e é Mestre em Comunicação pela FAMECOS/PUCRS.

_____________________
[1] GRINGS, Dadeus. “Igreja do Diálogo Ecumênico”. Evangraf, Porto Alegre, 2022, p.11.
[2] Idem, pg. 45.
[3] GRINGS, Dadeus. “Igreja do Diálogo Ecumênico”. Evangraf, Porto Alegre, 2022, p.46.
[4] Ibidem.
[5] Idem, 46-47.

São Francisco de Sales

São Francisco de Sales | A12
24 de janeiro
São Francisco de Sales

Francisco (François) de Sales nasceu aos 21 de agosto de 1567 em Thorens-Glières, província da Sabóia, na época um país independente; atualmente a região, de Ródano-Alpes, pertence à França, Itália e Suíça. Foi ele o primogênito de 13 filhos da nobre e antiga família dos Barões de Boisy. Muito cedo fez voto de viver a castidade e buscar sempre a vontade do Senhor, colocando-se sob a proteção da Virgem Maria, por Quem tinha especial devoção.

Estudou nos melhores colégios franceses e aprendeu várias línguas. Na juventude Francisco mudou-se para Paris, onde fez estudos universitários com os jesuítas – Filosofia, Retórica e Teologia. Para satisfazer o sonho de seu pai, doutorou-se em Direito na Universidade de Pádua. Regressou à França em 1592, com 24 anos, e se inscreveu na Ordem dos Advogados.

Sua família já lhe tinha arrumado um cargo como Senador de Sabóia e escolhido, para sua noiva, uma jovem rica e nobre. Mas ele recusou, pois queria ser padre. Assim, foi ordenado sacerdote aos 26 anos e, com a ajuda de um tio, Cônego em Genebra, foi nomeado para o posto de capelão da catedral de Chambéry nesta cidade.

Sua primeira missão como sacerdote foi reevangelizar a região calvinista de Chablais. Ali encontrou muita resistência e fanatismo, mesmo emboscadas, insultos e ameaças. Criou então um sistema de publicação, ou seja, fixar em lugares públicos ou levar de porta em porta folhetos impressos, com a explicação das verdades da fé, com muito tato e simplicidade. Com paciência e persuasão respeitosa procurava também dialogar em palestras e encontros. A longo prazo, este método levou a milhares de conversões.

Em 1599, Francisco foi nomeado Bispo coadjutor de Genebra com sede em Annecy, nos alpes franceses, assumindo definitivamente a diocese três anos depois. Ali desenvolveu intensa atividade: visita às paróquias, formação do clero, reorganização de mosteiros e conventos, fundação de escolas, pregação e catequese de crianças e adultos, incluindo membros da nobreza, mesmo da casa real da Sabóia. Por causa da sua doçura e perseverança, Francisco conseguiu inúmeras conversões e uma grande mudança religiosa na região.

Em março de 1604, durante uma pregação quaresmal em Dijon, conheceu e fez grande amizade com (Santa) Joana Francisca Fremyot de Chantal. Juntos fundaram a Congregação da Visitação de Santa Maria, em 1610, em Annecy, com a finalidade de visitar e socorrer os pobres.

Além da doçura, Francisco ficou muito conhecido também pelos seus livros. Escreveu “Filotéia” ou “Introdução à vida devota” em 1608, dedicado à Santa Joana de Chantal. Nesta obra, voltada para quem vivia no mundo e tinha tarefas civis e sociais, resume os princípios da vida interior e ensina a amar a Deus na vida diária. Em 1616, escreveu especialmente para as filhas da Visitação “Teótimo” ou “Tratado do Amor de Deus”, uma obra de denso e extraordinário conteúdo teológico, filosófico e espiritual, que ensina os melhores meios para um encontro pessoal com Deus.

 Francisco faleceu com a idade de 52 anos, no dia 28 de dezembro de 1622, em Lyon, França. Porém a Igreja celebra sua festa em 24 de janeiro, dia do traslado dos seus restos mortais para Annecy em 1623. Dez anos após sua morte, seu corpo foi exumado e encontrado incorrupto, sem os sinais de decomposição. É reconhecido como Doutor da Igreja e padroeiro dos jornalistas e escritores católicos, devido ao seu estilo e à redação de diversos folhetos e livros como instrumentos de evangelização (4.000 sermões, 21.000 cartas de direção espiritual e várias obras de doutrina e ascética). É também padroeiro dos que têm dificuldade auditiva, por ter desenvolvido uma linguagem de símbolos para se comunicar com um jovem deficiente. Ainda, é titular e patrono da Família Salesiana, Congregação fundada por seu admirador Dom Bosco (santo) para a educação dos jovens.

Colaboração: José Duarte de Barros Filho

Reflexão:

“A medida de amar a Deus é amá-Lo sem medida”. Esta é a ideia do “Tratado do Amor de Deus”, e São Francisco de Sales a colocou em prática através da extrema gentileza no trato com as pessoas, nas suas imensas atividades pastorais. Dizia que “mais abelhas se apanham com uma gota de mel do que com um barril de vinagre”. Mas pouco conhecido é o seu heroico esforço de controlar o próprio gênio. Descobriu-se após a sua morte que a parte de baixo da sua mesa estava marcada pelo raspar das unhas, o que fazia durante o atendimento e diálogo com as difíceis consciências defensoras de erros e heresias. Extravasa ele na madeira a sua tensão, para nunca perder a paciência com os irmãos e tratá-los sempre afavelmente. Este “pequeno grande detalhe” espiritual é fortíssimo testemunho da santidade de Francisco, à medida da sua gigantesca obra evangelizadora.

Oração:

Deus de bondade e infinita doçura, que nos deseja a paz, a concórdia e o carinho, dai-nos por intercessão de São Francisco de Sales a grandeza e o heroísmo da santidade nos menores gestos e ações, na consciência de que é a partir deles, assim realizados, que Vós mesmo fazeis em nós as grandes obras de caridade e salvação. Por Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora. Amém.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

É preciso saber diferenciar liberdade de libertinagem

Foto: Wesley Almeida/cancaonova.com
Por Prof. Felipe Aquino

É preciso saber diferenciar liberdade de libertinagem

A maior aspiração do ser humano é a liberdade seguida de felicidade. E isso é consequência natural de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus (cf. Gen 1,26), para participar de sua vida bem-aventurada. Deus pôs em nós uma sede infinita, a fim de que somente n’Ele ela pudesse ser saciada.

Santo Agostinho (354-430), depois de buscar a felicidade nos prazeres do mundo, na retórica e oratória, no maniqueísmo e em tantas outras estripulias, somente saciou seu coração quando encontrou o Evangelho. Mais adiante, lamentou ter demorado tanto para ter descoberto a verdadeira fonte da felicidade: “Ó Jesus Cristo, amável Senhor, por que, em toda a minha vida amei, por que desejei outra coisa senão Vós?”.

O Criador não quis para nós uma felicidade pequena, essa que se encontra entre as coisas do mundo: o prazer dos sentidos, o delírio das riquezas ou o fascínio do poder e do prestígio. Tudo isso é ilusão porque o que está abaixo de nós não pode satisfazer nossa alma. Isso é muito pouco para nós! Deus quis que a nossa felicidade fosse muito maior, quis que nossa felicidade fosse Ele próprio. Esse é um grande ato de amor do Pai para conosco. O Pai sempre quer o melhor para o filho.

Liberdade ou libertinagem?

É preciso distinguir entre liberdade e libertinagem, entre ser livre e ser libertino. Liberdade, sem compromisso com a verdade e com a responsabilidade, torna-se libertinagem; e essa jamais poderá gerar felicidade, já que vai desembocar no pecado. E “o salário do pecado é a morte” (Rom 6,23).

Ser livre não é fazer tudo o que se quer. Não! Muitas vezes, isso é loucura. A verdade é o trilho da verdadeira liberdade, e essa, sem verdade, é loucura. Será liberdade assegurar que dois mais dois são cinco? Será liberdade desrespeitar o manual do seu aparelho de TV e, em vez de ligá-lo em uma tomada de 127 volts, como alerta o manual, você teimar em ligá-lo em outra de 220 volts?

Será liberdade, por exemplo, usar drogas para se sentir livre, mesmo destruindo a vida?

Da mesma forma, será liberdade usar o sexo sem o compromisso do casamento apenas por prazer, mesmo sabendo que ele poderá gerar uma gravidez despreparada, um aborto, um adultério? Não! Tudo isso não é liberdade, mas sim loucura!

A liberdade é alicerçada na responsabilidade

Liberdade não pode ser confundida com libertinagem. Posso dar socos no ar à vontade, mas sem atingir o nariz do meu irmão. Pregar a liberdade de expressão, sem respeitar os direitos dos outros, equivale à perversão intelectual e a volta à barbárie.

A liberdade de expressão não dá o direito a alguém de ofender ou ridicularizar o pai ou a mãe dos outros. Defender a liberdade absoluta de expressão é, muitas vezes, uma forma de corporativismo doentio, de uma mídia, às vezes, mal formada, sem princípios éticos, que mascara a truculência e o arbítrio, e se esconde atrás de uma interpretação maldosa da lei.

A liberdade, que faz a felicidade, é alicerçada na verdade e na responsabilidade. Fora disso é loucura, libertinagem, irresponsabilidade, é pecado que vai gerar a dor, sofrimento e lágrimas. Não queira experimentá-la. É muito melhor aprender com o erro dos outros. Abra os olhos e tenha coragem de ver!

Ser livre ou ser libertino?

Experimente, hoje, dar a um jovem tudo o que ele quiser: dinheiro à vontade, prazer até não poder mais, curtição de toda natureza, e você verá que a sua fome de felicidade continuará insaciada. Não fosse isso verdade, não teríamos tantos jovens de famílias ricas, mas delinquentes, envolvidos com drogas, crimes etc. Por outro lado, vá a um mosteiro e pergunte a um monge, que abdicou de todos os prazeres do corpo e do espírito, para abraçar somente a Deus, se lhe falta algo para ser feliz. A resposta será não! Nada lhe falta para ser feliz.

A liberdade só atinge a perfeição quando está ordenada para Deus, seu bem último. Quanto mais praticar o bem e a virtude, tanto mais livre a pessoa será. Enquanto as paixões nos dominarem, não seremos livres nem felizes. Enquanto o espírito do homem for escravo da sua carne e da sua sensibilidade, esse ainda não será livre, e ainda viverá se arrastando pela vida.

“Não vos conformeis com este mundo”

No tempo de Carnaval, parece que se oficializou a prática do pecado, a liberação de todo vício e de todos os mais baixos instintos. Pobre criatura humana ferida pelo pecado original! Mergulha na lama mais fétida, achando que sairá dela perfumada.

O pior de tudo é quando as autoridades constituídas, que deveriam primar pelo bom senso, pelo pudor, equilíbrio entre outros, agem ao contrário disso e fomentam a imoralidade e a depravação, distribuindo fartamente a camisinha e a pílula do dia seguinte, para que haja “sexo seguro”.

O cristão que vive segundo a lei de Cristo sabe que tudo isso é mau e aumenta o sofrimento e a escravidão da pessoa; por isso, não compactua com essa situação.

“Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação do vosso espírito, para que possais discernir qual é a vontade de Deus, o que é bom, o que lhe agrada e o que é perfeito” (Rm 12,2).

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF