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quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Questões mundiais emergentes no início do Terceiro Milênio (4/5)

G20 - Bandeiras (Vecteezy)

Arquivo 30Dias – 09/2001

Questões mundiais emergentes no início do Terceiro Milênio

Um ensaio do presidente do IOR faz um balanço dos processos de globalização em curso e das consequências políticas e sociais. Longe da demagogia global-antiglobal.

por Ângelo Caloia

POR UMA GLOBALIDADE VIRTUOSA

É claro que a resistência continua. Nem é suficiente estabelecer as regras. Precisamos de instituições e de poderes capazes de os desenvolver e de os tornar eficazes.

O problema diz respeito ao método e não ao mérito, ou seja, à forma de proceder nesse caminho. A interdependência entre a economia, a tecnologia e os direitos humanos fundamentais requer uma interpretação virtuosa que a transforme em autêntica solidariedade. Isto exige que aprendamos a coordenar o pluralismo e que sejamos capazes de promover a democracia e a solidariedade à escala global: evitando assim que a "globalização imposta", aquela que responde apenas às leis da economia, veja o homem tornar-se objeto e não sujeito.

A globalização, um fenômeno composto, não é apenas a exaltação da interdependência econômica (intensificação das trocas, gestão internacional , externalização , “ fusões e aquisições ”, alianças entre empresas, multinacionais) e da interdependência financeira (o dinheiro, ao contrário dos bens, não tem fricção), mas é apoiado por tendências subjacentes impressionantes. É essencialmente multidimensional, ou seja, diz respeito a serviços, tecnologia, pessoas, bens e envolve ambiente, cultura, saúde, bem-estar e informação. São, portanto, necessárias mudanças substanciais nas instituições, nos sistemas sociais e na forma como a política econômica é gerida.

Talvez nunca antes a perspectiva na qual precisamos de “ler” os acontecimentos quotidianos tenha sido uma perspectiva internacional. Nunca antes os acontecimentos diários foram dominados pelo que acontece a nível global. O mesmo pedido de ajuda para redefinir a arquitetura do sistema financeiro internacional, a discussão sobre o papel das organizações internacionais (financeiras e outras), o debate sobre as tarefas e responsabilidades da ONU, da OMC, do FMI, do Banco Mundial e dos do Banco Central Europeu, confirmam que todas as análises, propostas e iniciativas devem lidar com a constatação de que vivemos numa era dominada pela globalização dos fenômenos sociais.

Contudo, o julgamento sobre as consequências da globalização não parece ser unívoco. À medida que o fenômeno se intensifica e se espalha, aparecem não só os benefícios óbvios, mas também os aspectos duvidosos, controversos ou negativos, que por vezes parecem ter precedência sobre os primeiros: são os efeitos distributivos ao nível dos países individuais ou das classes sociais desfavorecidas. , o crescimento da pobreza mesmo nos países mais ricos, a centralização das decisões mais importantes em algumas empresas multinacionais, a crescente instabilidade e turbulência nos mercados monetários e financeiros, as mudanças ambientais irreversíveis, os movimentos populacionais incontroláveis, a insegurança alimentar, a propagação da corrupção.

As empresas multinacionais, um formidável veículo de crescimento, correm o risco de representar um perigo para a democracia, uma vez que aspectos importantes da soberania do Estado já estão a enfraquecer. Não é por acaso que as autoridades e os organismos de controlo se desenvolvem em todo o lado, garantindo a manutenção das condições de concorrência. No que diz respeito aos fluxos financeiros internacionais, existe, portanto, um consenso cada vez mais amplo sobre a necessidade de uma jurisdição a nível global que possa regular os movimentos especulativos de curto prazo, eliminar o chamado risco moral e recompor a supervisão demasiado fragmentada a níveis mais amplos.

Embora a nível nacional (agora europeu) ninguém duvide que o controlo do dinheiro deve ser realizado pela autoridade, na economia global a criação de dinheiro e dos seus substitutos para utilizações internacionais é deixada ao mercado. Isto alimenta uma instabilidade sistémica que prejudica o desenvolvimento e acentua questões sobre o significado e os rumos dessa força dinâmica, feita de flexibilidade e adaptabilidade, que é a economia capitalista global.

Não há dúvida de que existem vantagens decorrentes de uma maior liberdade de escolha e de uma concorrência econômica mais viva, quando, no entanto, isso é acompanhado em todo o lado pelo respeito pelas regras. Pode certamente haver um dividendo: o desafio reside em torná-lo eficaz e, acima de tudo, em fazer com que todos participem, colocando mesmo os países mais pobres no caminho de uma integração justa e eficiente.

Não faltam problemas. Os custos do ajustamento (as reformas necessárias) não serão nem leves nem de curto prazo. O crescimento do desemprego será tanto mais acentuado quanto mais rígida for a utilização de mão-de-obra menos qualificada e quanto maior for a produtividade do capital subjacente à inovação tecnológica. No fundo pesará a realocação espacial de recursos em curso (deslocalização das fases de produção e importações de áreas de baixo custo).

A nível financeiro, a dimensão e a volatilidade dos movimentos de capitais já desencadearam crises de grande alcance (desde a do México em 1994 até às dificuldades mais recentes na Ásia, na Rússia e na América Latina). Podemos recordar, por último mas não menos importante, as dificuldades da política económica e a já mencionada erosão da soberania do Estado.

Com tudo isto, a globalização não parece opcional em comparação com outros cenários.
As restrições sistêmicas são frutos do voluntarismo político. A revogação de sistemas resultantes de decisões concertadas não teria êxito e atrairia sanções.

Os recuos protecionistas no comércio só poderiam levar a condições de ingovernabilidade a nível global e ampliar as grandes disparidades que ainda existem entre os vários países. Muitos dos efeitos que consideramos negativos teriam ocorrido de qualquer maneira, como resultado das novas condições tecnológicas, sociais e de aspiração das pessoas.

Certamente há uma acentuação desses efeitos. No entanto, é preciso dizer que, embora no século passado tendessem a persistir, as fortes reações de hoje obrigam muitas vezes aqueles que não têm regras a atribuí-las a si próprios. A cultura, a religião, as experiências passadas, o aumento da consciencialização fazem com que alguns comportamentos deixem de ser aceites, enquanto as forças psicológicas e sociais levam à adopção de acordos voluntários e de regras mais humanas e civis. É então mais provável que os efeitos negativos resultem em equilíbrios mais avançados: especialmente se os comportamentos individuais e sociais se tornarem mais coerentes e maduros e se as fortes pressões dos cidadãos com valores induzirem os governos a implementarem políticas que sejam mais sensíveis às evidências atuais.

A globalização pode, portanto, tornar-se uma oportunidade capaz de tornar mais virtuosa a colaboração entre homens e nações. Certamente, é o método mais incisivo para combater os privilégios e as rendas posicionais que se aninham em diferentes países. Contudo, a globalização não deve ser um álibi fácil para nos fecharmos atrás das forças impessoais do mercado ou, pior ainda, para tirarmos vantagens indevidas da ausência de regulamentações precisas. Num mundo cada vez mais interligado do ponto de vista económico, tecnológico e financeiro, é necessária uma mudança significativa e convicta no comportamento individual. Todos os atores económicos (empresários e gestores, unidades de consumo, sindicatos, investidores financeiros, decisores públicos) devem sentir-se envolvidos nas suas respectivas esferas de autonomia,

Só uma tal redefinição de comportamento poderá tornar a globalização mais favorável e compatível com os objetivos de crescimento harmonioso da comunidade mundial. Devem ser acompanhadas de inovações institucionais.

Na verdade, duas grandes dinâmicas, a integração e a cooperação internacional, procuram hoje mediar a liberdade nos mercados e nas regras institucionais. A integração viu nascer zonas de comércio livre e uniões aduaneiras (EFTA, NAFTA), mercados comuns (CEE) e, mais recentemente, a União Monetária Europeia.

A cooperação assistiu ao aumento e ao crescimento do papel dos organismos responsáveis ​​pela cooperação comercial (GATT, OMC), pela cooperação monetária ou financeira (Fundo Monetário Internacional, Banco de Pagamentos Internacionais) e pela cooperação para o desenvolvimento (Banco Mundial, BEI). Sem esquecer o G7 que se prepara para se tornar o G20: também este é um caminho que poderá levar a uma interpenetração e a uma solidariedade internacionais cada vez maiores.

Fonte: http://www.30giorni.it/

Francisco: testemunhar a fé não com palavras, mas com o exemplo

O Papa Francisco na Audiência Geral (Vatican News)

O Papa falou sobre o zelo apostólico do Beato José Gregório Hernández Cisneros, na Audiência Geral desta quarta-feira. Ele "não segue as próprias aspirações, mas a sua disponibilidade aos desígnios de Deus". Segundo Francisco, "o Beato compreendeu que, por meio do cuidado dos doentes, colocaria em prática a vontade de Deus. Chegou assim, nesta estrada interior, a acolher a medicina como um sacerdócio: «o sacerdócio da dor humana»".

https://youtu.be/u3RYegcAZnI

Mariangela Jaguraba - Vatican News

Na catequese da Audiência Geral, desta quarta-feira (13/09), realizada na Praça São Pedro, o Papa Francisco falou sobre o zelo apostólico de um leigo: o Beato José Gregório Hernández Cisneros. Nascido na Venezuela, em 26 de outubro de 1864, "recebeu a fé sobretudo da mãe, como contou: «A minha mãe ensinou-me a virtude desde o berço, fez-me crescer no conhecimento de Deus e deu-me a caridade como guia»". "São as mães que transmitem a fé. A fé se transmite em dialeto, ou seja, com a linguagem das mães, aquele dialeto que as mães sabem falar com os filhos. Vocês mães fiquem atentas a transmitirem a fé com aquele dialeto materno", sublinhou o Pontífice.

Segundo Francisco, "a caridade foi a estrela que norteou a existência do Beato José Gregório: pessoa boa e radiante, de caráter alegre, era dotado de uma inteligência marcante; tornou-se médico, professor universitário e cientista".

Viver a serviço de Deus e do próximo

Mas foi antes de tudo um médico próximo dos mais fracos, tanto que era conhecido na sua pátria como “o médico dos pobres”. À riqueza do dinheiro preferiu a do Evangelho, dedicando sua existência para socorrer os necessitados.

“Nos pobres, nos doentes, nos migrantes, nos sofredores, José Gregório via Jesus. E o sucesso que nunca buscou no mundo o recebeu, e continua recebendo, das pessoas, que o chamam de "santo do povo", "apóstolo da caridade", “missionário da esperança”.”

O Papa prosseguiu, dizendo que "José Gregório era um homem humilde, gentil e disponível. E ao mesmo tempo era movido por um fogo interior, pelo desejo de viver a serviço de Deus e do próximo. Movido por esse ardor, tentou várias vezes tornar-se religioso e sacerdote, mas vários problemas de saúde o impediram de fazê-lo. No entanto, a sua fragilidade física não o levou a fechar-se em si mesmo, mas a tornar-se um médico ainda mais sensível às necessidades dos outros; agarrou-se à Providência e, fortalecido na alma, foi mais ao essencial".

«O sacerdócio da dor humana»

Eis o zelo apostólico dele: não segue as próprias aspirações, mas a sua disponibilidade aos desígnios de Deus. E assim o Beato compreendeu que, por meio do cuidado dos doentes, colocaria em prática a vontade de Deus, socorrendo os que sofrem, dando esperança aos pobres, testemunhando a fé não com palavras, mas com o exemplo.

“Chegou assim, nesta estrada interior, a acolher a medicina como um sacerdócio: «o sacerdócio da dor humana». Quão importante é não sofrer passivamente as coisas, mas, como diz a Escritura, fazer tudo com bom coração, para servir ao Senhor.”

Esse entusiasmo, esse zelo de José Gregório vinham "de uma certeza e de uma força". "A certeza era a graça de Deus", sublinhou o Pontífice. "Ele por primeiro sentia a necessidade da graça, que a mendigava nas ruas e tinha extrema necessidade do amor. E eis a força que ele almejava: a intimidade com Deus. Era um homem de oração, a graça de Deus e a intimidade com Deus. Era um homem de oração que participava da missa", disse o Papa.

Promover o bem, construir a paz na justiça e na verdade

No contato com Jesus, José Gregório "se oferece no altar por todos". Ele "sentiu-se chamado a oferecer a sua vida pela paz. O primeiro conflito mundial estava em andamento. Chegamos assim ao dia 29 de junho de 1919: um amigo o visita e o encontra muito feliz. José Gregório soube de fato que foi assinado o tratado que põe fim à guerra. Sua oferta foi aceita e é como se ele sentisse que sua missão na terra estivesse concluída. Naquela manhã, como sempre, tinha ido à missa e depois saiu às ruas para levar remédios a um doente. Mas, enquanto atravessava a rua, foi atropelado por um veículo; levado ao hospital, morreu pronunciando o nome de Nossa Senhora. Assim terminou o seu caminho terreno, em uma rua, enquanto realizava uma obra de misericórdia, e em um hospital, onde fez de seu trabalho uma obra-prima como médico".

Ele nos estimula ao compromisso diante das grandes questões sociais, econômicas e políticas de hoje. Muitos falam sobre isso, tantos falam mal sobre isso, tantos criticam e dizem que tudo vai mal.

“Mas o cristão não é chamado a isto, mas sim a se ocupar disso, a sujar as mãos: antes de tudo, como nos disse São Paulo, a rezar, e depois a empenhar-se não em falatórios, a fofoca é uma praga, mas na promoção do bem, na construção da paz e da justiça na verdade.”

Também isto é zelo apostólico, é anúncio do Evangelho, é bem-aventurança cristã: “Bem-aventurados os pacificadores”.

"Sigamos em frente no caminho do Beato Gregório, um leigo, um médico, um homem de trabalho cotidiano que o zelo apostólico o impeliu a viver fazendo a caridade durante toda a vida", concluiu Francisco.

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt/

Os Mártires do Século XX (2/6)

Os Mártires do Século XX (Crédito: Cléofas)

Os Mártires do Século XX

 POR PROF. FELIPE AQUINO

O presente artigo considera o fato do martírio no século XX, paralelo ao dos primeiros séculos. A igreja quer reconhecer e homenagear os heróis da fé, que sofreram em campos do concentração, prisões e outras ocasiões, e dos quais alguns ainda vivem, merecendo toda a estima dos contemporâneos.

3. Um caso especial: a Albânia

3.1. A Perseguição

Em 1945 a Albânia tornou-se uma República Popular sob a chefia de Enver Hoxha, que empreendeu violenta opressão religiosa contra cristãos e muçulmanos. A Igreja Católica então contava 124.000 fiéis num total de um milhão de habitantes, mas a sua irradiação ia muito além do número de fiéis. A perseguição desencadeou-se primeiramente contra os Bispos, os Religiosos e os missionários estrangeiros; os fiéis que os defendiam, foram presos, torturados e, às vezes, mortos por recusarem denunciar publicamente os pretensos crimes do clero. Essa primeira onda persecutória visava também a cortar o relacionamento do clero com a Santa Sé mediante argumentos e promessas sedutoras. Os clérigos resistiram; então Enver Hoxha, a conselho de Stalin, resolveu eliminar radicalmente a Igreja Católica. Em 1948 só restava um Bispo católico em vida nas montanhas do Norte do país. Ficavam ainda umas poucas dezenas de presbíteros, que procuravam atender à Liturgia dominical, passando de uma paróquia a outra sob a permanente ameaça de encarceramento ou de execução sumária.

A situação em breve se modificou quando o governo albanês rompeu com a Iugoslávia; precisava de se consolidar interiormente; daí travar negociações com a Igreja em busca de um modus vivendi. Em 1951 Enver Hoxha aceitou firmar um tratado com Mons. Shilaku, reconhecendo os laços da Igreja na Albânia com Roma. Todavia o texto oficial publicado pelo governo albanês não correspondeu ao que fora estipulado nas conversações. Houve então protestos da parte de sacerdotes, que foram assassinados ou enviados para campos de concentração. Apesar de tudo, o povo católico não renunciava a viver a sua fé.

Entre 1952 e 1967 a situação se estabilizou entre repressão governamental e resistência dos fiéis. Todos os anos um sacerdote ou uma Religiosa morria em prisão ou em campo de concentração. Quem estava em campo de concentração, era retirado, por vezes, para comparecer a uma sessão de humilhação pública nas ruas das grandes cidades.

Aos 6/02/1967 Enver Hoxha dirigiu um discurso a toda a nação, incitando a juventude albanesa a levar a termo a luta “contra as superstições religiosas”. Os guardas vermelhos da Albânia, à semelhança dos da China, foram encarregados dessa revolução cultural. As igrejas, os conventos, as mesquitas foram tomados de assalto, profanados, saqueados, incendiados, destruídos ou transformados em depósitos, lojas ou apartamentos. Em oito meses 2169 lugares de culto foram assim extintos. Aos 22/11/1967, a Gazette, órgão oficial do governo albanês, publicou um decreto que anulava todos os acordos entre confissões religiosas e o Estado. A administração dos sacramentos, os rituais e as preces públicas foram proibidos sob pena de graves sanções. Os últimos membros do clero e os Religiosos foram presos, espancados em público, humilhados, intimados a apostar e, na maioria, enviados para campos de concentração. Não houve, porém, uma única defecção da parte de sacerdotes católicos.

O governo foi mais além… Pôs-se atacar qualquer objeto, símbolo ou gesto que pudesse ter significado religioso até mesmo na intimidade da família. Tenha-se em vista o seguinte caso: os católicos albaneses costumam iniciar suas refeições tomando um copo de raki, sua bebida preferida, e levantando a taça com as palavras: “Louvado seja Jesus Cristo!”. Pois bem, a partir de 1967 tais dizeres podiam custar cinco anos de prisão. Os(as) professores(as) de escolas maternais perguntavam às crianças se sabiam fazer o sinal da cruz; caso alguma criança demonstrasse sabê-lo, os seus genitores eram punidos até com cinco anos de prisão. Era proibido fabricar terços com grãos de girassol, como fazem os camponeses de Albânia. Era interditada a Rádio Vaticana, que todas as noites tinha emissões em língua albanesa. Em 1975 foram excluídos também todos os nomes que pudessem lembrar a religião: Benedito(a), Pedro, Paulo, Maria, Joana…

Não obstante, houve famílias que continuaram a transmitir a fé a seus filhos de maneira secreta. Alguns poucos sacerdotes clandestinos ainda celebravam os sacramentos às ocultas. Nos campos de concentração, os padres batizavam os adultos que o desejassem; caso fossem descobertos, como o foi o Pe. Kurti, eram executados.

Apesar de toda essa repressão religiosa, não se viu surgir o homem novo albanês exaltado pelos discursos de Enver Hoxha; a vida de fé prosseguiu clandestinamente, enquanto o país foi afundando na miséria ainda hoje perceptível.

Uma autêntica filha da Albânia, Madre Teresa de Calcutá via essa realidade com olhos confiantes na Providência Divina. Assim, ao receber o Prêmio Nobel da Paz de 1979, declarou:

“Creio que a Igreja na Albânia está vivendo a experiência de Sexta-Feira Santa, mas nossa fé nos ensina que a vida de Cristo não terminou na Sexta-Feira Santa, e, sim, se consumou na Ressurreição. Nosso povo albanês há de guardar esta verdade na sua mente. Tal é o segredo da paciência cristã…”

Os primeiros sinais de distensão religiosa ocorreram após a morte de Enver Hoxha. Mas somente em novembro de 1990 (um ano após a queda do Muro de Berlim), o Pe. Simon Jubani um dos raros sobreviventes, celebrou a primeira Missa pública após 1967, correndo ainda o risco da própria vida. Em breve, porém, pôde batizar uma centena de adultos.

O regime comunista recuou, como nos demais países da Europa, e aos fiéis foi concedida a liberdade de crença.

Com dificuldade a Albânia procura reerguer-se. Ainda há violência no interior do país, agravada em 1998 e 1999 pelas guerras nos Bálcãs.

D. Estevão Bettencourt, osb
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
Nº 456, Ano 2000, Pág. 194.

Fonte: https://cleofas.com.br/

São João Crisóstomo

São João Crisóstomo (A12)

13 de setembro

São João Crisóstomo

João Crisóstomo nasceu por volta do ano 349, em Antioquia, na Síria, Ásia Menor (atual Antakaya, sul da Turquia). Sua família era nobre e muito rica, bem considerada socialmente. Seu pai, um comandante de tropas romanas no Oriente, faleceu cedo, e sua mãe Antusa, futuramente canonizada, viúva aos 20 anos, providenciou a melhor formação religiosa e acadêmica possível para o filho. Na adolescência teve por mestre de Retórica o famoso Libânio, que logo viu no aluno um talento superior; de fato, queria torná-lo seu sucessor, mas João deixou a Retórica para dedicar-se à Fé.

Preparado durante três anos pelo bispo Melécio de Antioquia, que o tornara quase que um seu secretário, foi batizado e promovido a leitor. Entre 367 e 372, participou do asceterio, espécie de seminário de Antioquia, dirigido por Diodoro, futuro bispo de Tarso, quando conheceu bem vários escritos sagrados.

Melécio foi então condenado, pela terceira vez, ao desterro, e João decidiu abandonar os ofícios temporais, pensando em se retirar para uma vida eremítica. Não o vez imediatamente por instâncias da mãe, que ficaria sozinha. Em casa, passou contudo a viver num estilo monástico; não mais frequentava a vida social, a não ser os contatos doe, incluindo os futuros monges Teodoro e (São) Basílio; praticava o jejum e passava as noites estudando as Escrituras, à luz de uma lamparina.

Viveu depois disso uma experiência de quatro anos com os eremitas no vizinho monte Silpio, e ainda mais dois anos isolado numa caverna, estudando sem descanso dia e noite, principalmente as Cartas de São Paulo, sem jamais se recostar, o que lhe afetou a região gástrica e os rins. Teve que voltar a Antioquia em 381, para uma recuperação de saúde que durou cinco anos. Neste período foi ordenado diácono por Melécio, e escreveu algumas obras, que logo começaram a ficar conhecidas. Sua capacidade extraordinária de pregar ao povo sobre as Escrituras também se evidenciou. Por isso ficou conhecido como “Crisóstomo”, ou “boca de ouro”.

Em 386 o bispo Flaviano, sucessor de Melécio, ordenou-o como sacerdote e pregador oficial da diocese. No ano seguinte, os sermões que proferiu na Quaresma ficaram famosos (22, sobre estátuas, direcionadas à penitência e à conversão), relacionados à crise que ocorreu neste mesmo ano a partir do aumento de impostos ordenado pelo imperador Teodósio: um revolta popular em Antioquia contra esta determinação levou à quebra de estátuas do imperador, da imperatriz e dos seus filhos, o que deveria ser punido com mortes.

Num primeiro momento o imperador, em Constantinopla, foi tolerante nos castigos, mas enquanto isso procurava investigar os culpados. João aproveitou para pregar as virtudes cristãs e a conversão com diligência no período quaresmal, por rogos e advertências, a fim de que o bom exemplo das pessoas inclinasse favoravelmente o julgamento imperial; também conseguiu que Flaviano visitasse o imperador acompanhado de pessoas escolhidas, procurando lembrá-lo do valor das vidas humanas, levando inclusive um discurso escrito pelo próprio João, de modo a mitigar-lhe a ira. Teodósio enviou dois representantes para Antioquia, não para uma punição, mas para apurar os acontecimentos.

O povo, aliviado por não ter tido castigo imediato, logo desdenhou os sermões de João, voltando a se comportar como os pagãos. Em breve prisões, torturas e execuções começaram a acontecer, em ritmo acelerado e crescente. Convencido de que só o bom comportamento poderia impedir estes abusos, João solicitou aos eremitas das montanhas próximas que viessem à cidade em auxílio dos demais. Estes de fato vieram, e com sua postura de vida e autoridade moral enfrentaram os subordinados imperiais.

Um deles, Macedônio, disse aos dois enviados de Teodósio: “...se os antioquenos haviam agido mal destruindo imagens do imperador, que aliás tinham sido substituídas por outras mais belas, nem por isso o imperador, por mais imperador que fosse, tinha o direito de matar homens vivos, imagens do próprio Deus inseridas no livro da vida, que ninguém seria mais capaz de reconstituir”.

João havia convocado também monges e todo o clero de Antioquia e cidades vizinhas, que se ofereciam para morrer no lugar dos condenados, de modo a que terminasse a matança. Foram então suspensas temporariamente as execuções, para que se consultasse o imperador. Finalmente o bispo Flaviano, depois de inúmeros obstáculos, pôde ler para Teodósio o discurso de João, que enfatizava o valor infinito do perdão.

Ao final, o imperador, tocado no coração, respondeu: “Haverá algo de estranho quando nós, homens, perdoemos aos que nos ofenderam, homens também, quando o Senhor do mundo, depois de ter descido à terra e de Se ter feito servo por nós, […] implorou ao Pai pelo bem de Seus verdugos com aquela oração: ‘Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem?’.

Decretou anistia geral, perdoando os culpados e devolvendo a Antioquia os privilégios antes suprimidos.

Entre 386 e 397, João fez as suas mais famosas homilias. Em geral pregava três vezes por semana, e as multidões com frequência choravam ao ouvi-lo, sendo chamadas a abandonar os vícios e leviandades e seguir os Mandamentos de Deus. Mas em 397, falecendo o bispo Nectário de Constantinopla, João foi chamado para substituí-lo, por causa da fama das suas palavras, sendo sagrado, de má vontade, pelo patriarca Teófilo de Alexandria.

Constantinopla, a capital com sua corte, era neste tempo a mais desenvolvida cidade do império, mas também nos vícios e vontades mundanas. Reinava então no Oriente um dos filhos do falecido Teodósio, Arcádio, pusilânime, medíocre intelectualmente, fraco de vontade, e casado com Eudóxia, de origem social inferior, e cuja rápida ascensão a imperatriz facilitara a vaidade, cobiça e leviandade. O governo era exercido realmente por Eutrópio, um eunuco do tempo de Teodósio, que chegara ao cargo de “camareiro-mor”, com poderes de primeiro-ministro, e a quem se sujeitava o casal imperial; era ambicioso, de péssima conduta moral, ganancioso, e articulara o casamento de Eudóxia, sua protegida.

João verificou o lamentável estado de baixeza espiritual e moral da corte, da cidade, e, infelizmente, também do clero. Começou um esforço de reforma dos costumes, iniciando por si mesmo: retirou e vendeu todos os objetos de luxo da casa que ocupava, a do seu antecessor, e com o valor de tapeçaria, sedas, veludos, etc., incluindo sua cama, construiu um hospital e cuidou dos pobres. Dormia sobre algumas tábuas, coberto com um único cobertor.

Combateu a heresia ariana, que negava a divindade de Cristo, e condenou clara e duramente os vícios da corte e particularmente dos prelados. Em breve, a “aquisição” de um bispo famoso pela eloquência, que daria um maior “brilho” à cidade, começou a incomodar os que havia quase que forçado o seu episcopado: Aqueles que só pretendiam deleitar-se com suas formosas frases tiveram que escutar também amargas verdades sobre suas indignas ações (os bispos e cortesãos) e suas frivolidades”. Além disso, Eutrópio caiu na desgraça do casal imperial em 399, e acabou sendo protegido por João. Eudóxia passou a alimentar o desejo de vingança, e em termos práticos foi ela quem assumiu a autoridade imperial.

João Crisóstomo não apenas condenava verbalmente o luxo e a depravação da corte e os privilégios abusivos, a indolência e os vícios do clero, mas tomou medidas práticas no que podia fazer contra estes desvios. Assim removeu muitos padres indignos e também seis bispos, incluindo o de Éfeso. Cada vez mais ostensivamente, a nobreza e o clero passaram a hostilizá-lo.

Outros dois fatores contribuíram para a raiva contra João. O patriarca Teófilo de Alexandria, que obrigado por Arcádio o havia sagrado bispo, desde este evento lhe guardava ressentimento – talvez por inveja? – que recrudesceu quando alguns monges egípcios excomungados por Teófilo buscaram João para dar resposta às acusações que lhes tinham sido feitas. E Crisóstomo criticou Eudóxia e as cortesãs do palácio pelo seu modo pagão de vida, as quais reagiram com insultos e procurando desacreditá-lo.

Assim, em 403 Teófilo e Eudóxia convocaram um sínodo com 36 bispos hostis a João, em sua ausência, que o condenou com base em 21 casos falsos. O imperador Ardósio, já induzido à má vontade para com ele, condenou-o ao exílio, na Bitínia (antiga região do noroeste da Ásia Menor, na costa do Mar Negro, hoje Anatólia na Turquia). Este foi um exílio muito curto, por causa da indignação popular, que assustou a imperatriz e proporcionou o seu regresso.

Curto, porém, foi o período de calma, pois espetáculos e festas inadequadas e a imposição de uma estátua de prata de Eudóxia, a poucos metros da catedral, seguiram-se apenas dois meses depois. João tornou a criticar duramente estes excessos, e logo seus opositores o acusaram de afronta à imperatriz.

A resposta de João foi uma homilia condenando claramente festas pagãs em honra de imperadores cristãos, acrescentando que “já se enfurece novamente Herodíades, novamente se comove, dança de novo e mais uma vez pede a cabeça de João numa bandeja. ” Diante da controvérsia, Ardósio o proibiu de exercer as funções eclesiásticas e ordenou sua reclusão dentro da igreja. Crisóstomo, contudo, não podia em consciência deixar de celebrar as cerimônias da Semana Santa que se aproximavam, e houve violência durante os batizados na Vigília Pascal. Por causa disso João foi novamente exilado, não sem denunciar ao Papa, por carta, os acontecimentos.

Partiu em 404 para Cucusa, na Armênia, ao leste da (atual) Turquia, região entre o Mar Negro e o Mar Cáspio. Mesmo a esta distância, sua comunidade de Antioquia deslocou-se em peregrinação para encontrá-lo, o que provocou a ira ainda maior dos seus inimigos. Estes instigaram Arcádio a impedir as visitas dos fiéis, transferindo João para Pytius (atual Ptisunda, na Geórgia), às margens do Mar Negro, o que equivalia a uma condenação à morte: de fato, a caminhada a pé sob clima e terreno rigorosos o exauriram, e ele chegou moribundo a Comana Pontica (na atual Turquia). Faleceu em 14 de Setembro de 407, festa da Exaltação da Santa Cruz (por isso sua festa é comemorada um dia antes), na capela do mártir São Basilisco, onde foi sepultado.

Em 438, seus restos mortais foram transladados para Constantinopla, sob o imperador Teodósio II, filho se Arcádio e Eudóxia, que durante o cortejo, com o rosto apoiado no caixão, pedia a João Crisóstomo perdão para os seus pais.

 São João Crisóstomo é Doutor da Igreja, Padroeiro do Concílio Vaticano II, e um, senão o primeiro, dos maiores oradores católicos da História. Sua obra escrita é quase toda conservada, e inclui 17 tratados, mais de 700 homilias autênticas, grande parte delas sobre São Paulo, e 241 cartas. Seu livro mais famoso é "Sobre o Sacerdócio", clássico de espiritualidade monástica.

Colaboração: José Duarte de Barros Filho

Reflexão:

São João Crisóstomo teve oportunidade de conhecer a Filosofia e a Retórica, mas nem por isso se deixou levar pelas seduções das ideias e palavras vazias, ainda que bem organizadas e apresentadas. Ao invés disso, aproveitando o que pôde ser de valor instrutivo destas concepções humanas, dedicou-se ao estudo das matérias que têm conteúdo verdadeiro, palavras de vida eterna, e buscou a convivência com mestres e companheiros santos. Daí que pôde também ensinar, na teoria e na prática, a coerência necessária entre os preceitos de Deus e a vida dos batizados na Igreja, algo que mesmo imperadores dito cristãos, pessoas ditas fiéis, e ainda membros do clero não se prontificaram a seguir, preferindo dedicar-se a um modo de vida que, por assim dizer, propõe festas pagãs em honra de nomes cristãos… o panorama do século IV parece muito atual na cristandade do século XXI. E as perseguições, a quem quer seguir o Pastor, mudam só na aparência: os inimigos querem sempre manter longe Dele as ovelhas, manobrando para matá-Lo e para as manterem em cativeiro, impedidas de encontrá-Lo, se não pelas distâncias geográficas, por aquelas ideológicas, midiáticas, etc. Muita ênfase dá São João Crisóstomo, nos seus escritos, à educação infantil, fase da vida onde se sedimentam as virtudes, e onde esta coerência fundamental entre as ideias e o agir precisa ser estabelecida com firmeza. E seus maravilhosos escritos e sermões, pelos quais é mais conhecido, não teriam o mesmo valor se ele não agisse conforme pregava: tomou providências concretas para ajudar os necessitados, desfazendo-se de bens para construir um hospital, enviou uma embaixada para obter clemência do imperador para as pessoas da sua cidade, convocou ajuda de eremitas e monges – e assim conseguiu salvar vidas e almas, obtendo de Teodósio a sua belíssima compreensão do perdão... da valorização da santidade individual, João Crisóstomo propõe a construção, sempre em coerência, da estrutura social (conforme escreve nos seus comentários aos dos Apóstolos), baseada não mais na antiga polis grega, onde eram dados valores diferentes a pessoas de distintas camadas sociais e a pátria era superior ao indivíduo, mas sim no modelo da Igreja primitiva (cf. At 4,32-37), onde cada ser humano tem o mesmo valor intrínseco de filho de Deus, e por consequência, como verdadeiros irmãos, procuram conviver com equilíbrio baseado no amor, estruturando assim a organização, sucessivamente, das famílias, das comunidades e das nações. Neste sentido, ele é um inspirador da Doutrina Social da Igreja, que organiza esta vida em função da nossa verdadeira polis, pois “somos cidadãos do Céu” (cf. Fl 3,20). João não era político, nem “politicamente correto”, por isso exerceu com clareza, honestidade e coerência o seu sacerdócio e o seu bispado; por isso sofreu, já que “se enfurece novamente Herodíades…”, mas hoje está na glória de Deus. Não se pode ceder a “respeitos humanos” diante do que agride a Deus, a Igreja, a Verdade (que é Cristo!) e põe em perigo a salvação das almas. Conhecimento da Verdade e retidão de vida: a coerência entre elas é o cerne de toda a pregação de Crisóstomo, e a nossa obrigação e salvação cristã. Festejemos, como ele, a nossa ida para a verdadeira polis na Exaltação da Santa Cruz, ápice da congruência entre a Criação e a Redenção!

Oração:

Senhor, que nos transmitistes Vossa Palavra eterna, com a ação salvadora na qual necessariamente se traduz o Verbo, concedei-nos por intercessão de São João Crisóstomo a coerência no conhecimento e prática dos Vossos ensinamentos e da Vossa vontade, para que destruamos as imagens dos ídolos mundanos, e oferendo nossas vidas pelo amor do próximo, alegremente nos exilemos do que é mundano, proclamando a Verdade. E por Vossa infinita misericórdia, suscitai também hoje santos pregadores para a Vossa Igreja. Por Nosso Senhor Jesus Cristo e Nossa Senhora. Amém.

Fonte: https://www.a12.com/

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Os Mártires do Século XX (1/6)

Os mártires do Séculos XX (Crédito: Cléofas)

Os Mártires do Século XX

 POR PROF. FELIPE AQUINO

O presente artigo considera o fato do martírio no século XX, paralelo ao dos primeiros séculos. A igreja quer reconhecer e homenagear os heróis da fé, que sofreram em campos do concentração, prisões e outras ocasiões, e dos quais alguns ainda vivem, merecendo toda a estima dos contemporâneos.

A história se repete. O passado, que parecia definitivamente ultrapassado, retorna com modalidades novas. É o que se dá com a época dos mártires de 64 a 313, em que o Império Romano levou à morte muitos milhares de cristãos. O século XX fez que os cristãos revivessem a era do martírio não mais com anfiteatros e feras, mas em campos de concentração, masmorras solitárias, fuzilamento.., Conforme o Papa João Paulo II, é dever da igreja recordar este fato e comemorar os heróis que faleceram por fidelidade a Cristo em quatro continentes do mundo contemporâneo:

“Estes dois mil anos depois do nascimento de Cristo estão marcados pelo persistente testemunho dos mártires.

Também este século, que caminha para o seu ocaso, conheceu numerosíssimos mártires, sobretudo por causa do nazismo, do comunismo e das lutas raciais ou tribais. Sofreram pela sua fé pessoas das diversas condições sociais, pagando com o sangue a sua adesão a Cristo e à Igreja ou enfrentando corajosamente infindáveis anos de prisão e de privações de todo gênero, para não cederem a uma ideologia que se transformou num regime de cruel ditadura. Do ponto de vista psicológico, o martírio é a prova mais eloquente da verdade da fé, que consegue dar um rosto humano inclusive à morte mais violenta e manifestar a sua beleza mesmo nas perseguições mais atrozes.

Inundados pela graça no próximo ano jubilar, poderemos mais vigorosamente erguer ao Pai o nosso hino de gratidão, cantando: Te martyrum candidatus laudat exercitus (o exército resplandecente dos mártires canta os vossos louvores). Sim, é o exército daqueles que “lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro” (Ap 7, 14). Por isso, a Igreja espalhada por toda a terra deverá permanecer ancorada ao seu testemunho e defender zelosamente a sua memória. Possa o povo de Deus, revigorado na fé pelos exemplos destes autênticos campeões de diversa idade, língua e nação, cruzar confiadamente o limiar do terceiro milênio. À admiração pelo seu martírio associe-se, no coração dos fiéis, o desejo de poderem, com a graça de Deus, seguir o seu exemplo, caso o exijam as circunstâncias” (Bula Incarnationis Mysterium nº 13).

1. Martírio: que é?

A palavra mártir vem do grego mártys, mártyros, que significa testemunha. O mártir é uma testemunha qualificada que chega ao derramamento do próprio sangue. O Papa Bento XIV assim se exprime:

“O martírio é a morte voluntariamente aceita por causa da fé cristã ou por causa do exercício de outra virtude relacionada com a fé”.

O Catecismo da Igreja Católica § 2473 retoma o conceito:

“O martírio é o supremo testemunho prestado à verdade da fé; designa um testemunho que vai até a morte”.

O Concílio do Vaticano II desenvolve tal noção:

“Visto que Jesus, Filho de Deus, manifestou Sua caridade entregando Sua vida por nós, ninguém possui maior amor que aquele que entrega sua vida por Ele e seus irmãos (cf. 1Jo3, 16; Jo 15, 13). Por isso, desde o início alguns cristãos foram chamados e alguns sempre serão chamados para dar o supremo testemunho de seu amor diante de todos os homens, mas de modo especial perante os perseguidores. O martírio, por conseguinte pelo qual o discípulo se assemelha ao Mestre, que aceita livremente a morte pela salvação do mundo, e se conforma a Ele na efusão do sangue é estimado pela Igreja com exímio dom e suprema prova de caridade. Se a poucos é dado, todos, porém, devem estar prontos a confessar Cristo perante os homens, segui-lo no caminho da cruz entre perseguições, que nunca faltam à Igreja” (Lumen Gentium nº 42).

A propósito deve-se notar o seguinte: O martírio é uma graça que tem sua iniciativa em Deus. Não compete ao cristão procurar o martírio provocando os adversários da fé. A Igreja sempre condenou esse comportamento, pois seria presunçoso (quem pode Ter certeza de suportar corajosamente os tormentos do martírio?); além do quê, seria provocar o pecado do próximo ou dos algozes.

Para que haja martírio propriamente dito, requer-se que o cristão morra livremente, ou seja, aceite conscientemente o risco de morrer por causa da sua fé. A aceitação da morte pode ser explícita, como no caso em que o perseguidor deixa a escolha entre renegar a fé (ou uma virtude relacionada com a fé) e a morte. A aceitação livre pode ser implícita quando a pessoa sabe que o seu compromisso cristão pode levá-la até a morte e, não obstante, é fiel a esse compromisso.

Para que a Igreja declare oficialmente que alguém é mártir da fé, são efetuadas pesquisas a respeito de:

– a verdadeira causa da morte: pode ser que um cristão seja condenado à morte não por ser cristão, mas por estar envolvido em alguma campanha política ou de outra ordem;

– a livre aceitação da morte por parte da vítima;

– graças ou milagres obtidos por intercessão do(a) servo(a) de Deus.

O processo é iniciado na diocese à qual pertencia a vítima ou na qual ela foi levada à morte. Continua e termina em Roma, na Congregação para as Causas dos Santos.

O martírio é algo tão antigo quanto a pregação da Palavra de Deus. Já ocorreu na história dos Profetas do Antigo Testamento. No século II a.C. os irmãos macabeus sofreram a morte cruenta por causa da sua fé (cf. 2Mc 7, 1-42), assim como o escriba Eleazar (cf. 2MC 6, 18-31). O martírio teve seu ponto alto em Jesus Cristo. Santo Estêvão é o primeiro mártir do Cristianismo após Jesus Cristo (cf. At 7, 55-60). No fim do século I o Apocalipse fala de “imensa multidão, que ninguém pode numerar, daqueles que lavaram e alvejaram suas túnicas no sangue do Cordeiro” (cf. Ap 7, 9.14). Em síntese, São Paulo afirma que “todos aqueles que quiserem viver com piedade em Cristo Jesus, serão perseguidos” (2Tm 3, 12).

2. O Martírio no século XX

O martírio, tão presente em nosso século como em nenhum outro, tem suas características próprias, assaz paradoxais:

1) Este é o século em que as autoridades mais se preocuparam com não fazer mártires cristãos. Assim o nacional-socialismo alemão condenou muitos fiéis católicos não por causa da sua fé, mas por motivos políticos. Do lado marxista, Stalin recomendava aos chefes de regime comunistas que nunca pusessem a luta contra a Igreja no plano religioso, mas sempre no plano político, como fazia Himmler na Alemanha. O aparato jurídico soviético dispunha de dezenas de leis e decretos destinados a envolver os religiosos em tramas de ordem civil e política, e nunca de ordem religiosa.

O Cardeal Alexandre Todea, cabeça da Igreja Católica na Romênia, viu a liquidação da Igreja em 1948. Tornou-se pastor clandestino de seus fiéis. Em abril de 1952, em Bucarest, o general Nikolki, chefe da Securitate, chamou-o à sua presença depois que o Cardeal foi descoberto e preso, e disse-lhe:

“Já que ninguém no século XX morre por causa da sua fé, o Sr. Deve reconhecer que quis aniquilar os comunistas”.

Respondeu-lhe o Cardeal: “Antes disso, posso chamar um psiquiatra?”

– “Para quê?”

– “Para averiguar qual de nós dois é louco: o senhor ou eu?”

O Cardeal foi finalmente condenado à morte “como lacaio do Vaticano e inimigo do comunismo, constituindo uma ameaça para o novo estilo de vida que leva ao povo a felicidade”.

2) O martírio incruento… Muitos fiéis foram sujeitos à tortura física, psíquica e moral mais requintada possível sem chegar a morrer. O encerramento em campos de concentração, com todo tipo de maus tratos, podia durar dez, vinte, trinta ou mais anos, exigindo coragem e tenacidade sobre-humanas. E, apesar de tudo, não lograram o título de mártires (apesar de terem sofrido crudelíssimos tormentos). Conta um sacerdote sobrevivente de um campo de concentração:

“Se eu soubesse o que me aguardava no campo de concentração, eu teria preferido ser fuzilado. Mas, ao contrário, eu me alegrei! Se eu tivesse sido fuzilado como tantos outros sacerdotes, teria sido um mártir. Hoje trata-se de beatificar um ou outro deles, e eu, que sofri por muito mais tempo do que eles, ainda posso cometer desatinos sobre a terra”.

3) Há aqueles que morreram desconhecidos, como vítimas de violência e maus tratos. Ninguém o testemunhou para poder proclamar seu heroísmo e sua glória. Não tiveram a graça de confessar frente ao mundo o nome de Jesus, embora tenham morrido por causa dele.

Os mártires do século XX foram, muitas vezes, ignorados… na Alemanha, na URSS, na China, em Cuba… Em parte, isto se deu por causa da censura das notícias que saiam de tais países; não era (nem é hoje ainda) possível saber o que acontece nos bastidores de um país totalitário. Em parte, também se deve à onda de secularismo que tem passado pelas nações em que há liberdade religiosa: o consumismo e o bem-estar têm levado muitos cristãos a quererem atenuar a loucura e o escândalo da fé, afastando os homens de Cristo e da Igreja.

D. Estevão Bettencourt, osb
Revista: “PERGUNTE E RESPONDEREMOS”
Nº 456, Ano 2000, Pág. 194.

Fonte: https://cleofas.com.br/

Dos Sermões de São Bernardo, abade

Estarei no meu posto de sentinela (KYRIOS)

Dos Sermões de São Bernardo, abade

(Sermo 5 de diversis, 1-4: Opera Omnia, Edit. Cisterc. 6,1 [1970]98-103)     (Séc. XI)

Estarei no meu posto de sentinela

para ouvir o que me diz o Senhor


Lemos no Evangelho que, quando o Senhor em sua pregação convidava os discípulos a participarem do mistério de comer o seu corpo também os exortava a comungar de sua paixão, alguns disseram: É dura esta palavra; e já não mais ficaram com ele. Interrogados os discípulos se também eles queriam ir-se embora, responderam: Senhor, a quem iremos? Tu tens as palavras da vida eterna (Jo 6,68).


Digo-vos, irmãos, que até hoje para alguns é evidente serem as palavras faladas por Jesus espírito e vida e por isso seguem-no. Para outros parecem duras e vão em busca de outra miserável consolação. A Sabedoria as repete bem alto nas praças, na larga e espaçosa estrada que leva à morte, para chamar a si os que caminham por ela.

Até mesmo Quarenta anos estive próximo desta geração e disse: Sempre se extraviam pelo coração (Sl 94,10). Encontras também em outro salmo: Uma vez falou Deus (cf. Sl 61,12). Sim, uma vez, porque sempre. É um só e não alterado, mas contínuo e perpétuo seu falar.

Convida os pecadores a novamente entrarem em si, censura pelo erro do coração para que aí habite ele e aí fale, realizando aquilo que ensinou pelo profeta ao dizer: Falai ao coração de Jerusalém (Is 40,2).


Bem vedes, irmãos, como é proveitosa a exortação do Profeta a não endurecermos o coração, se ouvirmos hoje sua voz. Quase as mesmas palavras podeis ler no Evangelho e no Profeta. Ali diz o Senhor: Minhas ovelhas ouvem minha voz (Jo 10,27). E o santo Davi no salmo: Seu povo (do Senhor, sem dúvida) e ovelhas de suas pastagens, hoje se ouvirdes sua voz, não endureçais os vossos corações (Sl 94,7-8).


Escuta, por fim, o profeta Habacuc, como não disfarça a censura do Senhor, mas se entrega a contínua e solícita reflexão sobre ela: Estarei de atalaia, fincarei pé no meu reduto para ver o que me dirá e o que responderei a quem me repreende (Hab 2,1). Também nós, irmãos, suplico, estejamos de atalaia porque o tempo é de luta.  

Entremos em nossos corações, onde Cristo habita, comportando-nos com justiça e prudência, de tal forma, porém, que não ponhamos em nós mesmos a confiança nem nos apoiemos em tão frágil proteção.

Fonte: https://liturgiadashoras.online/

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF