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terça-feira, 4 de julho de 2023

A mediação de Maria - Parte VI

Imagens da Virgem Maria, de Francesco Astiaso Garcia

"No mistério da Igreja, a qual é também com razão chamada mãe e virgem, a bem-aventurada Virgem Maria foi adiante, como modelo eminente e único de virgem e de mãe (189). Porque, acreditando e obedecendo, gerou na terra, sem ter conhecido varão, por obra e graça do Espírito Santo, o Filho do eterno Pai; nova Eva, que acreditou sem a mais leve sombra de dúvida, não na serpente antiga, mas no mensageiro celeste. E deu à luz um Filho, que Deus estabeleceu primogénito de muitos irmãos (Rom. 8,29)".

Jackson Erpen - Cidade do Vaticano

“A maternidade de Maria na economia da graça perdura sem interrupção, desde o consentimento, que fielmente deu na anunciação e que manteve inabalável junto à cruz, até à consumação eterna de todos os eleitos. De fato, depois de elevada ao céu, não abandonou esta missão salvadora, mas, com a sua multiforme intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação eterna. Cuida, com amor materno, dos irmãos de seu Filho que, entre perigos e angústias, caminham ainda na terra, até chegarem à pátria bem-aventurada. Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos de advogada, auxiliadora, socorro, medianeira. Mas isto entende-se de maneira que nada tire nem acrescente à dignidade e eficácia do único mediador, que é Cristo. (Lumem gentium, 62)”

"Efetivamente - acrescenta a Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II - nenhuma criatura se pode equiparar ao Verbo encarnado e Redentor; mas, assim como o sacerdócio de Cristo é participado de diversos modos pelos ministros e pelo povo fiel, e assim como a bondade de Deus, sendo uma só, se difunde variamente pelos seres criados, assim também a mediação única do Redentor não exclui, antes suscita nas criaturas cooperações diversas, que participam dessa única fonte." Assim, essa "função subordinada de Maria, não hesita a Igreja em proclamá-la; sente-a constantemente e inculca-a aos fiéis, para mais intimamente aderirem, com esta ajuda materna, ao seu mediador e salvador."

O capítulo VIII da Lumen Gentium, nas palavras de Paulo VI, constitui a mais vasta síntese que um Concílio ecumênico já ofereceu “da doutrina católica referente à posição que a Santíssima Virgem Maria ocupa no mistério de Cristo e da Igreja”. Na linha deste documento, com comentários enriquecidos por afirmações de João Paulo II, Bento XVI, do próprio Papa Francisco e de renomados teólogos, padre Gerson Schmidt* nos propôs uma série de reflexões sobre a mediação de Maria, que se conclui com estas observações:

"Temos ressaltado nesta série de programas sobre a mediação de Maria que a Constituição Dogmática Lumen Gentium do Concílio Vaticano II não teve a pretensão de "propor toda a doutrina acerca de Maria, nem de dirimir as questões ainda não totalmente esclarecidas pelos teólogos".  Neste sentido, o n. 54 esclarece que, "conservam, por isso, os seus direitos as opiniões que nas escolas católicas livremente se propõem acerca daquela que na santa Igreja ocupa depois de Cristo o lugar mais elevado e também o mais próximo de nós”. Por isso, não podemos ficar intrigados que nosso Papa Francisco tenha ultimamente ressaltado o papel de Maria como Mãe e discípula e atenuado o atributo de corredentora, uma vez que esse título não é dogma e a Igreja não tenha feito nenhuma declaração oficial “ex-catedra” a respeito, pelo contrário, evitado uma definição desde o Concilio Vaticano II, em busca de uma caminhada mais ecumênica.

O Papa Paulo VI, ao encerrar a terceira sessão do Concílio, em 21/11/64, declarou que o capítulo VIII da Lumen Gentium vem a ser a mais vasta síntese que um Concílio ecumênico elaborou sobre o papel de Maria na obra salvífica: “Sobretudo desejamos seja claramente evidenciado que Maria, humilde serva do Senhor, é toda relativa a Deus e a Cristo, único mediador e Redentor nosso. E igualmente sejam ilustradas a verdadeira natureza e as intenções do culto mariano na Igreja, especialmente lá onde se acham muitos irmãos nossos separados, de modo que os que não fazem parte da comunidade católica compreendam que, longe de ser fim em si mesma, a devoção a Maria é, ao contrário, meio essencialmente ordenado a orientar as almas para Cristo, e assim uni-las ao Pai, no amor do Espírito Santo. (Papa Paulo VI, 21 de Novembro de 1964)”.

A constituição dogmática Lumen Gentium nos aponta o influxo salutar de Maria e a mediação de Cristo, afirmando no número 60: “O nosso mediador é só um, segundo a palavra do Apóstolo: «não há senão um Deus e um mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, que Se entregou a Si mesmo para redenção de todos (1 Tim. 2, 5-6). Mas a função maternal de Maria em relação aos homens de modo algum ofusca ou diminui esta única mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia. Com efeito, todo o influxo salvador da Virgem Santíssima sobre os homens se deve ao beneplácito divino e não a qualquer necessidade; deriva da abundância dos méritos de Cristo, funda-se na Sua mediação e dela depende inteiramente, haurindo aí toda a sua eficácia; de modo nenhum impede a união imediata dos fiéis com Cristo, antes a favorece”.

No número 65 da LG aponta assim: “Esta maternidade de Maria na economia da graça perdura sem interrupção, desde o consentimento, que fielmente deu na anunciação e que manteve inabalável junto à cruz, até à consumação eterna de todos os eleitos. De fato, depois de elevada ao Céu, não abandonou esta missão salvadora, mas, com a sua multiforme intercessão, continua a alcançar-nos os dons da salvação eterna. Cuida, com amor materno, dos irmãos de seu Filho que, entre perigos e angústias, caminham ainda na terra, até chegarem à pátria bem-aventurada. Por isso, a Virgem é invocada na Igreja com os títulos de advogada, auxiliadora, socorro, medianeira. Mas isto se entende de maneira que nada tire nem acrescente à dignidade e eficácia do único mediador, que é Cristo. Efetivamente, nenhuma criatura se pode equiparar ao Verbo encarnado e Redentor; mas, assim como o sacerdócio de Cristo é participado de diversos modos pelos ministros e pelo povo fiel, e assim como a bondade de Deus, sendo uma só, se difunde variamente pelos seres criados, assim também a mediação única do Redentor não exclui, antes suscita nas criaturas cooperações diversas, que participam dessa única fonte. Esta função subordinada de Maria, não hesita a Igreja em proclamá-la; sente-a constantemente e inculca-a aos fiéis, para mais intimamente aderirem, com esta ajuda materna, ao seu mediador e salvador”.

*Padre Gerson Schmidt foi ordenado em 2 de janeiro de 1993, em Estrela (RS). Além da Filosofia e Teologia, também é graduado em Jornalismo e é Mestre em Comunicação pela FAMECOS/PUCRS.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

Terra, fogo, água e ar

Os quatro elementos (Ministério do Turismo - Gov.br)

TERRA, FOGO, ÁGUA E AR

Dom Genival Saraiva
Bispo Emérito de Palmares (PE)

A natureza é um prodígio. Um antigo estudioso da natureza, Empédocles (492 a.C. – 430 a.C.), cosmólogo de Agrigento, hoje cidade da Sicília, atribuiu a origem do universo a quatro elementos: “terra, fogo, água e ar”. A pessoa mais simples e o cientista/pesquisador mais experiente e mais atualizado vêem a natureza, com suas respectivas óticas de leitura e de observação. O conhecimento humano, alcançado de forma empírica ou científica, retrata os passos da história das civilizações, ao longo dos milênios. O conhecimento empírico, “resulta das observações e das experiências das pessoas. Em outras palavras, parte de um conhecimento popular, que tem origem nas observações do cotidiano.” Por sua vez, o conhecimento científico “é a informação que analisa os fatos cientificamente comprovados. Sua base está na filosofia da ciência, em que todas as suposições, teorias e hipóteses passam por um processo de comprovação através de uma série de pesquisas e experimentos.” A experiência comprova que os dois modos de conhecer a realidade têm seu lugar e sua importância na história humana, porque estão na base do olhar sobre o passado, da forma de compreender e viver o presente e ao enxergar o futuro dos indivíduos e da coletividade. Portanto, essa maneira de se posicionar em face da história tem sua significação para o indivíduo, sob pena de se dizer que “passou pela vida, não viveu”, e para a coletividade, ante a necessidade da formulação de políticas públicas, de curto, médio e longo alcance. 

O retrato da terra não tem mais a beleza e a harmonia do “paraíso terrestre”, haja vista a devastação identificada pelas pessoas no seu próprio chão. Porventura, pode alguém comportar-se de modo cético e, pior ainda, ter uma atitude negacionista diante do desequilíbrio ecológico? Infelizmente, a posição dos negacionistas causa um mal muito grande no momento, cujas consequências repercutirão na vida das futuras gerações. O planeta terra está sendo devastado por excesso ou escassez dos elementos água e fogo, como registra a crônica cotidiana mundial, como se vê no mapa mundi, graças à sofisticação da tecnologia espacial dos instrumentos de observação, à distância. A normalidade das leis da natureza, confirmada pelas leis da física, até um passado recente, está alterada, de forma preocupante, quanto ao elemento água, conforme recentes dados da ciência: “Entre 1900 e 2000, os oceanos e os mares do planeta subiram cerca de 14 centímetros, por causa do degelo, principalmente, no Ártico”. […] O século passado ‘foi excepcional em comparação com os últimos três milênios e a elevação no nível dos oceanos acelerou nos últimos 20 anos’.” As cidades e áreas litorâneas já conhecem esse fenômeno e se valem de técnicas que, provavelmente, podem ser paliativas, considerando-se um “futuro próximo”. A queda pluviométrica, em milímetros acima do normal, com as enchentes e inundações que provoca, deixa graves sequelas na vida das pessoas, na segurança de suas moradias e na produção de alimentos. A mesma coisa acontece em relação ao elemento fogo, como se constata com as elevações do calor e da temperatura: “calor é uma grandeza física que pode ser definida como a energia que é transferida de um corpo em maior temperatura a outro em menor temperatura”. A incidência de queimadas das florestas e o aumento do calor, principalmente nos centros urbanos, é uma realidade no mundo. Nesse conjunto de coisas, o outro elemento da natureza, o ar, absolutamente indispensável à vida de qualquer criatura, está sendo afetado, diretamente, na contemporaneidade. Com efeito, a poluição ambiental atinge a qualidade de vida de todas as criaturas porque está relacionada com o processo de industrialização, com a exploração descontrolada dos recursos minerais, com a utilização de produtos químicos na produção agrícola, sem o devido controle de qualidade, e com muitos outros meios ofensivos à natureza. 

Ao deparar-se com essa face da “casa comum”, o Papa Francisco afirma, na Encíclica Laudato Si’, que “Nada deste mundo nos é indiferente”. Nessa linha, cita São Paulo VI, na Encíclica Pacem in terris: “Por motivo de uma exploração inconsiderada da natureza, [o ser humano] começa a correr o risco de destruí-la e de vir a ser, também ele, vítima dessa degradação.” A esse respeito, cita também São João Paulo II, na Encíclica Centesimus Annus, porque “o ser humano parece ‘não se dar conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles que servem somente para os fins de um uso ou consumo imediatos’. Mais tarde, convidou a uma conversão ecológica global.” Com sua compreensão, escreve o Papa Francisco: “A destruição do ambiente humano é um fato muito grave, porque, por um lado, Deus confiou o mundo ao ser humano e, por outro, a própria vida humana é um dom que deve ser protegido das várias formas de degradação. 

Ao focar a leitura dos elementos da natureza no território e na demografia nacional, é preciso que a sociedade brasileira procure conhecer os dados do Censo Demográfico 2022, divulgado pelo IBGE. É de esperar que nenhuma pessoa de bom senso, nenhuma instituição séria e nenhuma instância do poder público desconsiderem os dados do Censo, uma vez que nele está o retrato do País, no tocante à estatística e às faixas etárias da população, às condições de vida das pessoas, à moradia, à alimentação, à escolarização, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à diversidade regional, à vida no campo, na cidade, com os indispensáveis serviços, como o saneamento básico. 

Sem terra, fogo, água e ar, a natureza não existiria. Hoje, está subsistindo com eles, porém, está pagando ônus muito alto porque o ser humano está se comportando, globalmente, de modo indiferente ou agressivo, diante da beleza original da natureza. Deus criou o mundo, na perfeita harmonia entre natureza e as criaturas. A ciência e o magistério da Igreja advertem para o fato de estar a população mundial se tornando “vítima dessa degradação”, causada irresponsavelmente por quem deveria zelar pela preservação da natureza. É possível, é necessário cuidar da “casa comum”. “Será que o Senhor nos exorta a algo que supera nossa natureza e a grandeza do preceito ultrapassa as forças humanas? Não é assim, pois ele não ordena serem pássaros aqueles que não têm asas, nem a viverem dentro da água os que destinou à vida terrestre.” (São Gregório de Nissa, séc. IV).

Fonte: https://www.cnbb.org.br/

O Papa: a Eucaristia nos abre ao mundo, como Jesus nos ensinou

Por uma vida eucarística (Vatican Media)

Na intenção de oração deste mês, confiada a toda a Igreja católica através da Rede Mundial de Oração do Papa, o Pontífice nos convida a colocar a Eucaristia no centro de nossas vidas.

https://youtu.be/MlABqheNbi8

Vatican News

"Por uma vida eucarística" é o título do vídeo do Papa Francisco com a intenção de oração para este mês de julho.

Na mensagem de vídeo divulgada, nesta segunda-feira (03/07), o Santo Padre diz que "se ao sair da missa estás como entraste, alguma coisa não funciona". Na intenção de oração deste mês, confiada a toda a Igreja católica através da Rede Mundial de Oração do Papa, o Pontífice nos convida a colocar a Eucaristia no centro de nossas vidas.

Ele nos convida a olhar esta celebração não como uma obrigação ritual, mas como um encontro com Jesus ressuscitado, pois "a Eucaristia é a presença de Jesus, é profundamente transformadora. Jesus vem e deve transformar-te".

Nela, é Cristo que se oferece, que se dá por nós, que nos convida para que a nossa vida seja alimentada por Ele e alimente a vida de nossos irmãos.

Isto é o que acontece aos protagonistas do vídeo deste mês: três fiéis que, no final da Missa, levam a Eucaristia a seus irmãos necessitados, fora da igreja, oferecendo e retribuindo esse amor e esse dom de si mesmos que receberam no sacramento. As cenas da vida cotidiana são ambientadas na cidade de Detroit, nos Estados Unidos. De fato, graças à ajuda da Arquidiocese de Detroit, realizou-se o Vídeo do Papa deste mês de julho.

A celebração da Eucaristia é um encontro com Jesus ressuscitado e, ao mesmo tempo, uma forma de nos abrirmos ao mundo, como Ele nos ensinou.

Segundo o Papa, "cada vez que participamos de uma Eucaristia, Jesus vem e Jesus nos dá a força para amar como Ele amou".

Francisco explica "a lógica da Eucaristia", que "nos dá a coragem de sair ao encontro, sair de nós mesmos e de nos abrirmos amorosamente aos demais".

Rezemos para que os católicos ponham no centro de suas vidas a celebração da Eucaristia, que transforma as relações humanas e abre ao encontro com Deus e com os irmãos.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

Santa Isabel de Portugal: A rainha da bondade e da paz

Santa Isabel de PortugalFoto: Gustavo Krajl

04 de julho

Santa Isabel de Portugal

A Igreja celebra, no dia 4 de julho, Santa Isabel de Portugal, cuja memória rapidamente ultrapassou as fronteiras do reino, e em todo o orbe cristão era conhecida aquela soberana que foi o mais belo ornato do glorioso Portugal.

Redação (04/07/2023 08:23, Gaudium PressQuem alguma vez teve a aprazível oportunidade de visitar Coimbra, certamente terá admirado suas numerosas maravilhas: desde o precioso jazigo de Dom Afonso Henriques, fundador do Reino de Portugal, até os variados e belos parques que adornam a cidade. Brilha ainda a histórica Universidade que, através de suas sólidas raízes e requintados frutos, é a instituição que representa a maior expressão da Língua Portuguesa.

Contudo, quem vem de longe não deixa de notar o sincero carinho dos habitantes por sua insigne padroeira, a Rainha Santa Isabel: o anjo de bondade e de paz que o Senhor mandou para Portugal.

Curiosamente, Santa Isabel não é portuguesa de nascença. Quis a mão da Providência colhê-la no solo aragonês, onde veio ao mundo no longínquo ano de 1271. Precedeu-a em nobreza e santidade sua tia-avó, Santa Isabel da Hungria, de quem herdou, além do nome, os mais excelentes predicados. A pequena filha de Pedro III de Aragão e de Constança da Sicília foi, a exemplo de sua tia, grande seguidora de São Francisco de Assis e uma alma toda voltada para os pobres e necessitados.

Pacificou ânimos e guerras desde o berço até a hora da morte, e não houve, entre o primeiro nobre e o último, doente quem se furtasse à sua tão benéfica influência. Todos saíam de sua presença dispostos a reconciliar-se com Deus e a perdoar o próximo.

Uma menina que dulcificava os corações

Quando nasceu Santa Isabel, havia uma briga entre seu pai e seu avô, Jaime I, o Conquistador. Há tempo não se falavam, porque esse rei de Aragão não aprovava o casamento de seu filho Pedro com Dona Constança. Apenas nasceu a santa menina, foram-se apagando as desavenças domésticas e houve grande harmonia naquela casa real.

O destemido avô não ocultava sua grande predileção por essa criança e fez questão de que ela fosse educada em seu palácio, para poder gozar de sua companhia. A razão mais profunda pela qual não queria separar-se dela era o sensível influxo de bênçãos e a suavidade que emanavam de sua pessoa. Num ambiente carregado de tensões e pesados encargos, aquele precioso tesouro dulcificava os corações. Após o falecimento de Jaime I, a infanta permaneceu ainda alguns anos com seus pais. Muito em breve ela se tornaria rainha de Portugal.

Na corte de Portugal

Em 1282 partiu para as terras lusas, a fim de contrair matrimônio com Dom Dinis, que acabava de subir ao trono. Nunca se tinha visto ali uma soberana de tamanha modéstia e amabilidade. Seu recolhimento e união com Deus não tardaram a cativar o povo, o qual logo retribuiu o amor de que estava sendo objeto. Para aumentar a confiança de todos na jovem soberana, concorreu a paz que ela obteve, logo ao chegar, entre Dom Dinis e seu irmão que lhe disputava a coroa.

Sua vida na corte foi uma constante busca do sobrenatural. Sem omitir nenhuma das obrigações impostas pela sua condição de rainha, o seu coração não se prendeu a esta terra. Estava presente em todas as festividades do reino e sinceramente se regozijava com o povo; cingia a coroa e trajava os mais ricos vestidos para, ao lado do rei, receber as autoridades ilustres que vinham honrá-la e colocar-se a seu serviço. Entretanto, nem por isso envaideceu-se e desejou aquelas glórias para si. Julgava-se pecadora e teria preferido mil vezes ser pobre a possuir todos os tesouros reais.

Precursora da devoção à Imaculada

A oração e a vida de piedade exerceram papel primordial em sua existência, e foram a causa de todas as conquistas pelo bem do reino e das almas que ela obteve. Toda manhã assistia à Santa Missa em seu oratório com o espírito absorto em santas considerações. Desde os oito anos de idade recitava o Ofício Divino, e acrescentou depois a recitação diária dos salmos penitenciais e outras devoções em honra dos Santos e de Nossa Senhora.

Sua devoção a Maria Santíssima foi terna e fecunda, legando à posteridade um traço indelével para a espiritualidade luso-brasileira: o patrocínio da Imaculada Conceição. De fato, foi Santa Isabel quem A escolheu como padroeira de Portugal e fez com que se celebrasse por primeira vez a sua festa, em 8 de dezembro de 1320, quando os raios das disputas teológicas em favor da Conceição Imaculada de Maria espargiam seus primeiros fulgores.

Sofrimentos de esposa e rainha

Santa Isabel de Portugal (Guadium Press)

Assim amparada pelas forças divinas, ela preparou-se para as grandes cruzes e dissabores que a aguardavam. Após o nascimento de seus dois filhos, Constança e Afonso, a Rainha Santa suportou heroicamente a vida dissoluta que Dom Dinis passou a levar. Sem murmurar ou impacientar-se, ela muito rezou e fez penitência pela conversão do soberano.

Assistiu ainda com maior sofrimento às inimizades entre governantes cristãos seus parentes, que por ambição disputavam entre si terras e honrarias e, em consequência de suas pretensões, causavam derramamento de sangue.

Corajosamente, Santa Isabel ergueu-se em toda a sua estatura e impediu uma grande quantidade de combates que estavam a ponto de estalar. Dom Dinis e Dom Afonso – irmão do rei – estavam em pé de guerra pela coroa de Portugal. O mesmo rei seu esposo tinha com o monarca de Castela, Sancho IX, sérias contendas em torno das fronteiras entre os reinos. Anos mais tarde, Dom Fernando IV de Castela – seu genro – e Dom Jaime II de Aragão – seu irmão – nutriam mutuamente uma feroz inimizade que caminhava para um terrível enfrentamento. Seu irmão, Frederico da Sicília, e Roberto de Nápoles guerreavam violentamente por razões políticas…

Quantas lágrimas este quadro desolador custou a seu reto coração! Erguendo constantes preces a Deus e implorando a cada um desses soberanos que ouvisse a voz da justiça, ela saiu vitoriosa em todas as desavenças nas quais interveio. A Rainha Santa provou que a paz não se deve tanto a tratados e a considerações de caráter econômico, quanto a almas santas que aplaquem a ira e o ódio por meio da mansidão e da clemência.

Coragem e intrepidez de mãe

A mais pungente atuação de Santa Isabel, a que lhe custou mais sofrimentos e angústias, foi a de enfrentar a rebeldia de seu filho contra o rei. Desejoso de mandar logo no reino e julgando que a coroa tardava muito, o invejoso herdeiro quis proclamar-se rei e declarou guerra a Dom Dinis. Desprezando todos os bons exemplos que sua mãe sempre lhe dera, organizou um exército e defrontou-se contra o autor de seus dias.

De um lado, o rei marcha diante de seus homens, disposto a tudo para manter o cargo que lhe cabe por direito. De outro, o filho insolente o enfrenta e despreza o mandato divino que obriga a honrar pai e mãe. No momento em que o silêncio nos dois campos inimigos indica o início da batalha, surge a figura intrépida da rainha: em sua veloz montaria, ela rasga a arena da discórdia e se interpõe entre as criaturas que mais ama neste mundo, para implorar o perdão e a paz.

Seu olhar, sempre carregado de doçura, volta-se desta vez severo e penetrante para o filho ambicioso: “Como te atreves a proceder deste modo? Pesa-te tanto assim a obediência que deves a teu pai e senhor? Que podes tu esperar do povo no dia em que te caiba governar o reino, se estás a legitimar a traição com este mau exemplo? Enfim… se de nada te servem os meus conselhos e carinho de mãe, teme ao menos a ira de Deus, que justamente castiga os escândalos!”

Seria possível resistir a este apelo materno, feito diante de milhares de súditos? Arrependido e cheio de confusão, o filho ajoelha-se sem replicar, pede perdão ao rei e jura-lhe fidelidade. Mais uma vez a Rainha Santa afasta as negras nuvens do horizonte e faz brilhar, para gáudio de todos, o arco-íris da bonança.

A caridade e o amor aos pobres

A par de seu espírito pacificador, foi na prática da caridade e no amor aos pobres que o seu amor a Deus se projetou inteiramente. Tanto se dedicou aos fracos, cuidou dos enfermos, fundou hospitais e protegeu toda categoria de desvalidos, que não é possível encontrar explicação humana para a fecundidade assombrosa de suas iniciativas.

Quando a querida rainha saía no paço, uma multidão de infelizes a seguia, pedindo socorro, e nunca algum deles se retirava sem ser generosamente atendido. Gostava de cuidar pessoalmente dos leprosos mais repugnantes, tratar-lhes as chagas e lavar-lhes as roupas; encaminhava para uma vida digna os órfãos e as viúvas e até na hora da morte não abandonava os infelizes, para os quais providenciava uma sepultura digna e mandava celebrar Missas em sufrágio de suas almas. Como corolário de sua fé inabalável, não poucos eram os doentes que saíam de sua presença inteiramente curados.

Morre como terciária franciscana

Santa Isabel de Portugal (Guadium Press)

Ao morrer Dom Dinis, em 1325, Santa Isabel contava 54 anos de idade, e ainda viveu mais onze. Nesse período abraçou a Ordem Terceira de São Francisco e abandonou as pompas da corte, a fim de viver exclusivamente para a oração e a caridade. Sua virtude heroica e a doação de si mesma atingiram o máximo esplendor; ela estava pronta para reinar no Céu.

No dia 4 de julho de 1336, enquanto intermediava uma ação de paz em Estremoz, veio Maria Santíssima buscá-la para a pátria definitiva, onde gozaria da glória eterna. Enquanto todos choravam a perda insuperável, ela se rejubilava por estar na iminência da posse definitiva do Deus a quem tão bem servira. Suas últimas palavras foram: “Maria, Mãe da graça, Mãe de misericórdia, protege-nos do inimigo e recebe-nos à hora da morte”. Era desejo seu ser enterrada em Coimbra, no convento de Santa Clara, fundado por ela.

Sua memória rapidamente ultrapassou as fronteiras do reino, e em todo o orbe cristão era conhecida aquela soberana que foi o mais belo ornato do glorioso Portugal.

Uma canonização singular

O modo singular como Santa Isabel foi canonizada bem serve para mostrar o quanto, sendo a vontade Deus glorificar algum de seus filhos ilustres, nenhum obstáculo humano é capaz de impedi-Lo.

Inumeráveis foram os milagres obtidos junto a seu corpo, que permanecia surpreendentemente incorrupto e exalava um bálsamo odorífico. Em Portugal e na Espanha os devotos ansiavam por vê-la nos altares e dedicar igrejas em sua honra. Os soberanos que dela descendiam insistiam junto às autoridades eclesiásticas para acelerarem o processo.

Nos primórdios do séc. XVII, a canonização era o termo final de uma série de autorizações concedidas pela Santa Sé para a veneração dos santos. Sendo assim, era comum que apenas em algumas dioceses ou regiões se pudesse celebrar um bem-aventurado, mas saindo daquela jurisprudência o culto já não fosse oficial. Esse sistema, somado a uma série de numerosas canonizações naquele período, acabou levando o Papa Urbano VIII a instituir um sistema minucioso e cauto para a admissão de novos bem-aventurados no rol dos santos.

Neste intuito reformador, apenas subiu ao sólio pontifício e logo declarou que não haveria de canonizar nenhum santo! E justo agora que tudo propiciava a glorificação definitiva da querida Rainha Isabel… Que fizeram os devotos agradecidos? Encomendaram aos céus o filial intento, e obtiveram pela oração o que pelos meios humanos não conseguiram.

Após ter enviado várias cartas reforçando o pedido, e também um representante que muito insistiu junto a Urbano VIII, tudo o que o soberano então reinante, Filipe IV, conseguiu foi que o Papa, por educação e cortesia, aceitasse uma imagem da veneranda rainha.

Entretanto, pairava um desígnio superior sobre o intrincado caso. Tendo o Papa caído gravemente enfermo, com febres malignas e já quase sem esperança de vida, lembrou-se da rainha de Portugal. Tanto se falava de seu amor pelos doentes, de seu incansável zelo por curar-lhes o corpo e a alma… Encomendou-se a ela o Papa também, esquecendo-se de sua prudente reserva para com os justos de Deus.

Eis que no dia seguinte amanheceu bom, sem nenhum risco de vida! Tão comovido ficou por ver a bondade de sua protetora que mudou seu parecer. Canonizaria, por uma especial exceção, a rainha de Portugal; e o faria com o “coração grande”, alistando-se ele também nas fileiras de seus devotos. Assim se explica a magnífica cerimônia que teve lugar na Basílica de São Pedro, em 25 de maio de 1625. Nem antes nem depois, nos 21 anos de seu pontificado, Urbano VIII canonizou qualquer outro santo!

Texto extraído da Revista Arautos do Evangelho, julho/2007, n. 67.

Fonte: https://gaudiumpress.org/

segunda-feira, 3 de julho de 2023

A Última Ceia de Leonardo da Vinci

A Última Ceia, Leonardo da Vinci, Igreja de Santa Maria das Graças, Milão

Arquivo 30Dias - 06/07 - 2006

A Última Ceia de Leonardo da Vinci

Anos de interpretações fantasiosas e confusas contaminaram o nosso olhar diante desta pintura, a qual, na realidade, o autor se atém com fidelidade ao Evangelho de João. É como um fotograma do momento mais dramático, quando Jesus diz aos apóstolos: “Um de vós me trairá”

de Giuseppe Frangi

Com que olhos vemos a mais famosa Última Ceia pintada em toda a história? É uma pergunta legítima, depois de anos de interpretações fantasiosas e confusas terem contaminado o nosso olhar diante da obra-prima de Leonardo da Vinci. O sucesso do romance de Dan Brown, com suas chaves de leitura esotéricas, passou como uma espécie de verniz deformador sobre essa obra. Reduziu-a a receptáculo de símbolos indecifráveis, ou a conteúdo de um teorema absolutamente improvável e, de qualquer forma, decididamente anticristão.

Na realidade, nessa grande pintura Leonardo se atém, como nunca lhe aconteceu outra vez na vida, a uma fidelidade profunda ao texto evangélico. Sua Última Ceia é como um fotograma, que se prende com exatidão a João, capítulo 13, versículo 24.

Como todos sabem, estamos no refeitório de um convento; e, como pedia a tradição, sobretudo em Florença, os refeitórios muitas vezes eram adornados por grandes representações da Última Ceia: basta lembrar as maravilhosas pinturas de Andrea del Castagno, do Ghirlandaio ou de Andrea del Sarto.

Chamado a Milão por Ludovico, o Mouro, Leonardo exporta essa tradição para o refeitório da igreja dos dominicanos de Santa Maria das Graças, que era também a igreja que o duque havia escolhido como “templo” de sua família e na qual desejava ser sepultado com a esposa, Beatrice d’Este. Os andaimes foram montados em 1495 e Leonardo trabalhou com prazos e estilos próprios, fugindo do afresco que o obrigaria a um ritmo bem diferente e usando, em vez disso, a têmpera, com os resultados catastróficos que todos conhecem bem.

A Última Ceia, Leonardo da Vinci, Igreja de Santa Maria das Graças, Milão

Leonardo cria um ambiente grande e espaçoso, que prolonga e dá respiro àquele local que ainda se ressente de um aperto tardogótico. Mas nesse ambiente, que parece temperado por um admirável equilíbrio, Leonardo insere uma das representações mais tensas e dramáticas de que a história da arte se recorda.

De fato, o grande artista se atém, com a tenacidade de um cronista, aos elementos do relato do evangelho de João. E, no fluxo desse relato, escolhe um instante, o instante mais embaraçoso e angustiante. Jesus, sentado à mesa, acabou de fazer o anúncio que vai gelar o sangue dos comensais: “Em verdade, em verdade vos digo, um de vós me trairá”. São palavras que caem como uma pedra sobre a mesa e explicam a confusão que transtorna os apóstolos. Muitos deles, como molas, saltam de suas cadeiras. Olhares incrédulos e também cobertos de suspeita percorrem a mesa. “Os discípulos entreolharam-se, sem saber de quem falava”, escreve João. Leonardo ecoa essas palavras, quase como se estivesse presente e agisse como cronista daquele instante de embaraço, para ampliar o relato do evangelista com uma panorâmica da mesa inteira. O artista anota no famoso códice Forster II, conservado no Victoria and Albert Museum de Londres: “Um, que estava bebendo, deixa a caneca em seu lugar e volta a cabeça para o que acabara de falar. Outro junta os dedos e, com o olhar fixo, dirige-se ao companheiro a seu lado. [...] Outro fala ao ouvido do companheiro, e o que ouve se inclina para ele e lhe é todo ouvidos, segurando uma faca numa das mãos. [...] Outro, ao voltar-se, [...] derrama com a mão uma caneca sobre a toalha. Outro pousa as mãos sobre a mesa e olha. Outro cospe a comida. Outro se inclina para ver o que acabara de falar. [...] Outro puxa para trás aquele que se inclina e vê o que acabara de falar entre a parede e o inclinado”.

Leonardo então aproxima ainda mais o seu zoom, para se concentrar num momento ainda mais preciso. Aquele que o evangelista narra no versículo 24. “Estava à mesa, ao lado de Jesus, um dos seus discípulos, aquele que Jesus amava”: João se lembrava bem desse detalhe, pois, na realidade, estava falando de si mesmo. Entre os apóstolos, ninguém sabe como se dirigir a Jesus, ninguém sabe como arrancar dele o segredo daquelas palavras terríveis. Tomé não sabe, ele, que com o dedo estendido (o que depois da Ressurreição usará para “tocar” o corpo do Senhor) parece implorar um pouco de clareza. Tiago de Zebedeu não sabe, e com os braços abertos parece fincado em seu espanto. Filipe não sabe, e um pouco covardemente põe as mãos sobre o peito, como que para tornar claro que não tem nada a ver com isso.

A Última Ceia, Leonardo da Vinci, Igreja de Santa Maria das Graças, Milão

Só Pedro, o mais prático e mais esperto, sabe qual é a única coisa a ser feita para sair daquela situação angustiante. Assim, chama João para perto de si e pede-lhe que se informe: tem consciência de que era ele o apóstolo mais amado por Jesus. Pois Leonardo toma exatamente esse instante, respeitando de modo surpreendente as psicologias dos personagens: Pedro chama João a si e sussurra alguma coisa ao seu ouvido. E, se a pintura fosse um filme, na seqüência seguinte veríamos a famosa cena de João inclinando sua cabeça para o peito de Jesus...

O mesmo Pedro, na outra mão, que aparece atrás da figura de Judas, já aperta uma faca. É um Pedro lúcido e impetuoso, pronto a tudo para defender Jesus, como demonstraria algumas horas depois, no Horto das Oliveiras, quando aquela faca arrancaria a orelha de Malco, um dos soldados enviados para capturar o Senhor.

O terremoto que Jesus desencadeou com seu anúncio, porém, já produziu uma ordem precisa: na corrente dos apóstolos, Judas aparece excluído, implacavelmente sozinho, com o punhado maldito de moedas apertado na mão. Está presente, mas é como se já estivesse longe, irremediavelmente estranho, inimigo.

Dessa forma, revivida fragmento por fragmento, essa imagem de Leonardo que já vimos tantas e tantas vezes torna-se de novo o que realmente é: uma reconstrução extremamente fiel de um dos momentos mais dramáticos da história humana. Uma reconstrução precisa, como a de um cronista; mas, sobretudo, uma reconstrução exata dos dinamismos humanos, como só a consciência intuitiva de um gênio poderia realizar. E, depois de tê-la enxergado com olhos finalmente desembaraçados, é difícil pensar que tudo não tenha acontecido verdadeira e simplesmente assim...

Fonte: http://www.30giorni.it/

Qual é a história da formação do cânon bíblico?

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Por Vanderlei de Lima

Quantos livros tem a Bíblia: 73 (Católica) ou 66 (Protestante)?

“O Cânon Bíblico”. Eis o título do oportuno livro do Professor Alessandro Lima, casado e pai, que, deixando, em 2000, o protestantismo, se tornou católico e pôs-se a estudar a fé da Igreja. Na obra ora apresentada, estuda, à luz de farta documentação, a história da formação do cânon (ou catálogo) bíblico.

A base do debate está, a nosso ver, na seguinte questão: Quantos livros tem a Bíblia: 73 (Católica) ou 66 (Protestante)? – Respondemos que razão de a Bíblia católica ter 73 livros e a “crente” possuir só 66 se dá pelos seguintes fatos históricos: entre os anos de 250 e 100 antes de Cristo, os judeus de Alexandria, no Egito, traduziram a Bíblia do hebraico, língua usual entre os hebreus, para a sua língua local, o grego, idioma comum na época. 

Ao escreverem os livros do Novo Testamento, os Apóstolos tiveram por base essa tradução de Alexandria, também chamada dos “Setenta” (LXX), pois, segundo uma piedosa tradição, teria sido traduzida por setenta sábios. Ora, no século I depois de Cristo, começaram a aparecer os livros cristãos, em especial as Cartas de São Paulo e os Evangelhos, como uma continuação dos livros sagrados dos judeus. Eles, que não aceitaram (nem aceitam) a Cristo, trataram de pôr um fim a essa fusão de escritos judaicos e cristãos. De que modo?

Reuniram-se esses judeus, em Jamnia (ou Jabnes), no sul da Palestina, e com alguns critérios próprios, decidiram não aceitar os livros de Tobias (1), de Judite (2), da Sabedoria (3), de Baruque (4), do Eclesiástico (5), o primeiro (6) e o segundo (7) livro de Macabeus, além de recusarem alguns trechos de outros livros, como Ester 10,4-16.24, Daniel 3,24-90 e 13-14 – estes dados vêm da Vulgata, de São Jerônimo, ou de traduções a partir dela (cf. p. 33-44).

Igreja Católica

Pois bem, a Igreja Católica, perenemente assistida pelo Senhor Jesus, seu divino fundador (cf. Mt 16,18; 28,20), ficou com o catálogo de livros dos “Setenta”, usado, como dissemos, pelos Apóstolos, e definido oficialmente, pela primeira vez, no Concílio regional de Hipona, em 393. No século IV, portanto (cf. Catecismo da Igreja Católica n. 120). Lima assevera, aliás, que “das 350 citações do Antigo Testamento existentes no Novo, 300 são tiradas da versão dos LXX” (p. 11; cf. o Apêndice nas p. 123-131). 

Todavia, querendo contestar a autoridade da Igreja, no século XVI, Lutero, o reformador protestante, retirou os sete livros inteiros e os demais trechos citados, que estavam na Bíblia por ele mesmo traduzida, pouco antes, para o alemão. Sem saber disso, ou sabendo, mas usando de má-fé, alguns desses “irmãos separados” dizem que foi a Igreja Católica que acrescentou livros à Sagrada Escritura quando, na verdade, foi Lutero quem dela os retirou. O reformador foi, infelizmente, seguido, no que diz respeito ao cânon bíblico, por alguns outros grupos cristãos já separados de Roma (cf. p. 12).

Depois de analisar, de modo minucioso, competente e original, os testemunhos da Tradição (cf. p. 45-100), Alessandro Lima deixa claro ser a Igreja quem nos deu a Bíblia e não o contrário. Quem, de Bíblia na mão, se põe a julgar a Igreja Católica, age sem bem saber o que está fazendo. Afinal, importa lembrar a seguinte verdade: “a Igreja, na formação da Bíblia, não colaborou somente no discernimento do Cânon Bíblico, mas também deu a esta ‘biblioteca’ de livros sagrados o nome ‘Bíblia’; criou a divisão em capítulos e versículos, os primeiros dicionários bíblicos, as primeiras traduções para as línguas nacionais, as primeiras obras críticas e etc.” (p. 109). 

Concluamos, pois, este modesto artigo com esta sábia constatação de Alessandro Lima: “Embora os vários testemunhos acerca do Cânon Bíblico colhidos do séc. I ao XII, sejam das opiniões mais variadas, podemos identificar neles algo em comum no critério utilizado para avaliar a canonicidade de um livro: a Tradição da Igreja. Neste importante trabalho, sempre foram consideradas as informações conservadas e transmitidas pelos antigos presbíteros” (p. 119).

Ainda que mereça melhor revisão de português e possa ter uma diagramação apta a deixar mais espaço entre o texto e a margem interna, a obra é ímpar. Parabéns ao autor!

Fonte: https://pt.aleteia.org/

A Conversão

A Conversão (carmelitas)

A Conversão

Pe. Françoá Rodrigues Figueiredo Costa[1]

I. Introdução. Nossa intenção é apresentar uma reflexão à luz da fé sobre a conversão cristã. Nessa busca meditativa, a terceira parte ocupará um espaço mais amplo porque nela se deseja uma sistematização que abarque o que podemos chamar teologia da conversão.

Não é infrequente no Brasil e em outras partes do mundo ouvir que fulano ou ciclano se converteu ao catolicismo ou ao protestantismo. Graças a Deus, acontecem inúmeras conversões no mundo inteiro. Todo discípulo do Senhor, no qual arde o fogo do seu amor, deseja levar o maior número possível de pessoas ao encontro com ele, Cristo. Conta-se que quando um determinado casal participava de uma audiência com João Paulo II em Roma aconteceu o seguinte: o Papa passou por diante deles e a mulher disse-lhe em voz alta: “Santo Padre, diga alguma palavra ao meu marido que há dez anos está longe de Deus”. João Paulo II continuou a caminhar um pouco, depois se deteve, pôs a mão sobre o ombro do esposo daquela mulher suplicante e disse-lhe em voz baixa e profunda: “como se está mal longe de Deus!” Aquele homem ficou tão impressionado que naquele mesmo dia confessou-se e voltou à prática cristã.

Como se está mal longe de Deus! A vida não tem sentido real se não nos encontramos com Deus. Dizer isto pode causar admiração, mas é verdade. O ser humano ha sido projetado por Deus. Toda pessoa leva em seu coração um desejo tal de felicidade que não pode ser satisfeito a não ser na união com seu Criador e Redentor.

II. Sagrada Escritura. Na Biblia está claro: para que alguém se converta o mais importante é a ação de Deus, mas, ao mesmo tempo, ninguém se converte se não quer. No Antigo Testamento, Israel, o Povo da Aliança, é também o Povo da conversão. É um povo que volta a Deus que, por sua vez, acolhe o povo arrependido. No Novo Testamento, conversão e Reino são realidades intimamente relacionadas.

Nas línguas bíblicas, o hebreu utiliza sub – que significa voltar, regressar – e naham (arrepender-se, lamentar-se). O grego, utilizou epistréphein y metanoéîn para traduzir sub no sentido de conversão moral ou religiosa. No latim bíblico, convertere traduz sub e correspondentes gregos; poenitere é utilizado para traduzir metanoéîn com a consequente perda do significado mais pleno do vocábulo grego, já que poenitere significa uma das dimensões da conversão e enfatiza mais as obras de penitência.

Todos os términos mencionados são bastante significativos para que entendamos a noção bíblica de conversão já que todos eles, entrelaçados e em mútua compenetração, dão essa idéia de retorno, arrependimento, mudança de rumo; todos eles chamam à volta, à fidelidade e às exigências da própria pertença a Deus.

Na Sagrada Escritura, existem vários exemplos de conversão: Naaman (cf. 2 Re 5,15), Manassés (cf. 2 Cro 33,12-13), Zaqueu (cf. Lc 19,8-9), a Samaritana (cf. Jo 4,4-29), os três mil batizados no dia de Pentecostes (cf. At 2,38-41), o eunuco (cf. At 8, 30ss), Cornélio (cf. At 10,44ss), Paulo (cf. At 9,5ss), Lídia (cf. At 16,14-15). É certo: conversão, fé e arrependimento são inseparáveis. A verdadeira conversão – diz G. Piccolo – nasce de uma dor verdadeira pelo pecado cometido e se manifesta numa vida de devoção a Deus, surge daí um novo estilo de vida (cf. 2 Cor 5,17).

No Novo Testamento, a palavra epistrépho é utilizada uma única vez para indicar o regresso de um discípulo que caiu em pecado, Pedro (cf. Lc 22,32). Os cristãos que pecavam eram exortados à conversão e ao arrependimento, bem como às obras iniciais queridas por Cristo (cf. 2 Cor 12,21; Hb 6,1.6; Ap 2,5). Epistréfo e Metanoéîn referem-se à decisão de voltar a Deus mediante a qual um judeu ou um pagão se une a Deus em Cristo e recebe a benção escatológica e a remissão dos pecados (cf. Mt 18,3; At 3,19). Para os escritores do Novo Testamento a conversão representa uma experiência para ser vivida, a resposta afirmativa do convertido ao Evangelho e a disponibilidade do homem para  a união com Cristo no batismo. A conversão, segundo a Biblia, é, em primeiro lugar, obra de Dios.

Nessa perspectiva, a missão dos Apóstolos, anunciar a Palavra de Deus, acompanha a chamada à conversão já que ao anunciar Jesus cristo proclamam também a necessidade de converter-se e de crer. O batismo é o sacramento que faz com que o ser humano experimente essa nova realidade (cf. At 2,38). Conversão também é abandonar o fermento velho para celebrar a Páscoa  com os ázimos da sinceridade (Cf. 1 Cor 5,7s). De fato, na vida do cristão, que sempre está em processo de conversão, a escuta à Palavra e a recepção dos Sacramentos têm um papel insubstituível no caminho rumo à santidade. A esta conversão contínua chamamos “conversões segundas”.

III. Reflexão teológica. Na vida da Igreja é uma alegria receber novos conversos en seu seio, os novos filhos da Igreja. Quando a ela os introduz no Mistério de Cristo pelo Batismo se dá o que a teologia clássica chamou de “justificação”, conceito este muito próximo ao vocábulo “conversão”.

Para Lutero a justificação era algo que atingiria o homem de uma maneira externa enquanto que Deus não olharia mais os pecados do ser humano redimido graças à justiça de Cristo que os encobre; é como se Cristo estivesse entre o Pai Santo e o homem pecador, mas sem penetrar na interioridade do ser humano. A teologia católica, ao contrário, apresenta a justificação – de acordo com o Concilio de Trento – como uma realidade que toca o mais profundo do ser humano, já que o limpa interiormente do pecado e dá-lhe uma verdadeira renovação e santificação interior. A chamada “justificação primeira” seria a que acontece no batismo. Neste sentido, o Catecismo da Igreja Católica distingue a “conversão primeira”, que se dá no batismo, e a “segunda conversão”, ou seja, a continua mudança de vida com vistas à santificação que culmina na escatologia (cf. CEC 1426-1428).

Depois desse encontro inicial, poderíamos dizer que a vida cristã é uma conversão continuada. O cristão, chamado à santidade, busca a plenitude de vida, a santificação crescente. Mongillo chamaria esta conversão permanente de “docilidade ao Espírito que guia no caminho das bem-aventuranças”. Neste segundo momento, ainda que também naquele inicial (de pecador a justo), tem uma grande importância a Igreja como lugar donde se consegue a novidade de vida pela força da Palavra de Deus e dos Sacramentos.

Na mesma línea, Santo Tomás de Aquino fala de uma “tríplice conversão” ampliando desta maneira o significado do vocábulo em questão. A conversão inicial é aquela que não pede ainda a existência da graça santificante, mas somente uma operação de Deus que atrai o pecador a si. A segunda conversão é a que exige a graça santificante (ou habitual), princípio do mérito, com vistas à bem-aventurança. A terceira conversão é a do amor perfeito, a da criatura que já se encontra no céu, para esta terceira é necessária a graça consumada, ou seja, a glória. Santo Tomás vai ao núcleo da questão e às fases principais da conversão, mas poderíamos enumerar muitas outras fases se considerarmos, por exemplo, uma pessoa que passa do paganismo à glória do céu com diversas etapas religiosas: do paganismo ao monoteísmo, do monoteísmo ao cristianismo de tipo não católico, de um cristianismo não-católico ao catolicismo[2], de católico medíocre (e há tantos!) a católico fervoroso, de católico fervoroso – que busca a santidade – até a conversão ao céu.

Poder-se-ia afirmar que o homem se salva quando se converte, considerando a questão desde a liberdade do homem que aceita livremente o convite de Deus, ou quando é convertido. Conversão é graça de Deus e ele tem a iniciativa. Conversão e salvação vão juntas (cf. Mc 16,15; At 2,38-40). No que se refere à relação graça-liberdade na conversão, há a iniciativa de Deus e, ao mesmo tempo, ninguém se converse contra a sua vontade.

Na vida real, na da pessoa que se converte, devemos considerar tudo isso em diversas perspectivas entrelaçadas. Considerando a atuação da graça de Deus, podemos falar da conversão desde uma perspectiva dogmática; considerando as disposições da pessoa, será desde um perspectiva moral e psicológica; ao considerar a nova vida que se produz no homem podemos tratar a mesma realidade desde uma perspectiva dogmático-espiritual. Conversão e fé vão unidas, e contemporaneamente se enfatizou que no processo de conversão encontra-se a totalidade das dimensões da pessoa. Sendo assim, é preciso integrar em nossa consideração a dimensão intelectual, volitiva, espiritual, moral etc.

Não é necessário dizer muito mais para intuir uma possível classificação das conversões, segundo o elemento que mais esteja presente no processo que leva uma pessoa a decidir-se por responder afirmativamente ao chamado de Deus. Existem conversões intelectuais, enquanto que o elemento que mais se destaca é a busca da verdade por meio do estudo, principalmente; nas conversões morais, o que mais fica patente é o desejo de um ideal mais elevado na própria conduta; nas conversões emocionais, há uma forte sacudida emocional e eficaz ao mesmo tempo.

Há também os chamados itinerários de conversão ou caminhos de conversão, que considerados teologicamente levam-nos a sistematizar certos elementos presentes, de uma maneira ou outra, em todo itinerário rumo à fé. Para que a decisão de crer esteja arraigada na realidade, estão os preâmbulos da fé, que são verdades religiosas ou morais conhecidas pela razão natural: existência de Deus, imortalidade da alma etc. Já que ninguém pode crer sem um prévio conhecimento do que “deve” crer, está a pregação do Evangelho, à qual uma pessoa pode responder afirmativamente (fé) ou negativamente. Dado que o ser humano encontra-se aberto à transcendência e é um ser contingente (não necessário), dá-se o que podemos chamar pergunta pelo sentido da vida, que exige o interrogar-se sobre a questão “Deus”. Um momento fundamental do processo de conversão se dá na busca das razões para crer. Finalmente, a percepção pessoal da bondade e do dever de crer culmina este processo teológico da conversão já que aqui se da uma relação essencial entre fé e fim último do homem. Al falar do dever de crer não se pense, no entanto, em assentimento obrigatório, a pessoa sempre é livre para crer ou não, referimo-nos à percepção da necessidade de crer “para mim”.

Ao concluir, gostaria de ressaltar que, ainda que falemos de tantos processos, a conversão é, em definitiva, obra da graça de Deus e resposta livre do homem. Estas duas coordenadas nos dão os elementos para que façamos nossa reflexão, que foi que o que buscamos nas presentes considerações. Um elemento importantíssimo: cada conversão é uma história pessoal; daí a dificuldade para sistematizar os elementos da conversão.

IV. Conclusão. Como se está mal longe de Deus! As vezes as pessoas vão por aí como “Joãozinho feliz”, assim se expressava Joseph Ratzinger em sua “Introdução ao Cristianismo”. Joãozinho feliz, “como ele achasse por demais pesada e incômoda a barra de ouro que ganhara, trocou-a primeiro por um cavalo, depois trocou o cavalo por uma vaca, a vaca por um ganso e o ganso por uma pedra de amolar e mesmo esta ele acabou lançando na água, pois não se dava tento do prejuízo, pelo contrário: achava que tinha ganho, finalmente, o dom precioso da liberdade completa”[3]. Quantas pessoas trocam a barra de ouro do encontro com Deus e da vida nova em Cristo por uma suposta liberdade mal entendida! Essa historinha dá para pensar mais, deixo-a nas mãos do leitor.


[1] Para o presente estudo foram utilizados os seguintes artigos e dicionários (bibliografia resumida): D. MONGILLO, Dizionario di Omiletica 1998, 332-335; J. ALONSO, Diccionario de Teología 2006, 181-187; A. WENIN, Diccionario Akal Crítico de Teología 2007, 309-311; G. PICCOLO, Dizionario di teologia evangélica 2007, 147-148; L. M. FERNÁNDEZ, Diccionario Teológico del Catecismo de la Iglesia Católica 2004, 70-71; X. PIKAZA, Diccionario de la Biblia, Historia y Palabra 2007, 233.

[2] Neste caso se adverte que a palavra “conversão” não é a mais correta, já que é o batismo que introduz na Igreja de Cristo que subsite na Igreja Católica (cf. Constituição Dogmática Lumen Gentium, nº 8); quando um cristão não-católico quer fazer-se católico a Igreja fala de “entrar em plena comunhão com a Igreja Católica”. Isso é muito importante para o ecumenismo e sem dúvida poderia ser matéria para uma futura reflexão.

[3] Joseph RATZINGER, Introdução ao Cristianismo, São Paulo: Loyola, 2005, p. 25.

Fonte: https://presbiteros.org.br/

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF