Muito humanos, muito divinos (Opus Dei)
É justo e necessário: a
justiça.
A justiça começa pela nossa relação com Deus, que encontra a sua
abordagem exata numa atitude fundamental: agradecimento. Editorial da série
sobre virtudes: “Muito humanos, muito divinos”.
06/07/2023
Jesus fala para todos. Os pescadores escutam com gosto falar de uma rede
de arrastão (Mt 13, 47-52), os agricultores distraem-se discernindo quais são
os critérios para que uma semente dê um fruto duradouro (Mt 13, 2-9) e qualquer
dona de casa identifica-se com a história da mulher que perde uma moeda em
casa, porque sabe bem o que é isso (Lc 15, 8-10). Cristo sabe iluminar as
verdades mais transcendentes com as imagens mais cotidianas. No entanto,
algumas parábolas podem deixar-nos perplexos; embora sejam formuladas em
linguagem simples, situam-nos diante de paradoxos que nos obrigam a refletir.
Às vezes Jesus parece querer dizer-nos: “Meus pensamentos não são os vossos
pensamentos” (Is 55, 8).
Uma das histórias do mestre que talvez desperte mais perplexidade é a do
dono de uma propriedade que sai cedo para contratar operários para trabalhar em
sua vinha (Mt 20, 1-16). A narração começa como se poderia esperar: o dono
combina com os operários o salário para o dia e os envia a trabalhar. A
princípio parece que estamos simplesmente diante de uma consideração sobre o
aproveitamento do tempo e o rendimento em frutos. A parábola continua, no
entanto, e o proprietário decide contratar novos operários mais tarde, motivo
pelo qual trabalharão menos horas. A esses, em vez de garantir-lhes um salário
determinado, promete que pagará “o que for justo” (Mt 20, 4).
“O que for justo”. Esta expressão gera necessariamente expectativa nos
ouvintes e nos leitores. Supõe-se que os que começaram a trabalhar mais tarde
receberão menos do que quem se esforçou desde o amanhecer. Por isso, quando os
da última hora recebem o pagamento de um denário, pensa-se que os que começaram
mais cedo receberão uma recompensa maior pelo seu trabalho. O proprietário, no
entanto, desconcerta a todos: em primeiro lugar desconcerta os que trabalharam
poucas horas, porque recebem o mesmo valor que os outros operários: desconcerta
igualmente os da primeira hora, porque esperariam um adicional análogo sobre o
salário combinado. Os que mais se surpreendem, contudo, somos nós mesmos,
diante de uma concepção tão pouco convencional da justiça. “Por acaso não tenho
o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence?”, pergunta o dono da
vinha (Mt 20, 15). Nós também talvez não saibamos como interpretar estas
palavras.
É justo e necessário
Não interessa a Jesus falar de questões econômicas ou políticas: não
pretende, por exemplo, com esta parábola, discernir as características de um
conceito tão complexo como o salário justo. O Senhor quer sobretudo levar nosso
olhar para a atitude misericordiosa de Deus, que acolhe a todos, mesmo se o
procuram na última hora, como o bom ladrão (cfr. Lc 23, 43). Além deste sentido
fundamental, no entanto, a parábola do Mestre proporciona um marco narrativo,
para nos fazer refletir sobre os diferentes âmbitos da virtude da justiça na
nossa vida.
Se, como diz a definição clássica, a justiça consiste em dar a cada um o
que é seu, o que lhe cabe, estamos diante de uma disposição interior que
ressalta a nossa dimensão relacional. Convém então perguntar-se, em primeiro
lugar, o que devemos a Deus ou como será uma relação justa com quem é a Fonte
de todos os bens, começando pelo da nossa própria existência.
A oração eucarística da Santa Missa proporciona um bom ponto de partida.
A tradução literal do breve diálogo entre sacerdote e fiéis com que sempre
começa o prefácio diz assim: “Demos graças ao Senhor, nosso Deus. É justo e
necessário”[1].
Para começar, a gratidão e a justiça parecem contrapor-se: um presente
caracteriza-se precisamente por ser um dom imerecido. O agradecimento constitui
o reconhecimento de que uma pessoa foi além do estritamente devido. Diante de
Deus, no entanto, as coordenadas mudam radicalmente, porque ele é a origem de
tudo o que somos e possuímos. Como diz São Paulo: “Que é que possuis que não
tenhas recebido? ” (1 Cor 4, 7). Nossa vida, como tal, é puro dom imerecido;
daí que, com relação a Deus, o agradecimento seja um dever profundo. Nunca
poderemos devolver-lhe o que faz por nós, e nisso não há nada de injusto. Há
algo que é devido, profundamente justo: agradecer-lhe por tudo.
Descobrir que a nossa relação com Deus está condicionada pela sua doação
gratuita e terna leva-nos a desfrutar da vida como filhos e nos libera de uma
visão da fé exageradamente centrada na letra dos mandamentos.
Em vez de afligir-nos pelo que pode parecer uma lista infinita de propósitos ou
preceitos através dos quais, de alguma forma, pagaríamos o
preço da nossa redenção, podemos visualizar nossa correspondência ao amor de
Deus como uma disposição de presentear-lhe todos os instantes da nossa vida,
com a convicção de que nunca conseguiremos agradecer suficientemente por tudo o
que nos dá. Assim, por exemplo, a fidelidade a um plano de vida espiritual pode
ser sentida, mais do que como um peso de consciência diante de compromissos
assumidos, como a manifestação mais direta da nossa gratidão ao amor que Deus
concede abundantemente a cada um de nós. “Vós, se de verdade vos esforçais por
ser justos, tereis de considerar frequentemente a vossa dependência de Deus
– porque que tens tu que não hajas recebido? – para vos
encherdes de agradecimento e de desejos de corresponder a um Pai que nos ama
até a loucura”[2].
A sua justiça é maior que a nossa
Por outro lado, uma atitude de profundo agradecimento a Deus liberta-nos
de um desejo excessivo de julgar seu modo de atuar. Às vezes, diante de
acontecimentos pessoais ou sociais, quando de repente estamos em uma situação
inesperada, pode ser que nos interroguemos: “Como pode Deus permitir isso?”.
Talvez pensemos que outras pessoas são mais abençoadas que nós ou que Deus
parece não ouvir o que lhe pedimos e concluímos: “É injusto”. Então nos
comportamos como aqueles operários que trabalharam o dia inteiro e não
entenderam a generosidade exagerada do proprietário com os
operários que tinha contratado no final da tarde. Em vez de se alegrarem porque
aqueles operários iam ter dinheiro para poder comer, ficaram decepcionados por
causa da sua expectativa de receber mais.
Além disso, não faz sentido lançar a culpa dos males ao Senhor. Muitos
deles são resultado da liberdade humana, das ações e omissões próprias e
alheias. E também é preciso convencer-se na oração de que Deus é o Senhor da
nossa vida e da história; e ainda de que, embora na verdade não nos deva nada,
já que ele é Amor, está sempre procurando o melhor para cada
um, transformando às vezes o mal em bem de modo surpreendente. São João Paulo
II dizia que de certo modo a justiça “é maior do que o homem, que as dimensões
da sua vida terrena, que as possibilidades de estabelecer nesta vida relações
plenamente justas entre os homens”[3].
A oração de quem sabe que é filho de Deus é marcada pela confiança em
quem nos ama infinitamente e quer sempre o melhor para nós. Jesus reza assim no
horto das oliveiras: “afasta de mim este cálice! Não se faça, todavia, a minha
vontade, mas sim a tua” (Lc 22, 42). Diante de situações que não entendemos e
que talvez causem sofrimento, ao mesmo tempo que procuramos soluções, podemos
dizer ao Senhor: “que se faça a sua justiça e não a minha. Sei que estou em
boas mãos e que no final tudo será para bem”
A justiça é um desejo e um mistério. Um desejo profundamente enraizado
em nós, porém, também um mistério, no sentido de que corresponde unicamente a
Deus a última palavra sobre o que é justo e sobre os modos concretos de
restabelecer a justiça. Por isso, também não seria uma atitude cristã desejar o
castigo para nossos inimigos, como se dependesse de nós determina-la, ou nos
referirmos muita rapidamente à justiça divina para admoestar as pessoas que têm
um comportamento imoral ou baseiam suas vidas em valores muito diferentes dos
nossos.
É evidente que a fé na justiça divina deveria consolar-nos quando
sofremos uma injustiça ou quando uma transformação negativa do mundo nos causa
tristeza. “Existe uma justiça. Existe a ‘revogação’ do sofrimento passado, a
reparação que restabelece o direito”[4].
Como o proprietário da parábola, Deus cumpre a sua palavra e recompensa quem
trabalhou bem. Mas a revelação que Deus fez de si mesmo leva-nos a confiar, ao
mesmo tempo, em que a sua misericórdia o leva a dar sempre novas oportunidades
de conversão a quem faz o mal. “Não é simplesmente uma justiça estrita, baseada
em cálculos teóricos, a que levou o Filho de Deus a pedir perdão ao seu Pai em
nosso nome, mas um amor gratuito, que só tem em conta aquilo que pode fazer
pelos outros”[5].
Daí que o dono da vinha não fique de braços cruzados depois de ter contratado
os operários madrugadores, mas queira, inclusive na hora undécima, dar trabalho
a aqueles que estão a ponto de perder o dia. Em resumo, como escreve São
Josemaria, “Deus não se deixa ganhar em generosidade”[6].
Os outros são livres
Quando se reflete sobre a justiça como virtude que deveria modelar as
nossas relações com os outros, afirma-se muitas vezes que se trata apenas de um
requisito mínimo para a convivência: respeitar o outro em sua alteridade[7].
A justiça poderia então ser interpretada como uma atitude fria, que ressalta
mais as diferenças entre as pessoas do que o que elas têm em comum. Enquanto a
caridade busca a unidade, a justiça ressaltaria a separação. Se observarmos com
atenção, no entanto, a relação entre caridade e justiça é mais sutil.
O fato de que se dê a cada um o que lhe corresponde, como exige a
justiça, tem uma relação intrínseca com a devida distribuição dos bens, com o
devido cumprimento dos contratos e da palavra e com o respeito que devemos a
cada pessoa. Poderíamos dizer, pois, que a justiça nos ajuda a desenvolver uma
vida social pacífica, com regras do jogo claras e sem incomodarmos uns aos
outros.
Esta consideração é suficiente para perceber que não é pouco nem sequer
tão trivial reconhecer a alteridade dos outros e o direito que têm de ser como
querem. Isso é o que São Josemaria nos faz considerar: “Temos obrigação de
defender a liberdade pessoal de todos, sabendo que foi Jesus Cristo
quem nos adquiriu essa liberdade; se não agimos assim, com que direito
podemos reclamar a nossa?”[8].
É isso precisamente o que o dono da vinha reprova nos operários que começaram
cedo, que se sentem defraudados: “Amigo, eu não fui injusto contigo. Não
combinamos uma moeda de prata? Toma o que é teu e volta para casa! Eu quero dar
a este que foi contratado por último o mesmo que dei a ti. Por acaso não tenho
o direito de fazer o que quero com aquilo que me pertence? Ou estás com inveja,
porque estou sendo bom?” (Mt 20, 13-15).
Podemos sentir, às vezes, a tentação de desqualificar imediatamente as
opiniões de uma pessoa que tem um modo diferente de compreender o mundo ou age
de acordo com outros valores. Acentuamos assim excessivamente a dimensão
unitiva da caridade, considerando que qualquer diferença deveria ser superada
para dar lugar ao verdadeiro amor, e confundimos a justiça com a mera
igualdade. No entanto, “a justiça é o primeiro caminho da caridade (...) parte
integrante daquele amor”[9].
Esta virtude nos recorda, em primeiro lugar, que todos temos direito a ser como
quisermos, a manifestar exteriormente essa forma de ser e a usufruir dos nossos
bens. Como escreve o Papa Francisco, “nenhum indivíduo ou grupo humano pode se
considerar onipotente, autorizado pisar a dignidade e os direitos dos outros
indivíduos ou dos grupos sociais”[10].
São Josemaria falava com frequência do numerador diversíssimo de que
gozavam as pessoas que o seguiam: os diferentes modos de ser, as livres
opiniões e opções pessoais de cada uma, em matérias políticas, culturais,
científicas, artísticas, profissionais, etc. Distinguia isso de um denominador
comum, muito pequeno em comparação, que eram a questões fundamentais da fé e do
carisma que compartilhavam. Faz-nos muito bem valorizar, respeitar e amar as
diferenças legítimas com relação às pessoas que convivem conosco; “Quem ama a
liberdade consegue ver o que há de positivo e amável naquilo que os outros
pensam e fazem dentro desses amplos âmbitos”[11].
Pensar de outro modo implicaria cair na tentação sutil de querer ajudar
os outros com os nossos parâmetros, sem discernir sobre o que precisam de
verdade e, sobretudo, sobre o que lhes devemos. Seria injusto, por exemplo,
pagar a um funcionário um salário menor do que corresponde ao trabalho que ele
realizou, por pensar simplesmente que é melhor dar-lhe um prêmio que compense a
diferença. Nesse sentido, o dono da vinha não peca contra a justiça ao pagar o
mesmo a todos; pode-se talvez pensar que ele possui um critério peculiar da retribuição,
mas em momento algum falta à sua palavra: os que combinaram um denário,
receberam exatamente o estipulado; e os outros receberam o que pareceu justo ao
patrão. Assim é Deus: cumpridor justo das suas promessas, mas igualmente Pai
amoroso para quem “basta um sorriso, uma palavra, um gesto, um pouco de amor
para derramar copiosamente a sua graça sobre a alma do amigo”[12].
_______________________________
[1] Cfr.
Missal Romano, Oração Eucarística.
[2] São
Josemaria, Amigos de Deus, n. 167.
[3] São
João Paulo II, Audiência, 8/11/1978.
[4] Bento
XVI, Spe Salvi, n. 43.
[5] F.
Ocáriz, Carta pastoral, 16/02/2023, n. 8.
[6] São
Josemaria, Forja, n. 623.
[7] A
respeito da alteridade como dimensão fundamental da justiça cfr. J. Pieper, As
Virtudes fundamentais.
[8] Amigos
de Deus, n. 171.
[9] Bento
XVI, Caritas in veritate, n. 6.
[10] Francisco,
Fratelli tutti, n. 171.
[11] F.
Ocáriz, Carta pastoral, 9/01/2018, n. 13.
[12] São Josemaria, Via Sacra,
5ª estação.
Fonte: https://opusdei.org/