Davi toca a harpa (Rubens) |
Exemplos de fé: Davi
Texto para meditar sobre a virtude da fé, com base
na vida do rei Davi. O monarca sempre soube confiar em Deus, e voltar, mesmo
depois de ter se afastado d’Ele.
O rei Davi ocupa um lugar relevante na Sagrada
Escritura. À sua vida são dedicadas mais páginas que a nenhum outro personagem
do Antigo Testamento, exceto Moisés. Ele “é por excelência o rei "segundo
o coração de Deus", o pastor que ora por seu povo e em seu nome, aquele
cuja submissão à vontade de Deus, cujo louvor e arrependimento serão o modelo
da oração do povo”[1]. Depois de ter considerado o papel
da fé na vida de Moisés e a profunda relação existente entre a sua confiança em
Deus e ao assumir com radicalidade a própria vocação, o exemplo de Davi pode
servir-nos para apreciar, entre outros aspectos, como a vida de fé traz consigo
uma atitude ativa de confiança e abandono nas mãos de Deus, um empenho por
buscar, sem desânimos, a correspondência total aos desígnios divinos, um
esforço por recomeçar a luta espiritual sem abatimento, uma e outra vez, com
novo vigor, depois de uma queda no pecado; sem confundir tudo isso com um vago
sentimento de presunção no próprio valor pessoal ou de confiança superficial na
misericórdia divina.
Nas mãos de Deus
Os livros de Samuel e Primeiro de Reis[2] descrevem com grande realismo a
história de Davi: uma vida cheia de altos e baixos, em que o autor sagrado
enfatiza o fato de que Deus sempre o atende e que o filho de Jessé se coloca
sempre confiantemente nas mãos de Deus, recorrendo a Ele, especialmente nos
momentos de maior perigo. Davi se abandona completamente nas mãos do Senhor,
com “a certeza de que, por mais duras que sejam as provas, difíceis os
problemas e pesado o sofrimento, nunca cairemos das mãos de Deus, essas mãos
que nos criaram, nos sustentam e nos acompanham no caminho da vida, porque as
guia um amor infinito e fiel”[3]. Junto a isto, chama a atenção a
maneira em que em Davi vão se cumprindo os desígnios divinos. É ungido rei pelo
profeta Samuel, porque o Senhor o escolheu, apesar de que no momento histórico
da sua chamada era considerado o de menor valor entre seus irmãos, pois: o
olhar de Deus não é como o do homem. O homem vê a aparência, o Senhor vê o
coração[4]. A unção, certamente, não concedeu por si só o
trono a Davi: devia lutar – pondo sempre a sua confiança em Deus – contra a
oposição de Saul e suportar muitas contradições em todos os lugares antes de
ser aclamado e ungido, primeiro como rei de Judá pela sua tribo e, sete anos
mais tarde, como rei de todo Israel[5], superando a resistência dos partidários
de Isbaal, filho de Saul. Afirma então o texto bíblico que Davi
percebeu que o Senhor o confirmava como rei sobre Israel e exaltava sua
realeza, por causa do seu povo Israel[6].
Se num primeiro momento, portanto, parecia que Davi
estava chegando ao trono e estabelecendo o seu reino por meio da sua valentia e
astúcia, na realidade, em sua história vemos cumprir-se que a
atitude do homem de fé é olhar para a vida, em todas as suas dimensões, sob uma
perspectiva nova: a que Deus nos dá [7]. A Sagrada Escritura nos permite apreciar, além
disso, que Deus conta com as iniciativas e esforços do homem para realizar seus
projetos... O que teria acontecido se Davi, homem de fé, tivesse pensado que
para receber o que Deus havia prometido bastava deixar o tempo passar, ou, simplesmente,
esperar que o povo fosse aclamá-lo?
Há muitos momentos na história de Davi onde podemos
contemplar o exemplo da sua fé ativa, que o move a fazer o que deve e confiar
em que Deus está a seu lado assegurando o seu êxito. Um caso bem conhecido é o
seu combate contra Golias, aquele gigante do exército filisteu de uns três
metros de altura e bem treinado para a guerra. O texto bíblico detém-se em
descrever a corpulência e a armadura do filisteu e como era desproporcional que
Davi, até então um pastor de gado, inexperiente na guerra, cuja única arma era
sua funda, o enfrentasse. Porém, na verdade, o maior contraste estava na
atitude que movia os dois combatentes: a soberba do filisteu, para
insultar as fileiras do Deus vivo[8], choca diante da fé de Davi, que sai para o
combate em nome do Senhor dos exércitos[9] convencido de que o Senhor, que me
salvou das garras do leão e do urso, salvar-me-á também das mãos desse filisteu[10].
É essa fé que também move Davi a preparar-se da
melhor forma possível para o combate: escolhe como arma a funda, cujo poder
conhece bem, e seleciona cuidadosamente as pedras que vai lançar. Os meios são
desproporcionais diante do equipamento do inimigo, porém com eles conseguirá a
vitória. Cumprem-se aqui, cabalmente, essas palavras de São Josemaria: Serve
ao teu Deus com retidão, sê-Lhe fiel... e não te preocupes com mais nada.
Porque é uma grande verdade que, “se procuras o reino de Deus e a sua justiça,
Ele te dará o resto – o material, os meios – por acréscimo”[11]. Por outro lado, a fé e confiança de Davi no
Senhor o levam a explorar toda a sua habilidade. É uma lição que deixa ao
cristão que deve levar adiante as obras que Deus põe em suas mãos: Aquele
que vive sinceramente a fé, sabe que os bens temporais são meios, e emprega-os
com generosidade, de modo heroico[12].
Davi atua colocando todos os meios ao seu alcance e
abandona nas mãos de Deus os resultados da sua ação. A sua fé no Senhor faz com
que não perca o ânimo, inclusive quando as circunstâncias adquirem tons
dramáticos: Diferentes textos das Escrituras, nas suas múltiplas
alusões, confirmam-nos que inter médium montium pertransíbunt aquæ(Sl103/104,
10). Essa certeza contrapõe-se até ao menor sinal de desalento, ainda que os
obstáculos possam atingir grandes alturas; e este é o caminho oportuno para que
cheguemos ao Céu, certos de que as águas divinas purificam e também impulsionam
todas as nossas limitações para chegar a estar com Deus [13].
La humildade de saber voltar a Deus
Ao mesmo tempo, a vida de Davi reflete outro
aspecto importante desse saber-se nas mãos de Deus. A narração bíblica expõe
com detalhes alguns graves pecados de Davi dos quais, por sua fé e confiança em
Deus, conseguiu purificar-se alcançando o perdão divino. Nesse sentido, talvez
o episódio mais conhecido foi o seu gravíssimo pecado de adultério com Bet-Sabe
seguido do assassinato de Urias, seu legítimo esposo[14]. Um pecado que é fruto de uma
vontade fraca, que terminou distorcendo e obscurecendo todo um amplo horizonte
de graças divinas recebidas.
O segundo livro de Samuel conta que estando por
começar a guerra contra os Amonitas, Davi enviou seu exército para o combate.
Ele, no entanto, permaneceu em Jerusalém. O texto bíblico descreve gradualmente
as circunstâncias que conduziram à queda mortal de Davi: abandona seu dever de
dirigir o exército, como era então costume habitual entre os reis, preferindo
ficar confortavelmente na cidade; passa o dia ocioso, levantando-se ao
entardecer e passeando tranquilamente pelo terraço; deixa a vista vagar de um
modo indiscreto e imprudente; aceita a tentação; envia mensageiros para
informar-se da possibilidade de atuar de acordo com o seu desejo; e finalmente
comete o gravíssimo pecado de adultério. A tudo isto se seguiu um pecado talvez
ainda maior: planejar meticulosamente a morte do legítimo esposo de Bet-Sabe,
Urias o hitita, um de seus oficiais mais leais, valente e generoso, enumerado
entre o grupo dos grandes heróis do reino davídico em 2 Sam 23,
39.
O relato mostra, paradigmaticamente, a
impressionante capacidade do coração humano de fazer o mal, apesar das boas
disposições previamente existentes e da abundância de dons divinos recebidos.
Davi age de uma forma sem precedentes se consideramos a fé que havia mostrado
no passado; porém deixou que a inveja e a sensualidade corrompessem a sua
vontade. O ensinamento que o texto sagrado oferece é evidente: quando a busca
do bem e do progresso na amizade com Deus é negligenciada, a vontade tende a
distorcer-se até obscurecer totalmente a inteligência, levando o homem a
cometer os crimes mais dolosos. Todos os cristãos podem cair neste perigo; por isso
São Josemaria deixou escrito: Não te assustes nem desanimes ao
descobrir que tens erros..., e que erros! Luta por arrancá-los. E, desde que
lutes, convence-te de que é bom que sintas todas essas fraquezas, porque, de
outro modo, serias um soberbo: e a soberba afasta de Deus. [15].
O profeta Natã será o meio usado por Deus para
tirar o rei da sua triste situação. Natã utilizará uma parábola de inusitada
beleza, uma das primeiras que encontramos na Bíblia, apresentando-a como um
fato real. O profeta expõe o caso de um homem rico que tinha ovelhas e bois em
abundância, mas que, para acolher um hóspede, não querendo fazer uso de seus
bens, tira de um homem pobre da cidade o único que tinha e amava, uma ovelhinha
que era para ele como uma filha[16]. Diante da indignação de Davi, Natã
mostrará ao rei que ele era esse homem rico, que havia abusado da confiança de
Urias e o havia despojado do seu maior bem. Davi não pode deixar de reconhecer
o seu grave pecado e a enorme injustiça que tinha cometido: Pequei
contra o Senhor[17]. Deve-se acrescentar algo
particularmente notável na recriminação de Natã: a nobre delicadeza, que não
desfoca a claridade com que o profeta fez o rei compreender o mal gravíssimo
que tinha cometido, levando-o assim a uma verdadeira e sentida compunção.
Com as suas palavras, Natã consegue despertar a
consciência e a fé de Davi, e o anima a buscar o perdão divino, que lhe é dado
ao confessar o seu pecado diante do Senhor. Foi o início de uma nova vida, que
levou o rei a aproximar-se ainda mais do Deus de Israel. Temos de um exemplo
vivo de como no caminho para a santidade, é importante lutar para não cair,
mais é ainda mais importante não ficar caído no chão[18]. Segundo uma antiga tradição, a dor
manifestada por Davi diante da consciência do seu pecado ficou registrada no
Salmo 50, conhecido como o salmo Miserere. Nesta oração, por um
lado o salmista reconhece com verdadeira dor o mal cometido, confessa o seu
pecado, que significa uma ofensa a Deus e se dirige a Ele pedindo-lhe que pela
sua bondade e misericórdia o purifique[19]; por outro lado, mostra a sua
confiança plena na misericórdia divina, pois reconhece que a graça de Deus é
mais forte do que a sua miséria[20], e faz um propósito firme e
decidido: se compromete, como manifestação do seu arrependimento sincero, a
mudar de vida e a mostrar aos homens os caminhos de Deus para que se convertam[21].
O Salmo reflete bem qual devia ser a disposição
interior de Davi quando percebeu claramente a magnitude do seu pecado. Não
pensou que estivesse perdido, não deixou que a sua queda o mantivesse afastado
de Deus, mas o levou a buscar a misericórdia divina, sabendo que era muito
maior do que o seu pecado, por mais terrível que fosse. Um exemplo que a
Escritura oferece para as nossas vidas, para a nossa mesquinhez e debilidade,
que a soberba se empenha em tornar grande. Neste torneio de amor,
não nos devem entristecer as nossas quedas, nem mesmo as quedas graves, se
recorremos a Deus com dor e bom propósito, mediante o sacramento da Penitência.
O cristão não é nenhum colecionador maníaco de uma folha de serviços imaculada[22]. Tantas vezes somos nós mesmos, por assim dizer,
que não estamos dispostos a nos perdoar, porque gostaríamos de não falhar, ser
perfeitos, irrepreensíveis.
O Senhor nos ama do jeito que somos. “Ele sempre
nos espera, ama-nos, perdoou-nos com o seu sangue e perdoa-nos cada vez que nos
dirigimos a Ele para pedir o perdão”[23]. Ele é nosso Pai, que nos conhece
melhor do que nós mesmos e responde à nossa debilidade com a sua infinita
paciência; de fato, o caminho para a santidade “é uma espécie de diálogo entre
a nossa fraqueza e a paciência de Deus – um diálogo, que, se entrarmos nele,
nos dá esperança”[24]. Deus não quer que condescendamos
com as nossas faltas: deseja e nos ajuda para que caminhemos pelos caminhos da
vida interior com elegância, com soltura, sem termos medo de cair porque
sabemos que estamos nas suas mãos, prontas a nos perdoar e a nos abençoar;
porque sabemos que, se cairmos, com a sua graça que nunca nos faltará podemos
voltar a nos levantarmos e a caminhar melhor que antes. Por isso, “a paciência
de Deus deve encontrar em nós a coragem de regressar a Ele, qualquer que seja o
erro, qualquer que seja o pecado na nossa vida”[25].
De tudo isso nos dá exemplo Davi, que sabe oferecer
ao Senhor o que Ele mais deseja: um coração contrito[26], amante, completamente dirigido a Ele, com a
confiança posta nele. Todos podemos nos dirigir a esse rei bíblico que, com todas
as suas debilidades, soube ser “um orante apaixonado, um homem que sabia o que
quer dizer suplicar e louvar”[27].
A. Aranda e Miguel Ángel Tabet
[1] Catecismo da Igreja Católica,
n. 2579.
[2] Cfr. particularmente de 1 Sm 16
a 1 Re 2, 12. Cfr. também 1Cr 10-29 e Sir7, 1-11.
[3] Bento XVI, Audiência
Geral, 15-II-2012.
[4] 1 Sm 16, 7.
[5] Cf 2 Sm 2, 4;
5, 3.
[6] 2 Sm 5, 12.
[7] São Josemaria, É Cristo
que passa, n. 46.
[8] 1 Sm 17, 26.
36.
[9] 1 Sm 17, 45.
[10] 1 Sm 17, 37.
[11] São Josemaria Caminho,
n. 472.
[12] São Josemaria Forja,
525.
[13] Mons. Javier Echevarría, Carta Pastoral sobre o "Ano da Fé", 29-IX-2012, n. 6.
[14] Cf. 2 Sm 11.
[15] São Josemaria Forja, 181.
[16] Cf. 2 Sm 12, 1-14.
[17] 2 Sm 12, 13.
[18] Cf. Francisco, O nome de Deus é
misericórdia, Planeta, 2016.
[19] Cf. Sal 50, 3-9.
[20] Cf. Sal 51 (50): 9-14.
[21] Cf. Sal 51 (50), 15-18.
[22] São Josemaria, É Cristo
que passa, n. 75.
[23] Francisco, Regina coeli.
San Pedro Square. II Domingo de Páscoa ou Divina Misericórdia, 7 de abril de
2013
[24] Francisco, Homilia na
Basílica de São João de Latrão. II Domingo de Páscoa ou Divina
Misericórdia, 7 de abril de 2013. Tomada de posse da cátedra do Bispo de Roma.
[25] Ibid.
[26] Sal 51 (50), 19.
[27] Bento XVI, Audiência
Geral, Plaza de San Pedro, 22 de junho de 2011.