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sexta-feira, 3 de março de 2023

Exemplos de fé: Davi

Davi toca a harpa (Rubens)

Exemplos de fé: Davi

Texto para meditar sobre a virtude da fé, com base na vida do rei Davi. O monarca sempre soube confiar em Deus, e voltar, mesmo depois de ter se afastado d’Ele.

O rei Davi ocupa um lugar relevante na Sagrada Escritura. À sua vida são dedicadas mais páginas que a nenhum outro personagem do Antigo Testamento, exceto Moisés. Ele “é por excelência o rei "segundo o coração de Deus", o pastor que ora por seu povo e em seu nome, aquele cuja submissão à vontade de Deus, cujo louvor e arrependimento serão o modelo da oração do povo”[1]. Depois de ter considerado o papel da fé na vida de Moisés e a profunda relação existente entre a sua confiança em Deus e ao assumir com radicalidade a própria vocação, o exemplo de Davi pode servir-nos para apreciar, entre outros aspectos, como a vida de fé traz consigo uma atitude ativa de confiança e abandono nas mãos de Deus, um empenho por buscar, sem desânimos, a correspondência total aos desígnios divinos, um esforço por recomeçar a luta espiritual sem abatimento, uma e outra vez, com novo vigor, depois de uma queda no pecado; sem confundir tudo isso com um vago sentimento de presunção no próprio valor pessoal ou de confiança superficial na misericórdia divina.

Nas mãos de Deus

Os livros de Samuel e Primeiro de Reis[2] descrevem com grande realismo a história de Davi: uma vida cheia de altos e baixos, em que o autor sagrado enfatiza o fato de que Deus sempre o atende e que o filho de Jessé se coloca sempre confiantemente nas mãos de Deus, recorrendo a Ele, especialmente nos momentos de maior perigo. Davi se abandona completamente nas mãos do Senhor, com “a certeza de que, por mais duras que sejam as provas, difíceis os problemas e pesado o sofrimento, nunca cairemos das mãos de Deus, essas mãos que nos criaram, nos sustentam e nos acompanham no caminho da vida, porque as guia um amor infinito e fiel”[3]. Junto a isto, chama a atenção a maneira em que em Davi vão se cumprindo os desígnios divinos. É ungido rei pelo profeta Samuel, porque o Senhor o escolheu, apesar de que no momento histórico da sua chamada era considerado o de menor valor entre seus irmãos, pois: o olhar de Deus não é como o do homem. O homem vê a aparência, o Senhor vê o coração[4]. A unção, certamente, não concedeu por si só o trono a Davi: devia lutar – pondo sempre a sua confiança em Deus – contra a oposição de Saul e suportar muitas contradições em todos os lugares antes de ser aclamado e ungido, primeiro como rei de Judá pela sua tribo e, sete anos mais tarde, como rei de todo Israel[5], superando a resistência dos partidários de Isbaal, filho de Saul. Afirma então o texto bíblico que Davi percebeu que o Senhor o confirmava como rei sobre Israel e exaltava sua realeza, por causa do seu povo Israel[6].

Se num primeiro momento, portanto, parecia que Davi estava chegando ao trono e estabelecendo o seu reino por meio da sua valentia e astúcia, na realidade, em sua história vemos cumprir-se que a atitude do homem de fé é olhar para a vida, em todas as suas dimensões, sob uma perspectiva nova: a que Deus nos dá [7]. A Sagrada Escritura nos permite apreciar, além disso, que Deus conta com as iniciativas e esforços do homem para realizar seus projetos... O que teria acontecido se Davi, homem de fé, tivesse pensado que para receber o que Deus havia prometido bastava deixar o tempo passar, ou, simplesmente, esperar que o povo fosse aclamá-lo?

Há muitos momentos na história de Davi onde podemos contemplar o exemplo da sua fé ativa, que o move a fazer o que deve e confiar em que Deus está a seu lado assegurando o seu êxito. Um caso bem conhecido é o seu combate contra Golias, aquele gigante do exército filisteu de uns três metros de altura e bem treinado para a guerra. O texto bíblico detém-se em descrever a corpulência e a armadura do filisteu e como era desproporcional que Davi, até então um pastor de gado, inexperiente na guerra, cuja única arma era sua funda, o enfrentasse. Porém, na verdade, o maior contraste estava na atitude que movia os dois combatentes: a soberba do filisteu, para insultar as fileiras do Deus vivo[8], choca diante da fé de Davi, que sai para o combate em nome do Senhor dos exércitos[9] convencido de que o Senhor, que me salvou das garras do leão e do urso, salvar-me-á também das mãos desse filisteu[10].

É essa fé que também move Davi a preparar-se da melhor forma possível para o combate: escolhe como arma a funda, cujo poder conhece bem, e seleciona cuidadosamente as pedras que vai lançar. Os meios são desproporcionais diante do equipamento do inimigo, porém com eles conseguirá a vitória. Cumprem-se aqui, cabalmente, essas palavras de São Josemaria: Serve ao teu Deus com retidão, sê-Lhe fiel... e não te preocupes com mais nada. Porque é uma grande verdade que, “se procuras o reino de Deus e a sua justiça, Ele te dará o resto – o material, os meios – por acréscimo”[11]. Por outro lado, a fé e confiança de Davi no Senhor o levam a explorar toda a sua habilidade. É uma lição que deixa ao cristão que deve levar adiante as obras que Deus põe em suas mãos: Aquele que vive sinceramente a fé, sabe que os bens temporais são meios, e emprega-os com generosidade, de modo heroico[12].

Davi atua colocando todos os meios ao seu alcance e abandona nas mãos de Deus os resultados da sua ação. A sua fé no Senhor faz com que não perca o ânimo, inclusive quando as circunstâncias adquirem tons dramáticos: Diferentes textos das Escrituras, nas suas múltiplas alusões, confirmam-nos que inter médium montium pertransíbunt aquæ(Sl103/104, 10). Essa certeza contrapõe-se até ao menor sinal de desalento, ainda que os obstáculos possam atingir grandes alturas; e este é o caminho oportuno para que cheguemos ao Céu, certos de que as águas divinas purificam e também impulsionam todas as nossas limitações para chegar a estar com Deus [13].

La humildade de saber voltar a Deus

Ao mesmo tempo, a vida de Davi reflete outro aspecto importante desse saber-se nas mãos de Deus. A narração bíblica expõe com detalhes alguns graves pecados de Davi dos quais, por sua fé e confiança em Deus, conseguiu purificar-se alcançando o perdão divino. Nesse sentido, talvez o episódio mais conhecido foi o seu gravíssimo pecado de adultério com Bet-Sabe seguido do assassinato de Urias, seu legítimo esposo[14]. Um pecado que é fruto de uma vontade fraca, que terminou distorcendo e obscurecendo todo um amplo horizonte de graças divinas recebidas.

O segundo livro de Samuel conta que estando por começar a guerra contra os Amonitas, Davi enviou seu exército para o combate. Ele, no entanto, permaneceu em Jerusalém. O texto bíblico descreve gradualmente as circunstâncias que conduziram à queda mortal de Davi: abandona seu dever de dirigir o exército, como era então costume habitual entre os reis, preferindo ficar confortavelmente na cidade; passa o dia ocioso, levantando-se ao entardecer e passeando tranquilamente pelo terraço; deixa a vista vagar de um modo indiscreto e imprudente; aceita a tentação; envia mensageiros para informar-se da possibilidade de atuar de acordo com o seu desejo; e finalmente comete o gravíssimo pecado de adultério. A tudo isto se seguiu um pecado talvez ainda maior: planejar meticulosamente a morte do legítimo esposo de Bet-Sabe, Urias o hitita, um de seus oficiais mais leais, valente e generoso, enumerado entre o grupo dos grandes heróis do reino davídico em 2 Sam 23, 39.

O relato mostra, paradigmaticamente, a impressionante capacidade do coração humano de fazer o mal, apesar das boas disposições previamente existentes e da abundância de dons divinos recebidos. Davi age de uma forma sem precedentes se consideramos a fé que havia mostrado no passado; porém deixou que a inveja e a sensualidade corrompessem a sua vontade. O ensinamento que o texto sagrado oferece é evidente: quando a busca do bem e do progresso na amizade com Deus é negligenciada, a vontade tende a distorcer-se até obscurecer totalmente a inteligência, levando o homem a cometer os crimes mais dolosos. Todos os cristãos podem cair neste perigo; por isso São Josemaria deixou escrito: Não te assustes nem desanimes ao descobrir que tens erros..., e que erros! Luta por arrancá-los. E, desde que lutes, convence-te de que é bom que sintas todas essas fraquezas, porque, de outro modo, serias um soberbo: e a soberba afasta de Deus. [15].

O profeta Natã será o meio usado por Deus para tirar o rei da sua triste situação. Natã utilizará uma parábola de inusitada beleza, uma das primeiras que encontramos na Bíblia, apresentando-a como um fato real. O profeta expõe o caso de um homem rico que tinha ovelhas e bois em abundância, mas que, para acolher um hóspede, não querendo fazer uso de seus bens, tira de um homem pobre da cidade o único que tinha e amava, uma ovelhinha que era para ele como uma filha[16]. Diante da indignação de Davi, Natã mostrará ao rei que ele era esse homem rico, que havia abusado da confiança de Urias e o havia despojado do seu maior bem. Davi não pode deixar de reconhecer o seu grave pecado e a enorme injustiça que tinha cometido: Pequei contra o Senhor[17]. Deve-se acrescentar algo particularmente notável na recriminação de Natã: a nobre delicadeza, que não desfoca a claridade com que o profeta fez o rei compreender o mal gravíssimo que tinha cometido, levando-o assim a uma verdadeira e sentida compunção.

Com as suas palavras, Natã consegue despertar a consciência e a fé de Davi, e o anima a buscar o perdão divino, que lhe é dado ao confessar o seu pecado diante do Senhor. Foi o início de uma nova vida, que levou o rei a aproximar-se ainda mais do Deus de Israel. Temos de um exemplo vivo de como no caminho para a santidade, é importante lutar para não cair, mais é ainda mais importante não ficar caído no chão[18]. Segundo uma antiga tradição, a dor manifestada por Davi diante da consciência do seu pecado ficou registrada no Salmo 50, conhecido como o salmo Miserere. Nesta oração, por um lado o salmista reconhece com verdadeira dor o mal cometido, confessa o seu pecado, que significa uma ofensa a Deus e se dirige a Ele pedindo-lhe que pela sua bondade e misericórdia o purifique[19]; por outro lado, mostra a sua confiança plena na misericórdia divina, pois reconhece que a graça de Deus é mais forte do que a sua miséria[20], e faz um propósito firme e decidido: se compromete, como manifestação do seu arrependimento sincero, a mudar de vida e a mostrar aos homens os caminhos de Deus para que se convertam[21].

O Salmo reflete bem qual devia ser a disposição interior de Davi quando percebeu claramente a magnitude do seu pecado. Não pensou que estivesse perdido, não deixou que a sua queda o mantivesse afastado de Deus, mas o levou a buscar a misericórdia divina, sabendo que era muito maior do que o seu pecado, por mais terrível que fosse. Um exemplo que a Escritura oferece para as nossas vidas, para a nossa mesquinhez e debilidade, que a soberba se empenha em tornar grande. Neste torneio de amor, não nos devem entristecer as nossas quedas, nem mesmo as quedas graves, se recorremos a Deus com dor e bom propósito, mediante o sacramento da Penitência. O cristão não é nenhum colecionador maníaco de uma folha de serviços imaculada[22]. Tantas vezes somos nós mesmos, por assim dizer, que não estamos dispostos a nos perdoar, porque gostaríamos de não falhar, ser perfeitos, irrepreensíveis.

O Senhor nos ama do jeito que somos. “Ele sempre nos espera, ama-nos, perdoou-nos com o seu sangue e perdoa-nos cada vez que nos dirigimos a Ele para pedir o perdão”[23]. Ele é nosso Pai, que nos conhece melhor do que nós mesmos e responde à nossa debilidade com a sua infinita paciência; de fato, o caminho para a santidade “é uma espécie de diálogo entre a nossa fraqueza e a paciência de Deus – um diálogo, que, se entrarmos nele, nos dá esperança”[24]. Deus não quer que condescendamos com as nossas faltas: deseja e nos ajuda para que caminhemos pelos caminhos da vida interior com elegância, com soltura, sem termos medo de cair porque sabemos que estamos nas suas mãos, prontas a nos perdoar e a nos abençoar; porque sabemos que, se cairmos, com a sua graça que nunca nos faltará podemos voltar a nos levantarmos e a caminhar melhor que antes. Por isso, “a paciência de Deus deve encontrar em nós a coragem de regressar a Ele, qualquer que seja o erro, qualquer que seja o pecado na nossa vida”[25].

De tudo isso nos dá exemplo Davi, que sabe oferecer ao Senhor o que Ele mais deseja: um coração contrito[26], amante, completamente dirigido a Ele, com a confiança posta nele. Todos podemos nos dirigir a esse rei bíblico que, com todas as suas debilidades, soube ser “um orante apaixonado, um homem que sabia o que quer dizer suplicar e louvar”[27].

A. Aranda e Miguel Ángel Tabet


[1] Catecismo da Igreja Católica, n. 2579.

[2] Cfr. particularmente de 1 Sm 16 a 1 Re 2, 12. Cfr. também 1Cr 10-29 e Sir7, 1-11.

[3] Bento XVI, Audiência Geral, 15-II-2012.

[4] 1 Sm 16, 7.

[5] Cf 2 Sm 2, 4; 5, 3.

[6] 2 Sm 5, 12.

[7] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 46.

[8] 1 Sm 17, 26. 36.

[9] 1 Sm 17, 45.

[10] 1 Sm 17, 37.

[11] São Josemaria Caminho, n. 472.

[12] São Josemaria Forja, 525.

[13] Mons. Javier Echevarría, Carta Pastoral sobre o "Ano da Fé", 29-IX-2012, n. 6.

[14] Cf. 2 Sm 11.

[15] São Josemaria Forja, 181.

[16] Cf. 2 Sm 12, 1-14.

[17] 2 Sm 12, 13.

[18] Cf. Francisco, O nome de Deus é misericórdia, Planeta, 2016.

[19] Cf. Sal 50, 3-9.

[20] Cf. Sal 51 (50): 9-14.

[21] Cf. Sal 51 (50), 15-18.

[22] São Josemaria, É Cristo que passa, n. 75.

[23] Francisco, Regina coeli. San Pedro Square. II Domingo de Páscoa ou Divina Misericórdia, 7 de abril de 2013

[24] Francisco, Homilia na Basílica de São João de Latrão. II Domingo de Páscoa ou Divina Misericórdia, 7 de abril de 2013. Tomada de posse da cátedra do Bispo de Roma.

[25] Ibid.

[26] Sal 51 (50), 19.

[27] Bento XVI, Audiência Geral, Plaza de San Pedro, 22 de junho de 2011.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br

Os sofrimentos de Cristo e os nossos

Thoom | Shutterstock

OS SOFRIMENTOS DE CRISTO E OS NOSSOS

Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ) 

Nesta primeira semana da Quaresma, gostaria de refletir sobre o início da Paixão do Senhor com a sua angústia ante a morte que se avizinhava (cf. Mc 14,33-34). Dá a ver que o cristão, mesmo nos piores sofrimentos, jamais deixa de rezar e se entregar, de todo coração, a Deus. 

Valho-me da obra “Meditações sobre a Paixão do Senhor”, de São Charles de Foucauld (Paulus, 2016, p. 17-18), canonizado, em 15 de maio de 2022, em Roma, pelo Papa Francisco. Suas reflexões, a partir do próprio texto do Evangelho, se revestem de um aspecto vivo e prático para cada um de nós. Acompanhemos! 

Diante da passagem “Levou consigo Pedro, Tiago e João; e começou a ter pavor e a angustiar-se. Disse-lhes: ‘A minha alma está numa tristeza mortal; ficai aqui e vigiai’ (Mc 14,33-34), o santo se põe a refletir sobre o sofrimento. De um modo muito particular, medita sobre a principal dor do Senhor naquele momento e que há de ser também a nossa: a da perda de tantos seres humanos que, de modo totalmente livre, rejeitam o seu salutar plano de amor para conosco.  

Escreve Foulcauld: “(…) Vós nos ensinais a escolher o sofrimento, amar o sofrimento para vos imitar quando sofremos no interior de nossa alma. Sofrer de quê? De vermos a perda eterna de tantos homens, membros vossos, e de sermos incapazes de impedi-lo. Foi este, sem dúvida, o vosso sofrimento mais amargo… Sofrer por todos os pecados do mundo que ofendem a Deus e mancham as almas, pelas dores pessoais de nossos corações, pelas traições de nossos amigos, dos excessivos sofrimentos corporais. Essas coisas, enquanto vivermos neste mundo, é inevitável que façam o nosso coração sofrer, a não ser que sobrevenha um milagre espiritual” (p. 17).  

É interessante notar que todos aqueles sofrimentos do Deus feito homem por amor de nós, são as dores de cada um. Tais dores não constituem demérito algum. Ao contrário, são inerentes à natureza das criaturas feridas pelo pecado, mas, se vividas em união com Deus, tornam-se providenciais, pois se revestem do caráter de ascese (= exercício) passiva, ou seja, de suportar um sofrimento não desejado, porém abraçado na íntima união com o Senhor.  

Por isso, segue o santo eremita do Saara a refletir: “Sofrer pela traição de nossos amigos, pela morte de nossos parentes, pela violência de nossas excessivas dores corporais, nada disso é imperfeição, de modo absoluto. O que é necessário, involuntário, não pode constituir imperfeição. Essa opressão do coração, esse sofrimento interior é necessário, natural no homem, enquanto passível, isto é, enquanto a alma está unida a este corpo mortal, e isso por vontade de Deus. Não está em nosso poder o não sofrer por essas coisas, e não devemos nem sequer procurar sabê-lo, porque buscar essa impassibilidade, um dia sonhada pelos estoicos, equivaleria a procurar uma fuga diante da ordem estabelecida por Deus. Somente Deus pode colocar-nos em tal impassibilidade neste mundo, com algum milagre espiritual. Nós, porém, não devemos nem desejar nem pedir esse milagre, porque não seria mérito para nós, a partir do fato de que Deus não o fez para Jesus… Nós devemos seguir o exemplo de Jesus, e mesmo sofrendo com isso, e sofrendo alguma vez até à morte uma dor que é agradável à vontade de Deus para ele se unir com a nossa natureza, devemos conformar plenamente, e com perfeição, a nossa vontade com a dele, e nunca deixar de lhe dizer, no mais profundo do coração: ‘Faça-se a vossa vontade, e não a minha’” (p. 17-18). 

Certo é que Deus não quer o sofrimento, mas, dadas as limitações das criaturas, o padecimento existe e o Senhor o permite. Todavia, importa recordar, com o grande Santo Agostinho de Hipona, falecido em 430, que o próprio Deus não permitiria esse mal se dele não pudesse tirar bens ainda maiores (cf. Enchridion, XXVIII). Que bens são estes? – São tantos que, às vezes, sequer podemos imaginar. Sim, o nosso sofrimento natural (todos sofremos!), se unido ao de Cristo (nem todos se unem a Ele!), torna-se sobrenaturalizado, pois a graça divina nos capacita a oferecer as nossas dores e angústias ao Pai em união com Cristo. Tais sofrimentos – em si mesmos, naturais – passam – e aqui entra o sobrenatural – a ser corredentores, pois dão uma moldura nova à Paixão de Cristo nos nossos dias. Por isso, São Paulo pôde exclamar: “Completo em minha carne o que falta à Paixão de Cristo” (Cl 1,24). 

Como entender essa fala do Apóstolo? – É Dom Estêvão Bettencourt, OSB, quem nos ajuda com sua oportuna exegese do referido texto. Sim, diz o sábio monge: “compreende-se que, se no plano do merecimento nada falta à Paixão de Cristo (seu valor é infinito), no plano da aplicação ou do desdobramento, algo lhe falta naturalmente, algo que depende estritamente do fator ‘tempo’, algo que somente com a existência sucessiva das gerações cristãs lhe pode advir”. 

“Em outros termos: a Paixão de Cristo logrou imediatamente a plenitude de seus frutos apenas na santíssima humanidade de Cristo; somente esta ressuscitou como nova criatura (cf. 2Cor 5,17), isenta de todas as consequências do pecado. Depois disto, é preciso, por desígnio de Deus, que os cristãos, um por um, percorram o mesmo caminho trilhado pelo Senhor, isto é, padeçam em união com Cristo uma parcela da Paixão redentora, assimilando-a a si, a fim de conseguir os efeitos desta no dia da ressurreição dos corpos. Enquanto, pois, houver cristãos neste mundo a trilhar tal caminho, ou seja, até o fim dos séculos, poder-se-á dizer que a Paixão de Cristo se vai estendendo ou desdobrando; ela vai tomando novos e novos suportes; vai adquirindo vulto ou configuração própria em novos sujeitos. Destarte São Paulo afirma que, quando um cristão sofre em espírito cristão, isto é, como membro vivo do Corpo Místico, já não é um simples filho de Adão que padece em castigo do pecado, mas é o Cristo que nele sofre para estender a ele a obra da Redenção”. 

E continua o monge: “Na base dessas ideias, Pascal († 1662) bem podia escrever: ‘Jésus sera en agonie jusqu’à la fin du monde. – Jesus estará em agonia até o fim do mundo’. Para tornar esta afirmação ainda mais clara, tenham-se em vista os dizeres de São Paulo aos Gálatas: ‘Estou crucificado com Cristo. E, se vivo, não sou mais eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim’ (Gl 2,19-20). Esta frase se poderia também assim construir: ‘… E, se padeço, não sou mais eu que padeço, é Cristo que padece em mim; é Cristo que prolonga sua paixão em mim, dando-lhe novo suporte, nova configuração concreta’”. 

“E, da mesma forma que São Paulo, todo cristão que viva na graça santificante, pode asseverar que é Cristo quem nele vive e padece, não somente nas horas solenes e extraordinárias, mas também nos momentos mais simples da vida cotidiana. Santo Agostinho, consciente dessa realidade, falava da ‘Paixão total de Cristo, que sofreu enquanto é nossa cabeça, e que continua a sofrer em seus membros, isto é, em nós’ (In Ps LXI Migne 36, 731)” (https://cooperadoresdaverdade.com/amp/o-que-quer-dizer-completo-em-minha-carne-o-que-falta-as-tribulacoes-de-cristo/). 

Possam estas reflexões ser de grande ajuda a cada um de nós cada dia da nossa vida, mas, de modo muito especial, neste tempo quaresmal. Tempo em que somos, com um olhar todo singular, chamados a meditar sobre o amor de Deus por você e por mim. Amor que deu o seu próprio Filho para morrer por nós quando ainda éramos pecadores (cf. Rm 5,8).

Fonte: https://www.cnbb.org.br/

Santa Teresa Eustochio Verzeri

Santa Teresa Eustochio Verzeri | arquisp
03 de março

Santa Teresa Eustochio Verzeri

Ana Maria Teresa Eustochio Josefa Catarina Inácia Verzeri, ou como apenas Teresa Eustochio Verzeri, como ficou conhecida, nasceu no dia 31 de julho de 1801, em Bérgamo, Itália. Era a primogênita dos sete filhos de Antonio Verzeri e da condessa Helena Pedrocca-Grumelli. Desde criança, aprendeu de sua mãe, cristã muito devota, a conhecer e a amar a Deus acima de tudo e a qualquer preço.

Os estudos iniciais ela fez em casa. Inteligente, dotada de espírito aberto, quando menina, queria ser rapaz, para empreender nobres façanhas, como Santo Inácio, nas fileiras de Cristo. Da infância até a idade madura, deixou-se iluminar pelo Espírito da Verdade, percorrendo o caminho de libertação, de pureza, de retidão e de simplicidade que a levou a buscar "Deus só". Interiormente, viveu a particular experiência mística da "ausência de Deus", enfrentando um dos problemas da experiência religiosa de hoje: o peso da solidão humana diante da sensação inquietante de distância e de silêncio de Deus.

Entretanto, com uma fé inabalável, Teresa não deixou de confiar e de se abandonar ao Deus Vivo, Pai providente e misericordioso, a quem entregou a própria vida, em atitude de obediência dialogante. Como em Jesus, seu grito de solidão se transformou em oferta total de si mesma por amor.

Após uma experiência de vida religiosa entre as monjas beneditinas de Santa Grata, em Bérgamo, percebeu que sua vocação era o apostolado ativo. Orientada pelo Mons. Benaglio, seu diretor espiritual, aos vinte e cinco anos iniciou obras de assistência às crianças pobres e abandonadas. Atraindo para seu ideal jovens generosas e disponíveis, com as quais em 1831, fundou a Congregação das Filhas do Sagrado Coração de Jesus.

A primeira metade de 1800, foi um período de grandes transformações na história da Itália, da sociedade de Bérgamo e do mundo, marcado por mudanças políticas, por revoluções, por perseguições que não pouparam a Igreja, atingida, também, pela crise de valores, resultante da Revolução Francesa. Ela percebeu com clareza a urgência e as necessidades do seu tempo e abraçou sua missão, de orientadora espiritual, evangelizadora e pedagoga.

Após consolidar sua obra em várias cidades italianas, Teresa faleceu no dia 03 de março de 1852, num gesto total de oblação a Deus. Foi beatificada pelo Papa Pio XII em 1946, e canonizada pelo Papa João Paulo II, em 2001. As suas relíquias são veneradas na capela da escola das Filhas do Sagrado Coração de Jesus, em Bérgamo; recebendo as homenagens no dia de sua morte.

Como educadora, pautou sua ação e seus escritos na pedagogia do elogio, concretizada no binômio: bondade-firmeza e no respeito à liberdade. Animadas por esse espírito, as Filhas do Sagrado Coração de Jesus continuam, hoje, a missão de Santa Teresa Eustochio Verzeri, na Itália, no Brasil, na Argentina e Bolívia, na República Centro-Africana e em Camarões, na Índia e na Albânia.

*Fonte: Pia Sociedade Filhas de São Paulo Paulinas http://www.paulinas.org.br

https://arquisp.org.br/

I Pregação da Quaresma 2023 "Renovar a novidade" – texto integral

O Frei Raniero durante uma pregação da Quaresma | Vatican News

O pregador da Casa Pontifícia, cardeal Raniero Cantalamessa, OFMCap, propôs à Cúria Romana, nesta sexta-feira, 03 de março, a primeira pregação da Quaresma intitulada "Renovar a novidade".

Fr. Raniero Card. Cantalamessa, OFMCap

“IPSA NOVITAS INNOVANDA EST”

Renovar a novidade

Primeira Pregação, Quaresma de 2023

A história da Igreja do final do século XIX e início do século XX nos deixou uma amarga lição, que não deveríamos esquecer para não repetir o erro que a provocou. Falo do atraso (antes, da recusa) em se dar conta das mudanças ocorridas na sociedade, e da crise do Modernismo, que foi a sua consequência.

Quem estudou, mesmo superficialmente, aquele período, conhece o dano que daí acarretou tanto para um lado quanto para o outro, isto é, seja para a Igreja, seja para os chamados “modernistas”. A falta de diálogo, por um lado, levou alguns dos mais conhecidos modernistas a posições sempre mais extremas e por terminar claramente hereticais; por outro, privou a Igreja de enormes energias, provocando lacerações e sofrimentos sem sim em seu interior, fazendo-a debruçar sempre mais sobre si mesma e perder o passo com os tempos.

O Concílio Vaticano II foi a iniciativa profética para recuperar o tempo perdido. Ele realizou uma renovação, que, certamente, não é o caso de ilustrar novamente nesta sede. Mais do que seus conteúdos, interessa-nos, neste momento, o método inaugurado por ele, que é o de caminhar na história, ao lado da humanidade, buscando discernir os sinais dos tempos.

A história e a vida da Igreja não se detiveram com o Vaticano II. Cuidado ao fazer dele o que se tentou fazer com o Concílio de Trento, ou seja, uma linha de chegada e uma meta imóvel. Se a vida da Igreja se detivesse, seria como acontece a um rio, que chega a uma barreira: transformar-se-ia, inevitavelmente, em um pântano ou um brejo.

“Não se deve pensar – escrevia Orígenes no III século – que seja o bastante sermos renovados apenas uma vez; é preciso renovar a própria novidade: ‘Ipsa novitas innovanda est’[1]. Antes dele, o recém-Doutor da Igreja Santo Irineu escrevera: A verdade revelada é “como um precioso licor contido em um valioso vaso. Por obra do Espírito Santo, ela rejuvenesce continuamente e faz rejuvenescer também o vaso que a contém”[2]. O “vaso” que contém a verdade revelada é a tradição viva da Igreja. O “precioso licor” é, em primeiro lugar, a Escritura, mas a Escritura lida na Igreja que, é a definição mais justa da Tradição. O Espírito é, pela sua natureza, novidade. O Apóstolo exorta os batizados a servirem a Deus “na novidade do Espírito e não na velhice da letra” (Rm 7,6).

Não apenas a sociedade não se deteve ao tempo do Vaticano II, mas sofre uma aceleração vertiginosa. As mudanças que um tempo ocorriam em um ou dois séculos, hoje ocorrem em uma década. Esta necessidade de contínua renovação não é outra coisa senão a necessidade de contínua conversão, estendida desde o fiel, individualmente, até Igreja inteira, em sua componente humana e histórica. A “Ecclesia semper reformanda”. O verdadeiro problema, portanto, não está na novidade; está mais no modo de encará-la. Explico-me. Toda novidade e toda mudança se encontram diante de uma encruzilhada; pode levar a duas estradas opostas: ou a do mundo, ou a de Deus; ou o caminho da morte ou caminho da vida. A Didaqué, um escrito redigido enquanto vivia ao menos um dos doze apóstolos, já ilustrava aos fiéis estes dois caminhos.

Agora temos um meio infalível para tomar sempre o caminho da vida e da luz: o Espírito Santo. É a certeza que Jesus deu aos apóstolos antes de deixá-los: “E eu pedirei ao Pai, e ele vos dará um Paráclito, para que permaneça sempre convosco” (Jo 14,16). E ainda: “O Espírito da Verdade, então ele vos guiará a toda a Verdade” (Jo 16,13). Não fará tudo de uma vez, ou de uma vez por todas, mas à medida que as situações se apresentarem. Antes de deixá-los definitivamente, no momento da Ascensão, o Ressuscitado assegura novamente aos seus discípulos a assistência do Paráclito: “Recebereis – diz – a força do Espírito Santo que virá sobre vós e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, em toda a Judeia e na Samaria, até os confins da terra” (At 1,8).

O intuito das cinco pregações da Quaresma que hoje iniciamos, dito muito simplesmente, é justamente este: encorajar-nos a pôr o Espírito Santo no coração de toda a vida da Igreja, e, em particular, neste momento, no coração dos trabalhos sinodais. Acolher, em outras palavras, o convite urgente que o Ressuscitado dirige, no Apocalipse, a cada uma das sete igrejas da Ásia Menor: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Ap 2,7).

É o único modo, além do mais, para não permanecer, eu mesmo, alheio ao empenho em ato pelo sínodo. Em uma das minhas primeiras pregações à Casa Pontifícia, há 43 anos, disse na presença de São João Paulo II: “Tenho continuado a exercer por toda a vida o único encargo que fazia desde criança”. E expliquei em que sentido. Os meus avós maternos cultivavam, por meação, um vasto terreno colinoso. Em junho ou julho, havia a colheita, toda manual, com a foice, encurvados sob o sol. Era uma fadiga enorme. Eu e meus primos éramos encarregados de levar água continuamente aos ceifadores. É isso, eu disse, que tenho continuado a fazer pelo resto da vida. Os ceifadores mudaram, que agora são os operários da vinha do Senhor, e mudou a água, que agora é a Palavra de Deus. Um encargo, o meu, muito menos fadigoso, para dizer a verdade, daquele dos trabalhadores do campo, mas também esse, espero, útil e de algum modo necessário.

Nesta primeira pregação, limito-me em acolher a lição que nos vem da Igreja nascente. Gostaria de mostrar, em outras palavras, como o Espírito Santo guiou os apóstolos e a comunidade cristã a dar os primeiros passos na história. Quando as palavras de Jesus acima recordadas sobre a assistência do Paráclito foram postas por escrito por João, a Igreja já as havia experimentado na prática, e é justamente tal experiência, dizem-nos os exegetas, que se reflete nas palavras do evangelista.

Os Atos dos Apóstolos nos mostram uma Igreja que é, passo a passo, “conduzida pelo Espírito”. A sua guia se exerce não apenas nas grandes decisões, mas também nas coisas de menor importância. Paulo e Timóteo querem pregar o evangelho na província da Ásia, mas “o Espírito Santo os havia impedido”; tentam ir rumo à Bitínia, mas, está escrito, “o Espírito de Jesus os impediu” (At 16,6ss.). Compreende-se, em seguida, o porquê desta guia assim próxima: o Espírito Santo impulsionava deste modo a Igreja nascente a sair da Ásia e olhar para um novo continente, a Europa (cf. At 16,9). Paulo chega a definir-se, em suas escolhas, “prisioneiro no Espírito” (At 20,22).

Não é um caminho retilíneo e sem obstáculos o da Igreja nascente. A primeira grande crise é aquela relativa à admissão dos gentios na Igreja. Não é necessário recordar o seu desenrolar. Interessa-nos apenas recordar como é resolvida a crise. Pedro vai ao encontro de Cornélio e dos pagãos? É o Espírito que lhe ordena (cf. At 10,19; 11,12). E como é motivada e comunicada a decisão tomada pelos apóstolos em Jerusalém de acolher os pagãos na comunidade, sem obrigá-los à circuncisão e a toda a legislação mosaica? Foi resolvida com aquelas extraordinárias palavras iniciais: “Pois decidimos, o Espírito Santo e nós...” (15,28).

Não se trata de fazer arqueologia da Igreja, mas de trazer à luz, sempre de novo, o paradigma de toda escolha eclesial. Não é preciso muito esforço, de fato, para perceber a analogia que há entre a abertura que então se realizou em relação aos gentios, com aquela que hoje se impões em relação aos leigos, em particular, às mulheres, e de outras categorias de pessoas. Por isso, vale a pena recordar a motivação que levou Pedro a superar as suas perplexidades e a batizar Cornélio e a sua família. Lemos nos Atos:

Pedro estava ainda falando, quando o Espírito Santo desceu sobre todos os que estavam escutando a palavra. Os fiéis de origem judaica, que tinham vindo com Pedro, ficaram admirados de que o dom do Espírito Santo fosse derramado também sobre os gentios. De fato, eles os ouviam falar em línguas e engrandecer a Deus. Então Pedro falou: “Podemos, por acaso, negar a água do Batismo a estas pessoas, que receberam, como nós, o Espírito Santo?” (At 10,44-47).

Chamado a justificar a sua conduta em Jerusalém, Pedro narra o que acontecera na casa de Cornélio e conclui dizendo:

Então, eu me lembrei do que o Senhor havia dito: “João batizou com água, mas vós sereis batizados com o Espírito Santo”. Se Deus concedeu a eles o mesmo dom que a nós, que acreditamos no Senhor Jesus Cristo, quem seria eu para opor-me à ação de Deus? (At 11,16-17).

Se olharmos bem, é a mesma motivação que levou os Padres do Concílio Vaticano II a redefinir o papel dos leigos na Igreja, isto é, a doutrina dos carismas. Conhecemos bem o texto, mas é sempre útil trazê-lo à memória:

Este mesmo Espírito Santo não só santifica e conduz o Povo de Deus por meio dos sacramentos e ministérios e o adorna com virtudes, mas, “distribuindo a cada um os seus dons como lhe apraz” (1Cor 12,11), distribui também graças especiais entre os fiéis de todas as classes, as quais os tornam aptos e dispostos a tomar diversas obras e encargos, proveitosos para a renovação e cada vez mais ampla edificação da Igreja, segundo aquelas palavras: “a cada qual se concede a manifestação do Espírito em ordem ao bem comum” (1Cor 12,7). Estes carismas, quer sejam os mais elevados, quer também os mais simples e comuns, devem ser recebidos com ação de graças e consolação[3].

Estamos diante da redescoberta da natureza não só hierárquica, mas também carismática da Igreja. São João Paulo II, na “Novo millennio ineunte” (n. 45), torná-la-á ainda mais explícita, definindo a Igreja como hierarquia e como koinonia. Em uma primeira leitura, a recente constituição sobre a reforma da Cúria “Praedicate Evangelium” (para além de todos os aspectos jurídicos e técnicos sobre os quais sou um perfeito ignorante) me deu a impressão de ser um passo à frente nessa mesma direção: isto é, em aplicar o princípio selado pelo Concílio em um setor particular da Igreja, que é o seu governo, e a um maior envolvimento dos leigos e das mulheres.

Mas agora devemos dar um passo à frente. O exemplo da Igreja apostólica não nos ilumina apenas sobre os princípios inspiradores, isto é, sobre a doutrina, mas também sobre a praxe eclesial. Diz-nos que nem tudo se resolve com as decisões tomadas em um sínodo, ou com um decreto. Há a necessidade de traduzir na prática tais decisões, a chamada “recepção” dos dogmas. E, para isso, são necessários tempo, paciência, diálogo, tolerância; às vezes, também o compromisso. Quando é feito no Espírito Santo, o compromisso não é uma cessão, ou um desconto dado sobre a verdade, mas é caridade e obediência às situações. Quanta paciência e tolerância teve Deus, após ter dado o Decálogo ao seu povo! Quanto teve que esperar longamente – e deve ainda – esperar pela sua recepção!

Em toda a questão acima recordada, Pedro aparece claramente como o mediador entre Tiago e Paulo, ou seja, entre a preocupação da continuidade e aquela da novidade. Nesta mediação, assistimos a um incidente, que pode nos ser de auxílio também hoje. O incidente é aquele de Paulo que, em Antioquia, censura Pedro de hipocrisia por ter evitado se sentar à mesa com pagãos convertidos. Ouçamos o ocorrido de sua viva voz:

Mas, quando Cefas chegou a Antioquia, opus-me a ele abertamente, pois merecia censura. Com efeito, antes que chegassem alguns de junto de Tiago, ele tomava refeição como os não judeus. Mas, depois que eles chegaram, Cefas começou a esquivar-se e a afastar-se, por medo dos da circuncisão (Gl 2,11-12).

Os “conservadores” do tempo censuravam Pedro por ter ido muito além, indo ao encontro do pagão Cornélio; Paulo lhe censura por não ter ido bem mais além. Paulo é o santo que mais admiro e amo. Mas, neste caso, estou convencido de que se deixou levar (não é a única vez!) pelo seu caráter de fogo. Pedro em nada pecou por hipocrisia. A prova é que, em outra ocasião, Paulo fará, ele mesmo, exatamente o que fez Pedro em Antioquia. Em Listra, ele fez circuncidar o seu companheiro Timóteo “por causa – está escrito – dos judeus que se encontravam nessas regiões” (At 16,3), isto é, para não escandalizar ninguém. Aos Coríntios, escreve que se fez “judeu com os judeus, a fim de ganhar os judeus” (1Cor 9,20) e, na Carta aos Romanos, recomenda ira o encontro de quem ainda não chegou à liberdade da qual ele goza (Rm 14,1ss.).

O papel de mediador que Pedro exerceu entre as tendências opostas de Tiago e de Paulo continua nos seus sucessores. Não certamente (e isso é um bem para a Igreja) de modo uniforme em cada um deles, mas segundo o carisma próprio de cada um que o Espírito Santo (e, presume-se, os cardeais abaixo dele) têm considerado o mais necessário em um dado momento da história da Igreja.

Diante dos acontecimentos e realidades políticas, sociais e eclesiais, somos levados a nos colocar imediatamente de um lado e a demonizar aquele adverso, a desejar o triunfo da nossa escolha sobre a dos adversários (se começa uma guerra, cada um reza ao mesmo Deus para dar a vitória aos próprios exércitos e aniquilar os do inimigo!). Não digo que seja proibido ter preferências: em campo político, social, teológico e assim por diante, ou que seja possível não as ter. Jamais deveríamos, contudo, pretender que Deus se coloque do nosso lado contra o adversário. E nem mesmo pedir isso a quem nos governa. É como pedir a um pai para escolher entre dois filhos; é como dizer-lhe: “Escolhe: ou eu, ou o meu adversário; mostra claramente de que lado estás!”. Deus está com todos e, por isso, não está contra ninguém! É o pai de todos.

O agir de Pedro em Antioquia – como também o de Paulo em Listra – não era hipocrisia, mas adaptação às situações, ou seja, a escolha do que, em uma certa situação, favorece o bem superior da comunhão. É sobre este ponto que eu gostaria de continuar e concluir esta primeira meditação, também porque isto nos permite passar do que diz respeito à Igreja universal ao que diz respeito à Igreja local, antes, à própria comunidade, ou família, e à vida espiritual de cada um de nós (que é o que esperamos, penso, de uma meditação quaresmal!).

Há uma prerrogativa de Deus na Bíblia que os Padres amavam enfatizar: a synkatabasis, isto é, a condescendência. Para São João Crisóstomo, ela é uma espécie de chave de leitura de toda a Bíblia. No Novo Testamento, esta mesma prerrogativa de Deus é expressa com o termo benignidade (chrestotes). A vinda de Deus na carne é vista como a manifestação suprema da benignidade de Deus: “Quando se manifestou a benignidade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor pela humanidade” (Tt 3,4).

benignidade – hoje também diríamos cortesia – é algo diverso da simples bondade; é ser bom em relação aos outros. Deus é bom em si mesmo e é benigno conosco. Ela é um dos frutos do Espírito (Gl 5,22); é uma componente essencial da caridade (1Cor 13,4) e é indicador de ânimo nobre e superior. Ela ocupa um lugar central na parênese apostólica. Lemos, por exemplo, na Carta aos Colossenses:

Portanto, como eleitos de Deus, santos e amados, vesti-vos com sentimentos de compaixão, com bondade, humildade, mansidão, paciência; suportai-vos uns aos outros e, se um tiver motivo de queixa contra o outro, perdoai-vos mutuamente. Como o Senhor vos perdoou, fazei assim também vós (Cl 3,12-13).

Este ano, celebramos o quarto centenário da morte de um santo que foi um modelo excelso desta virtude, em uma época também ela marcada por ásperas controvérsias: São Francisco de Sales. Todos deveríamos nos tornar, na Igreja, um pouco mais condescendentes e tolerantes, menos arraigados em nossas certezas pessoais, conscientes de quantas vezes tivemos que reconhecer dentro de nós que estávamos errados a respeito de uma pessoa ou de uma situação, e de quantas vezes tivemos que nos adaptar também nós às situações. Em nossas relações eclesiais, não há, por sorte – e jamais deveria haver –, aquela propensão ao insulto e ao vilipêndio do adversário, que se nota em certos debates políticos e que tanto dano acarreta à convivência civil pacífica.

Há alguém, é verdade, em relação ao qual é justo e necessário ser intransigente, mas esse alguém sou eu mesmo, é o meu eu. Somos inclinados, por natureza, a ser intransigentes com os outros e indulgentes conosco mesmos, enquanto deveríamos nos propor em fazer justamente o contrário: severos conosco mesmos, bondosos com os demais. Este propósito, levado a sério, bastaria sozinho para santificar a nossa Quaresma. Dispensar-nos-ia de qualquer outro tipo de jejum e nos disporia a trabalhar com mais fruto e mais serenidade em cada âmbito da vida da Igreja.

Um ótimo exercício nesse sentido consiste em sermos honestos, no tribunal do próprio coração, em relação à pessoa com quem estamos em desacordo. Quando percebo que estou submetendo alguém a acusação dentro de mim, devo prestar atenção para não me colocar imediatamente da minha parte. Devo parar de passar e repassar as minhas razões como alguém que masca um chiclete, e buscar as minhas razões para me colocar, ao invés, no lugar do outro, para compreender suas razões e o que ele também poderia dizer a mim.

Este exercício não deve ser feito somente em relação à pessoa individualmente, mas também em relação à corrente de pensamento com a qual estou em desacordo e à solução por ela proposta a um certo problema em discussão (no Sínodo ou em outro âmbito). Santo Tomás de Aquino nos dá o exemplo: ele pressupõe a cada sua tese as razões do adversário, que jamais banaliza ou ridiculariza, mas leva a sério e a elas responde com o seu “Sed contra”, isto é, com as razões que considera mais conformes à fé e à moral. Perguntemo-nos (eu, por primeiro): também nós fazemos assim?

Jesus diz: “Não julgueis, e não sereis julgados (...). Por que reparas no cisco no olho do teu irmão, e a trave no teu próprio olho não percebes?” (Mt 7,1-3). Pode-se viver, perguntamo-nos, sem jamais julgar? A capacidade de julgar não faz parte da nossa estrutura mental e não é um dom de Deus? Na redação de Lucas, o mandamento de Jesus: “Não julgueis, e não sereis julgados” é seguido, imediatamente, como para explicitar o sentido destas palavras, pelo mandamento: “Não condeneis, e não sereis condenados” (Lc 6,37). Não se trata, portanto, de eliminar o juízo do nosso coração, mas de tirar o veneno do nosso juízo! Ou seja, o ódio, a condenação, o ostracismo.

Um pai, um superior, um confessor, um juiz, quem quer que tenha alguma responsabilidade sobre os demais, deve julgar. Às vezes, o julgar é, antes, justamente o tipo de serviço ao qual alguém é chamado a exercer na sociedade ou na Igreja. A força do amor cristão está no fato de que ele é capaz de mudar de valor até ao juízo e, de ato de não-amor, torná-lo um ato de amor. Não com as nossas forças, mas graças ao amor que “foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5).

Como conclusão, façamos nossa a belíssima oração atribuída a São Francisco de Assis (talvez não seja sua, mas reflete perfeitamente o seu espírito):

Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz.

Onde houver ódio, que eu leve o amor.

Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.

Onde houver discórdia, que eu leve a união.

Onde houver dúvida, que eu leve a fé.

Onde houver erro, que eu leve a verdade.

Onde houver desespero, que eu leve a esperança.

Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.

Onde houver trevas, que eu leve a luz.

E acrescentemos:

Onde houver malignidade, que eu leve a benignidade.

Onde houver aspereza, que eu leve a gentileza!

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Tradução de Fr. Ricardo Farias, ofmcap

[1] Cf. Orígenes, In Rom. 5,8; PG 14, 1042.

[2] Cf. Santo Irineu, Adversus Haereses, III, 24,1.

[3]Lumen gentium, 12.

quinta-feira, 2 de março de 2023

Canção Nova elege primeiro sucessor de monsenhor Jonas Abib

Padre Wagner Ferreira - Foto: Canção Nova/Assessoria de Imprensa

REDAÇÃO CENTRAL, 01 Mar. 23 / 02:18 pm (ACI).-

O padre Wagner Ferreira, presidente da Fundação João Paulo II, foi eleito presidente da Canção Nova ontem (28). Ferreira sucede monsenhor Jonas Abib, fundador da comunidade, que morreu em 12 de dezembro de 2022. Conforme estatuto aprovado pela Santa Sé, o sacerdote irá presidir a Canção Nova até 2026.

O padre Wagner nasceu no Rio de Janeiro (RJ) em 28 de outubro de 1971. Ele é membro da Comunidade Canção Nova desde 1992 e foi ordenado padre em 27 de dezembro de 1999. Foi Formador Geral da Comunidade Canção Nova entre 2009 e 2015 e ocupava o cargo de vice-presidente desde 2018.

É bacharel em Filosofia pela Faculdade Eclesiástica de Filosofia João Paulo II da arquidiocese do Rio de Janeiro, e em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pela Faculdade Dehoniana de Taubaté (SP).

O padre Wagner concluiu o mestrado em Teologia Moral pelo Instituto Superior de Teologia Moral da Pontifícia Universidade Lateranense - Academia Alfonsiana de Roma em 2002 e concluiu o doutorado em Teologia Moral pela mesma academia em 2009, obtendo o voto Summa cum laude (Com a Maior das Honras, em latim) em sua tese: “A contribuição dos Novos Movimentos Eclesiais na formação da Consciência Moral: uma análise da experiência da Comunidade Canção Nova no Brasil”. Entre 2006 e 2008, o sacerdote cursou o Master de Bioética pelo Ateneo Pontifício Regina Apostolorum, também em Roma.

missa de posse, reservada para membros da Assembleia Geral, foi presidida hoje (1º) às 7h por dom Joaquim Wladimir Lopes Dias, bispo da diocese de Lorena (SP), em Lavrinhas (SP).

Fonte: https://www.acidigital.com/

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF