O cristianismo e as religiões | Lausanne Movement |
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL
O CRISTIANISMO E AS RELIGIÕES
(1997)
III.4. Diálogo inter-religioso e mistério de salvação
105. A partir do Vaticano II, a Igreja católica se comprometeu de modo
decidido no diálogo inter-religioso (3); esse documento foi elaborado com o
olhar posto nesse diálogo, embora não seja esse seu tema fundamental. O estado
da questão a respeito do cristianismo e sua relação com as religiões, os
pressupostos teológicos e as conseqüências que deles se deduzem sobre o valor
salvífico das religiões, a revelação divina, são reflexões destinadas a
iluminar os cristãos em seus diálogos com os fiéis de outras religiões.
106. Que esses diálogos se realizem entre especialistas, ou se deem na
vida cotidiana, compromete com as palavras ou os comportamentos não só as
pessoas que dialogam, mas também, e em primeiro lugar, o Deus que professam. O
diálogo inter-religioso como tal comporta três participantes. Por isso, o
cristão é interpelado nele por duas questões fundamentais, das quais depende o
sentido do próprio diálogo: o sentido de Deus e o sentido do homem.
a. O sentido de Deus
107. No diálogo inter-religioso, cada um dos participantes se expressa
de fato segundo determinado sentido de Deus; de maneira implícita levanta ao
outro a pergunta: qual é seu Deus? O cristão não pode ouvir e compreender o
outro sem fazer a si mesmo essa pergunta. A teologia cristã é mais que um
discurso sobre Deus: trata de falar de Deus em linguagem humana como o Logos encarnado
o dá a conhecer (cf. Jo 1,18; 17,3). Daí a necessidade de alguns discernimentos
no diálogo:
108. a) Se se fala da divindade como valor transcendente e absoluto,
trata-se de uma Realidade impessoal, ou de um Ser pessoal? b) A transcendência
de Deus significa que ele é um mito intemporal, ou essa transcendência é
compatível com a ação divina na história com os homens? c) Conhece-se a Deus só
pela razão, ou se o conhece também por meio da fé pela qual ele se revela aos
homens? d) Visto que uma "religião" é certa relação entre Deus e o
homem, expressa um Deus à imagem do homem ou implica que o
homem é à imagem de Deus? e) Se se admite que Deus é único
como exigência da razão, que significa professar que é Uno? Um Deus monopessoal é
aceitável pela razão, porém somente em sua autorrevelação em Cristo o mistério
de Deus pode ser acolhido pela fé como Uni-Trindade consubstancial e
indivisível. Esse discernimento é capital em razão das conseqüências que daí se
desprendem para a antropologia e a sociologia inerentes a cada religião, f) As
religiões reconhecem à divindade atributos essenciais, como a onipotência, a
onisciência, a bondade, a justiça. No entanto, para compreender a coerência
doutrinal de cada religião e superar as ambiguidades de uma linguagem
aparentemente comum, é preciso compreender o eixo em torno do qual se articulam
esses nomes divinos. Esse discernimento concerne especialmente ao vocabulário
bíblico, cujo eixo é a aliança entre Deus e o homem, tal como se cumpriu em
Cristo, g) Faz-se necessário outro discernimento sobre o vocabulário
especificamente teológico, na medida em que é tributário da cultura
de cada participante no diálogo e de sua filosofia implícita. É necessário,
portanto, prestar atenção na peculiaridade cultural das duas
partes, inclusive se ambas participam da mesma cultura original, h) O mundo
contemporâneo parece preocupar-se, ao menos em teoria, com os direitos do
homem. Alguns integrismos, inclusive entre os cristãos, opõem a eles os direitos
de Deus. Contudo, nessa oposição, de que Deus se trata? E, em última
análise, de que homem?
b. O sentido do homem
109. O diálogo inter-religioso implica ainda uma antropologia implícita,
e isso por duas razões principais. De um lado, o diálogo põe em comunicação
duas pessoas, e cada uma delas é o sujeito de sua palavra e de seu
comportamento. Por outro lado, quando dialogam fiéis de religiões diferentes,
tem lugar um acontecimento muito mais profundo que sua comunicação verbal: um
encontro entre seres humanos, para o qual cada um se encaminha levando o peso
de sua condição humana.
110. Num diálogo inter-religioso, têm as partes a mesma concepção
da pessoa? A questão não é teórica, mas interpela a uns e a outros.
A parte cristã sabe sem dúvida que a pessoa humana foi criada "à imagem de
Deus", isto é, num apelo constante de Deus essencialmente relacional e
capaz da abertura "ao outro". Porém, todos os participantes são
conscientes do mistério da pessoa humana e do de Deus "mais além de
tudo" (4)? Também o cristão é induzido a perguntar-se: de onde fala,
quando dialoga? Do cenário de sua personagem social ou religiosa? Do alto de
seu "superego" ou de sua imagem ideal? Visto que ele deve dar
testemunho de seu Senhor e Salvador, em que "morada" de sua alma este
se encontra? No diálogo inter-religioso, mais que em toda relação interpessoal,
está implicada a relação de cada pessoa com o Deus vivente.
111. Aqui se mostra a importância da oração no diálogo inter-religioso:
"O homem está à procura de Deus (...). Todas as religiões testemunham essa
procura essencial dos homens" (3). Ora, a oração, como relação vivente e
pessoal com Deus, é o próprio ato da virtude da religião e encontra expressão
em todas as religiões. O cristão sabe que Deus "chama incessantemente cada
pessoa ao encontro misterioso da oração" (6). Se Deus não pode ser
conhecido senão se ele mesmo toma a iniciativa de revelar-se, a oração se
mostra como absolutamente necessária porque põe o homem em disposição de
receber a graça da revelação. Assim, na procura comum dá verdade que deve
motivar o diálogo inter-religioso, "se dá uma sinergia entre a oração e o
diálogo (...).. A oração é a condição do diálogo e transforma-se no fruto
dele" (7). Na medida em que o cristão vive o diálogo em estado de oração,
é dócil à moção do Espírito que atua no coração dos dois interlocutores. Então,
o diálogo se faz mais que um intercâmbio: faz-se encontro.
112. Mais profundamente, em nível do não-dito, o diálogo inter-religioso
é, com efeito, um encontro entre seres criados "à imagem
de Deus", embora essa imagem se encontre neles um tanto obscurecida pelo
pecado e pela morte. Dito de outro modo, os cristãos e os que não o são estão
todos a espera de ser salvos. Por essa razão, cada uma de suas religiões se
apresenta como uma procura de salvação e propõe caminhos para
chegar a ela. Esse encontro na comum condição humana põe as partes em plano de
igualdade e é muito mais verdadeiro que seu discurso religioso meramente
humano. Tal discurso já é uma interpretação da experiência e passa pelo filtro
das mentalidades confessionais. Pelo contrário, os problemas do amadurecimento
pessoal, a experiência da comunidade humana (homem e mulher, família, educação
etc.) e todas as questões que gravitam em torno do trabalho para "ganhar a
vida", longe de ser temas de distração do diálogo religioso, constituem o
terreno "a descoberto" para esse diálogo. Então, nesse encontro se dá
conta de que o "lugar" de Deus é o homem.
113. Ora, a constante subjacente a todos os demais problemas da condição
humana comum não é senão a morte. Sofrimento, pecado, fracasso,
decepção, incomunicação, conflitos, injustiças... a morte está presente em
todas as partes e em cada momento como a trama opaca da condição humana. Por
certo, o homem, incapaz de exorcizá-la, faz todo o possível para não pensar
nela. E não obstante é nela que ressoa com mais intensidade o chamado do Deus
vivente. A morte é o sinal permanente da alteridade divina, pois só o que chama
do nada o ser pode dar vida aos mortos. Ninguém pode ver a Deus sem passar pela
morte, esse lugar ardente no qual o Transcendente atinge o abismo da condição
humana.
A única pergunta séria, porque existencial e iniludível, sem a qual os
discursos religiosos são "álibis", é esta: o Deus vivente assume ou
não a morte do homem? Não faltam as respostas teóricas, mas estas não podem
esquivar o escândalo que permanece: como Deus pode permanecer oculto e
silencioso diante do inocente ferido e do justo oprimido? E o grito de Jó e de
toda a humanidade. A resposta é "crucial", além de todas as palavras:
na Cruzo Verbo é silêncio. Pendente de seu Pai, entrega-lhe seu espírito. E não
obstante aí está o encontro de todos os humanos: o homem está em sua morte, e
Deus se une a ele nela. Só o Deus amor é o vencedor da morte, e só pela fé nele
o homem é libertado da escravidão da morte. A Sarça ardente da Cruz é assim o
lugar oculto do encontro. O cristão contempla nela "aquele que
traspassaram", e dela recebe "um espírito de benevolência e de
súplica" (Jo 19,37; Zc 12,10). O testemunho de sua nova experiência será o
de Cristo ressuscitado, vencedor da morte pela morte. O diálogo inter-religioso
recebe então seu sentido na economia da salvação: faz mais que dar continuidade
à mensagem dos profetas e à missão do Precursor; apoia-se no acontecimento da
salvação consumada por Cristo e tende para o segundo Advento do Senhor. O
diálogo inter-religioso se dá na Igreja em situação escatológica.
CAPÍTULO III:
1. Diálogo e Anúncio, 29: “Por meio da prática do que é bom
em suas tradições religiosas e seguindo os ditames de sua consciência, os membros
das outras religiões respondem positivamente ao convite de Deus e recebem a
salvação em Jesus Cristo, ainda que não o reconheçam como seu salvador”.
2. Temas selectos de eclesiologia (1985), esp. Cap. 4;
cf. Comisión Teológica Internacional, Documentos 1980-1985, Toledo,
s.d., pp. 286-290; e especialmente Fides et inculturatio (1988): Greg 70 (1989),
pp. 625-646.
3. Entre os documentos de João Paulo II, cf. RM 55-57; TMA 52-53; cf.
Também o documento do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso e a
Congregação para a Evangelização dos Povos Diálogo e Anúncio, aqui citado
repetidas vezes.
4. Gregório Nazianzeno, Carminum liber I, sectio I, 29 (PG
37, 507). 56
5. Catecismo da Igreja Católica, 2566.
6. Ibid., 2567.
7. João Paulo II, Ut unum sint, 33.