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A família | Presbíteros |
A família ante a ideologia do gênero
CARDEAL ROBERT SARAH
Resumo
O Cardeal Robert Sarah, Prefeito
da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos
Sacramentos, denunciou a ideologia do género e as suas repercussões
sobretudo na família, numa conferência proferida na Universidade Católica de
Ávila (Espanha), em 24 de Maio de 2016.
Na impossibilidade de
darmos o texto íntegro, apresentamos para os nossos leitores um resumo
elaborado pelo Pe. Miguel Falcão.
O Papa Francisco, durante a sua
Viagem apostólica a Manila (Filipinas), não duvidou em denunciar uma
“colonização ideológica contra a família” [1], que tenta destrui-la
difundindo-se nas sociedades dos países em vias de desenvolvimento. Na sua
Exortação apostólica Amoris laetitia, critica fortemente a ideologia
do género, que “nega a diferença e a reciprocidade natural entre um homem e
uma mulher. Ela antevê uma sociedade sem diferença de sexo e esvazia a base
antropológica da família. Esta ideologia leva a projetos educativos e diretrizes
legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade afetiva
radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e mulher” [2].
O próprio Autor, no livro Deus
ou nada [3], denunciou com vigor a
teoria do género como um ataque frontal à família e a sua vontade de a
destruir.
Génese da ideologia do
género [4]
A teoria do gender (género)
nasceu no ambiente das ciências humanas de inspiração freudiana.
Nos anos 1990, Judith Butler –
que continua a ser a líder da revolução do «género» – declarou que os termos
«sexo» e «género» já não são substantivos. Isso significa que o indivíduo,
homem ou mulher, será o que queira ser.
Aqui pode ver-se “a mão do
diabo”. Satanás é homicida desde o princípio [5]. Satanás quer matar a
vida divina em nós, quer fazer de nós «zumbis», indivíduos sem alma e dotados
de um corpo submetido a manipulações genéticas. Quer submeter-nos a ele,
cortando o «cordão umbilical» que nos une a Deus e dando-nos a ilusão de que
somos os nossos próprios deuses [6].
A pseudolibertação do homem
inscreve-se na história dos três últimos séculos, sendo a ideologia do
género o seu último avatar. A emancipação de Deus Pai produziu-se há
muito tempo, quando as democracias ocidentais se formaram num contexto deísta.
Os mestres do pensamento racionalista provocaram a Revolução Francesa,
apresentada como a génese da libertação do homem em relação ao Deus dos
cristãos e, em consequência, em relação à Igreja e ao seu Magistério. Para os
racionalistas, Deus é o Arquiteto Supremo do Universo que se desinteressa
totalmente das suas criaturas. O deísmo dos enciclopedistas matou a paternidade
de Deus, cortou o «cordão umbilical».
Se Deus deixa de ser Pai, o homem
deixa de ser filho, pessoa que recebe tudo do Pai. Passa a ser
simplesmente indivíduo, entregue a si próprio, à sua liberdade e à
sua razão.
Entregue à sua razão, o indivíduo
perde pouco a pouco contacto com a Fonte, a paternidade de Deus. É certo que
vários documentos internacionais – Cartas da Sociedade das Nações e das Nações
Unidas, Declaração Universal dos Direitos Humanos, preâmbulos das Constituições
– ainda refletem normas de direito natural, isto é, conformes à natureza humana
criada por Deus; mas cada vez mais o direito que rege os Estados ocidentais se
torna positivista, baseado exclusivamente na vontade da maioria dos cidadãos,
sem nenhum limite natural. Assim, por exemplo, para poder legalizar o aborto,
nega-se que o embrião humano seja uma pessoa desde a sua concepção ou diz-se
que é apenas uma pessoa potencial.
Devido a este divórcio
entre indivíduo e pessoa, o Ocidente – e com ele o
mundo inteiro pelas conhecidas vias da colonização e depois da dominação econômico-financeira
dos países em vias de desenvolvimento – caiu no individualismo e nas
ideologias. Portanto, com a morte de Deus, o deísmo levou a
civilização ocidental à morte do homem como pessoa, ao assassinato
do pai, ao individualismo sem fraternidade, que culminou no movimento
libertário de Maio de 1968 em França: a humanidade livre de normas.
Entretanto, foi-se preparando
o assassinato da mãe, com o feminismo radical que opõe os direitos
das mulheres, a sua liberdade e a sua igualdade, à identidade feminina no marco
da complementaridade dos sexos e à maternidade. Margaret Sanger (1879-1966),
figura emblemática do feminismo ocidental, queria o acesso livre e gratuito à
contracepção para “libertar a mulher da escravidão da reprodução”. Assim, a
partir de 1970, se sufocou o sentido da feminilidade e da maternidade na
cultura ocidental.
No final do séc. XX, o pai, a
mãe, os esposos, o filho e a filha, todos perderam o estatuto próprio na
família. Atualmente, tornou-se um conceito abstrato e instável, sujeito a
interpretações diversas e contraditórias, de modo a falar-se de “famílias”.
Este longo processo
revolucionário, que vai da morte de Deus Pai no séc. XVIII à morte do homem
convertido em simples indivíduo no final do séc. XX, conduz
diretamente à ideologia do género. Com efeito, este indivíduo
desenraizado torna-se apenas um consumidor com quem a Internet faz
negócio a partir de estimativas estatísticas dos seus desejos. Este vazio
permitiu a aceitação da revolução do género.
A ideologia do
género
Para a ideologia do
género não existem a masculinidade e a feminilidade com a
complementaridade dos sexos, nem a paternidade e maternidade, nem o matrimónio
entre um homem e uma mulher, nem portanto a família com a vocação educativa do
pai e da mãe. Tudo isto seriam construções sociais elaboradas ao longo dos
séculos, em particular sob a pressão das religiões, para impedir o acesso
individual à liberdade e igualdade dos cidadãos. São estereótipos
discriminatórios de que seria necessário libertar-se (daí o processo
revolucionário) e para isso «desconstruir» e demolir por todos os meios
(financeiros, políticos, culturais, educativos e legislativos) [7].
Isto significa que, se o
indivíduo não recebe o seu género, mas ele está em permanente construção, a
consequência é a indiferenciação dos sexos.
Um exemplo de «desconstrução» da
linguagem devida à ideologia do género:
– em lugar de esposos ou
de marido e mulher, fala-se de parceiros;
– em lugar de maternidade, direito
da mulher de dispor livremente do seu corpo;
– em lugar de matrimónio estável
entre um homem e uma mulher, amor livre hétero ou homossexual
sem compromissos;
– em lugar de família,
variedade de famílias;
– em lugar de procriação, reprodução.
A teoria do género entrou já no
modo de viver atual e continua o seu caminho de «desconstrução», isto é, de
destruição da família e da sociedade, perante uma indiferença quase geral. Era
preciso tomar consciência urgentemente para poder resistir, qualquer que seja o
preço a pagar: da troça à marginalização, do cárcere ao martírio. O veneno já
está inoculado, quer ao nível das nações, quer ao nível das instância
internacionais, das quais a mais influente são as Nações Unidas (ONU).
A difusão da ideologia do género
Ao nível dos Estados, a ideologia
do género é promovida pela Organização Mundial da Saúde (ONU) e por numerosas
organizações não-governamentais (ONG), em particular instituições educativas e
sanitárias com sede em Estados ocidentais.
Qualquer país que rejeita unir-se
à ideologia do género é geralmente sancionado, por exemplo em relação a ajudas
para o desenvolvimento. Esta autêntica colonização afeta a todo o continente
africano, em particular a África subsaariana, e também a Ásia e a América
Latina. Os países africanos que tentam resistir à vaga homossexual, tendem a
abrir as portas à perspectiva do género na sua acepção feminista, sem repararem
que isso levará imediatamente à homossexualidade legalizada.
Nas instâncias internacionais que
inspiram a legislação e o comportamento dos diversos Estados, a recepção da
teoria do género representa uma ruptura com a linguagem dos instrumentos
jurídicos vinculantes adoptados antes dos anos 90. Os documentos anteriores da
ONU, por exemplo, ao abordar questões relativas à igualdade dos direitos, à
família e à educação, referiam-se aos «homens e mulheres», aos «esposos» ou
«marido e mulher», ao «matrimónio», à «família» (em singular).
A mudança começou a dar-se na
altura da IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 4-15 de Setembro de
1995), marcada pela intervenção notável de uma feminista muito célebre, Hillary
Clinton, então Primeira-dama dos EUA, que declarou surpreendentemente: «os
direitos das mulheres são direitos do homem». Apesar da oposição de países como
Estados Unidos e França, a Santa Sé afirmou alto e bom som os seus pontos de
desacordo presentes no documento preparatório da Conferência. O «género» foi
metido às escondidas na Plataforma de Ação de Pequim, mas não foi
explicitamente definido.
Posteriormente, os organismos da
ONU dedicaram-se a definir o «género». Estas definições difusas levaram tempo,
permitindo interpretações cada vez mais comprometidas. A mais notável é a
da ONU Mulheres: o «género» corresponde “aos atributos sociais e às
oportunidades associadas ao facto de ser homem ou mulher e às relações entre
mulheres e homens, assim como às relações entre mulheres e às relações entre
homens”, acrescentando que “esses atributos, oportunidades e relações são
específicas de certos contextos e épocas, e sujeitos a mudança”. ONU
Mulheres faz pressão para que «a igualdade de género e os direitos das
mulheres» se integrem nos tratados mundiais. E conclui: “O marco para o
desenvolvimento depois de 2015 deve reconhecer que a falta de controle das
mulheres e das adolescentes sobre o seu corpo e a sua sexualidade é constitui
uma enorme violação dos seus direitos”.
A ditadura pela subversão
ideológica
Para a ideologia do
género, a família converteu-se num lugar onde se negoceia o poder; ela já
não é a célula básica da sociedade, e muito menos um lugar de amor e de
comunhão interpessoal. Sendo a família uma fonte de desigualdades, é preciso
mudar as relações de poder entre homens e mulheres, entre rapazes e raparigas,
desde a escola primária. Em muitos países ocidentais, estes objetivos já foram
conseguidos. A teoria do género pretende abalar as “estruturas coercitivas”
(políticas, culturais e religiosas) que atribuem papéis estereotipados às
mulheres e aos homens, restringindo as suas opções de vida, e rejeitando as
opções homossexuais. Encontramos aqui os dois afluentes envenenados do rio
chamado «gender»: o feminismo e os grupos homossexuais.
A ideologia do género radica no
relativismo, segundo o qual tudo é possível e aceitável. Bento XVI e agora o
Papa Francisco disseram que as nossas sociedades caminham para uma ditadura
do relativismo, que não reconhece senão o próprio ego e os
seus desejos. Esta ideologia, que penetrou na sociedade, mete-se na Igreja por
fora e por dentro. Há grupos de pressão («lobbies») que querem impor a
ideologia do género e o relativismo moral. Se a família está em perigo, é a
sociedade que está em perigo, e também a própria fé. Com efeito, os bispos (e
os presbíteros, seus cooperadores) estão chamados a defender a santidade do
matrimónio e da família. Se fracassam na sua missão, o futuro da humanidade
está em grave perigo, porque a fé está sempre ameaçada de dois modos: ou pela
vontade de mudar a doutrina imutável, ou dando mau exemplo.
O bom combate pela família
Nos nossos dias assistimos muito
especialmente a um combate frontal e violento entre «o espírito do mundo» e «o
Espírito Santo». Nos primeiros tempos da Igreja, por exemplo em Roma, o contexto
cultural era bastante parecido ao que conhecemos hoje, com a banalização do
adultério, da poligamia, da homossexualidade, do aborto… Os cristãos dessa
época não aceitaram compromissos, mas permaneceram fiéis ao Evangelho, mesmo
quando o seu testemunho ia contracorrente da cultura dominante. Graças ao seu
exemplo, foram o fermento na massa pagã da época [8] e pouco a pouco
viram a conversão de povos inteiros. Assim foi como a Europa se tornou cristã e
viu florescer uma civilização marcada pelo cristianismo, onde o matrimónio, em
particular a dignidade da mulher, e a família, com o respeito pelos filhos
desde a sua concepção, foram evidenciados.
Ora, durante os dois recentes Sínodos
sobre a família, de 2014 e 2015, num contexto social e cultural muito parecido
ao da Roma antiga, pelo menos no Ocidente, a tentação do compromisso com o
«espírito do mundo» surgiu como uma proposta teológico-pastoral errónea:
adaptar o ensinamento da Igreja às realidades do mundo contemporâneo, ou se se
prefere, adaptar a doutrina da Igreja aos casos particulares que caem na
pastoral. O deslumbramento por este modelo, retransmitido pelos meios de
comunicação complacentes, mesmo católicos, conquistou certo número de bispos,
um dos quais chegou a qualificar este paradigma como «fonte de revelação»!
Conclusão
São João Paulo II disse muitas
vezes que “o futuro da humanidade passa pela família” [9]. Se a batalha final
entre Deus e o reino de Satanás se trava no matrimónio e na família, é preciso
urgentemente empenharmo-nos nela, pois dela depende o futuro da sociedade
humana, e sabemos que a família, fundada no matrimónio de amor, monógamo,
livre, fiel e indissolúvel, é a sua célula básica.
Neste ano jubilar da
Misericórdia, podemos encontrar refúgio, como Maria, Mãe do Redentor e Mãe
Nossa, no Coração de Jesus, no seu Sagrado Coração traspassado por amor a nós.
[1] FRANCISCO, Encontro
Mundial das Famílias em Manila, 16-I-2015.
[2] FRANCISCO, Exortação
apostólica pós-sinodal “Amoris laetitia”, 19-III-2016, n. 56.
[3] CARD. ROBERT
SARAH, Deus ou nada, recentemente editado em Portugal (2016).
[4] Cf. MARGUERITE A.
PETEERS, La perspective du genre: origines idéologiques lointaines
d’une norme prioritaire de la gouvernance mondiale, 24-V-2014.
[5] Cf. Jo 8,
44.
[6] Cf. Gen 3,
5: «Sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”.
[7] Cf. MARGUERITE A.
PETEERS, la définition des nouveaux concepts de base pour le mariage et
la famille, 7-XI-2014.
[8] Cf. Mt 13,
33.
[9] Cf. S. JOÃO PAULO
II, Familiaris consortio
Fonte:
https://www.cliturgica.org/portal/artigo.php?id=2436