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sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O Amor que abraça o mundo (A Criação, 2)

O Amor que abraça o mundo (Opus Dei)

O Amor que abraça o mundo (A Criação, 2)

Após ter refletido sobre os relatos da criação, podemos nos perguntar outra vez: em que sentido é racional falar de criação hoje?

18/12/2017

Para muitas pessoas, dizer que o amor ocupa um lugar central na realidade é uma ideia bonita e inspiradora. Mas talvez frequentemente se trate uma convicção nostálgica: o mundo seria um lugar melhor se todos nos guiássemos por esse princípio. É o que dizem a si mesmos. A experiência do mal, das injustiças, da imperfeição do mundo, parecem fazer do amor mais um ideal a que aspirar do que a base sobre a qual se levanta o próprio edifício da realidade. “De fato, aos olhos do homem moderno, parece que a questão do amor não tem nada a ver com a verdade; o amor surge, hoje, como uma experiência ligada, não à verdade”[1].

“NADA MAIS OCULTO QUE ELE, NADA MAIS PRESENTE; DIFICILMENTE SE ENCONTRA ONDE ESTÁ, MAIS DIFÍCIL ONDE NÃO ESTÁ (SANTO AGOSTINHO)

Por contraste, a fé cristã encontra, na origem do universo, um Amor pessoal e infinitamente criativo, que chegou ao ponto de entrar ele mesmo, como mais um em sua criação, para salvá-la. “Eu te amo com amor de eternidade; por isso, guardo por ti tanta ternura” (Jer 31, 3). Muitas pessoas que trabalham com entusiasmo para melhorar o mundo reconhecem a grandeza desta visão da realidade, mas não podem deixar de ver a ideia de um ser pessoal e eterno – um ser que precede o mundo – como algo que no fundo corresponde a um modo de pensar “mítico e contrário ao sistema”[2]: uma ideia que não pertence à estrutura racional que pode ser compartilhada, baseada em nossa experiência comum do mundo. Depois de ter refletido sobre os relatos da criação no Gênesis, podemos nos perguntar agora, mais uma vez: é racional falar de criação hoje?

Onde está Deus?

É frequente ouvir, inclusive entre pessoas com fé, a consideração de que, enquanto a ciência baseia as suas afirmações em provas seguras, a ideia de Deus se basearia em tradições ou suposições não verificáveis. À primeira vista, parece difícil contradizer essa ideia. No entanto, se considerarmos que “provas seguras” significa aqui “evidências empíricas”, compreende-se que essa segurança tem um alcance limitado pela própria ciência, que deliberadamente se concentra nos aspectos empíricos e mensuráveis da realidade. Essa decisão estratégica permitiu à ciência crescer exponencialmente, mas também implica que seu estudo não pode embarcar toda a realidade, ou pelo menos não pode descartar que a realidade seja mais ampla. Por outro lado, como toda disciplina – também a teologia –, a ciência experimental tem pontos de partida que ela mesma não pode demonstrar. Um deles é a existência da realidade que estuda, que requer, necessariamente, uma reflexão racional de outro tipo. Entende-se assim que a revelação cristã não questione o método da ciência nem seus êxitos evidentes: na realidade, precede esta metodologia e lhe abre horizontes mais amplos.

É verdade que o modo peculiar com que Deus se faz presente no mundo, às vezes, pode fazê-lo parecer um grande ausente. Santo Agostinho escrevia: “Nada mais oculto que ele, nada mais presente; dificilmente se encontra onde está, mais difícil onde não está”[3]. Esse paradoxo, este cruzamento de sim e não, que parece um curto-circuito, fala pelo contrário da necessidade de abrir a racionalidade a outro nível[4]. Deus não é uma realidade como outras neste mundo, nem intervém necessariamente nos processos naturais verificáveis empiricamente. Deus atua em um nível muito mais profundo, sustentando o próprio ser das coisas, fazendo que as coisas sejam. Ao falar Dele, inclusive para negar sua existência, a linguagem vai sempre além do âmbito de rigor da ciência experimental, e se insere em uma linguagem distinta, que a própria ciência pressupõe, e que tem também um rigor próprio: a linguagem filosófica ou metafísica. Por isso, o deus que fosse obrigado a revelar-se através de instrumentos de observação científica não seria o verdadeiro Deus, mas uma caricatura d’Ele. E o verdadeiro Deus não interfere na ciência, porque está num nível de realidade anterior à própria ciência. Deus não cabe nas leis da física, porque é melhor dizer que as leis da física é que “cabem” n’Ele[5].

UMA CIÊNCIA SEM DEUS NÃO LIBERTARIA O MUNDO DOS MITOS, PORQUE SEMPRE FICARIAM, INEVITAVELMENTE, FENDAS QUE SERIAM PREENCHIDAS COM OUTRAS EXPLICAÇÕES

A contribuição da ciência foi decisiva para tornar o homem consciente da grandeza do universo, da sua evolução dinâmica; para compreender as suas leis, assim como a trajetória evolutiva, que forma uma espécie de pré-história biológica da aparição do homo sapiens sobre a terra. Entretanto, a ciência não pode explicar completamente a origem do universo, porque este evento não entrelaça dois “estados” da mesma realidade. Explicar a “lei” com a qual se passou do nada à primeira forma embrionária do universo está fora das possibilidades da ciência, porque o nada não pode ter uma representação científica. Toda teoria cosmológica assume uma estrutura espaço-temporal como ponto de partida; e o nada em sentido radical, ou seja, o não ser, fica fora dessa estrutura: o limiar que separa o ser o nada é metafísico[6]. Entende-se, por isso, que o diálogo entre a ciência e a teologia não só é desejável mas também necessário, e que requer a mediação da filosofia, no papel de interlocutor capaz de compreender o alcance e as possibilidades de ambas as disciplinas, mais que como um árbitro para pôr paz entre partes em litígio.

No coração do real

Mesmo que se aproxime da origem do universo, pois, a ciência fica sempre do lado de cá da realidade, dentro do ser. Há muitos cientistas que, ao identificar esse limiar, percebem a necessidade de empreender uma reflexão filosófica, a partir da qual é possível chegar a compreender a necessidade de um Criador na origem do universo. “A própria formosura da criação é, sem dúvida, um grande livro. Contempla, olha, lê sua parte superior e inferior. Deus não fez letras de tinta, mediante as quais pudesses conhecê-lO: pôs diante dos teus olhos essas coisas que fez. Por que buscas uma voz mais potente? A ti clamam o céu e a terra: ‘Deus me fez’”[7].

No entanto, a própria filosofia encontra perguntas limite: por que existe o ser e não o nada? Por que existo? Nesse sentido, a fé cristã contribui com “uma nova imagem de Deus, mais elevada do que a que poderia ser forjada ou pensada pela razão filosófica. Mas a fé não contradiz a doutrina filosófica de Deus; (...) a fé cristã em Deus aceita em si a doutrina filosófica sobre Deus e a consuma.”[8] Diante da pergunta sobre o porquê, o sentido último da existência – pergunta que se torna decisiva para todos em algum momento da vida –, faz-se o silêncio. Então a fé cristã se levanta, e responde sinceramente: Deus estava aí antes do mundo, pensou nele, e o criou com amor.

Essa simples afirmação produz, na realidade, o contrário do que, às vezes, é atribuído à noção de criação: desmistifica o universo. Compreender o mundo como criação de Deus é “a ‘Iluminação decisiva da história (...), a ruptura com os temores que tinham reprimido os homens. Significa a libertação do Universo pela razão, o reconhecimento da sua racionalidade e de sua liberdade”[9]. Mesmo que a ciência seja capaz de ler uma parte importante da lógica interna da natureza, uma ciência sem Deus não libertaria o mundo dos mitos, porque sempre ficariam, inevitavelmente, fendas que seriam preenchidas com outras explicações[10]. Não é possível, pela autolimitação da ciência ao empírico, que ela própria cubra algum dia todas essas fendas. E o homem não deixará de se perguntar por elas, porque o próprio ato de fazê-lo – como o próprio exercício da ciência – mostra que o ser humano transcende o nível empírico. O espírito humano, que se manifesta entre outras coisas no fato de que cada um de nós percebe sua identidade diante do mundo, no fato de nos perguntarmos por essas fendas, e inclusive no fato de que alguém possa considerar estúpido perguntar-se por elas… Tudo isso manifesta, mesmo do ponto de vista meramente filosófico, que nós mesmos – apesar de ser um microcosmos, que compartilha com o universos seus mesmos elementos – somos algo mais que simples mundo.

A liberdade pessoal e a autoconsciência, pelas quais uma pessoa percebe que é distinta do mundo, são por isso também grandes fendas através das quais o homem pode vislumbrar a transcendência: falam do Deus pessoal que é ainda mais radicalmente distinto do mundo, e que o cria livremente. E vice-versa, no reconhecimento de que a realidade tem sua origem nessa Liberdade criadora se joga o próprio reconhecimento da liberdade humana, e, portanto, da dignidade de cada pessoa[11]. Este é um dos sentidos fundamentais nos quais o Gênesis diz que “Deus criou o homem à sua imagem” (Gn 1,27): nós mesmos somos um espelho no qual se pode vislumbrar a Deus. Por isso o Bem-Aventurado John Henry Newman identificava na consciência “nosso grande mestre interior de religião”[12], um “princípio de conexão entre a criatura e o criador”[13].

A fé na criação, pois, não acrescenta de fora o “mundo do espírito” ao mundo material: afirma decididamente que Deus abraça inteiramente o universo material. A intuição poética de Dante o expressou de modo imortal: Deus é “o amor que move o sol e as outras estrelas”[14]. No coração do real está Deus, e Deus ama o mundo, e cada um: “aberta sua mão com a chave do amor, surgiram as criaturas[15]”. Neste sentido um pensamento recorrente em São Josemaria tem grande profundidade teológica; ao atuar, costumava dizer, este é “o motivo mais sobrenatural de todos: porque nos apetece[16]. A liberdade e o amor, como a racionalidade do mundo, falam de Deus. Por isso, Santo Agostinho reconhecia Deus no livro da natureza, encontrava-O também na intimidade de sua alma: “Eis que estavas dentro de mim, e eu lá fora, a te procurar! (...) Tu me chamaste, gritaste por mim, e venceste minha surdez. Brilhaste, e teu esplendor afugentou minha cegueira”[17].

O milagre do mundo

A realidade dos milagres corresponde a esta mesma prioridade que a liberdade, o amor e a sabedoria de Deus têm sobre o mundo. Com seu peculiar estilo paradoxal, Chesterton dizia: “Quem acredita numa lei natural inalterável não pode acreditar em nenhum milagre em nenhuma época. Quem crê em uma vontade anterior às leis, pode crer em qualquer milagre de qualquer época”[18]. Os três Evangelhos sinóticos falam de um leproso que se aproxima de Jesus, pedindo a sua cura. Jesus responde: “Quero, sê limpo” (Mt 8, 3). Deus cura àquele homem porque quer, da mesma forma que criou o mundo, e criou cada pessoa, porque quer, por amor. Comentando o relato de outro milagre, a cura de um cego, Bento XVI observava: “Não é por acaso que o comentário conclusivo das pessoas, depois do milagre, recorda a avaliação da criação no início do Gênesis: ‘Ele fez bem todas as coisas’ (Mc 7, 37). Na obra curadora de Jesus sobressai de modo claro a oração, com o seu olhar voltado para o Céu. A força que curou o surdo-mudo é, sem dúvida, provocada pela compaixão por ele, mas provém do recurso ao Pai. Encontram-se estas duas relações: a relação humana de compaixão para com o homem, que entra em relação com Deus, tornando-se assim cura”[19].

VIVEMOS POR MILAGRE: CADA INSTANTE DA NOSSA VIDA DIÁRIA ACONTECE NO MEIO DO MILAGRE DE UM MUNDO QUE EXISTE POR AMOR

Os milagres, pois, não são exceções que põem em questão a solidez e a racionalidade do mundo, mas indicam a própria raiz dessa solidez: manifestam o verdadeiro milagre, que é a própria existência do Universo e da vida. O verdadeiro milagre – miraculum, algo diante de que só cabe se admirar – é a criação de Deus. A abertura da razão a este início dos inícios não só torna os milagres razoáveis, mas sobretudo torna o próprio mundo razoável. “A uniformidade e a generalidade das leis naturais (...) levam a pensar que a natureza se basta a si mesma. E, no entanto, não há solução de continuidade entre a criação e o acontecimento mais habitual e banal. O milagre intervém para nos convencermos disso”[20].

Às vezes, se diz que “vivo por milagre”, para se referir à forma surpreendente como certos problemas ou perigos são resolvidos. Na realidade, a expressão recolhe uma verdade radical: cada instante da nossa vida diária acontece no meio do milagre de um mundo que existe por amor. “Cada um de nós, cada homem e cada mulher, é um milagre de Deus, é desejado por Ele e conhecido pessoalmente por Ele”[21]. Como dizia São Paulo aos que o escutavam no Areópago de Atenas, “nele vivemos, nos movemos e somos” (At 17, 28). Por isso, “na tradição judaico-cristã, dizer ‘criação’ é mais do que dizer natureza, porque tem a ver com um projeto do amor de Deus, onde cada criatura tem um valor e um significado”[22].

***

“Eu te louvo porque me fizeste maravilhoso” (Sl 139,14): a fé na criação se manifesta em uma atitude de profundo agradecimento. Apesar da dor e do mal presentes no mundo, a realidade inteira – e especialmente a nossa vida e a dos que nos rodeiam – aparece como uma promessa de felicidade: “Todos que estais com sede, vinde buscar água! Quem não tem dinheiro venha também! Comprar para comer, vinde, comprar sem dinheiro vinho e mel” (Is 55,1). O homem tem consciência de ser inerme – porque realmente o é –, mas destinatário de uma generosidade infinita que o chama a viver, e a viver para sempre. Santo Irineu sintetizou esta ideia em uma máxima célebre: “A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus”[23]. Com este modo de ver, a vida não é uma simples luta pelo sucesso ou pela sobrevivência, nem sequer em condições extremas: é espaço para agradecimento, para a adoração, na qual o homem encontra seu verdadeiro descanso[24]. “Como é maravilhosa a certeza de que a vida de cada pessoa não se perde num caos desesperador, num mundo regido pelo puro acaso ou por ciclos que se repetem sem sentido! O Criador pode dizer a cada um de nós: ‘Antes de te haver formado no ventre materno, Eu já te conhecia’ (Jr 1, 5). Fomos concebidos no coração de Deus e, por isso, ‘cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é amado, cada um é necessário’”[25].

Marco Vanzini / Carlos Ayxelá


Leituras para aprofundar

Catecismo da Igraja Católica, nn. 279-324.

Francisco, Enc. Laudato si’, capítulo II, “O Evangelho a criação” (nn. 62-100)

Bento XVI, Audiência, 6-II-2013; Audiência, 9-XI-2005

– Homilia na Vigília Pascal, 23-IV-2011; Homilia na Vigília Pascal, 7-IV-2012.

– Mensagem aoMeetingde Rimini, 10-VIII-2012.

– Discurso na Pontifícia Academia das Ciências, 31-X-2008.

– Discursona Universidade de Regensburg, 12-IX-2006.

Juan Pablo II, Catequese sobre a criação, 8-I-1986 – 23-IV-1986.

– Memória e identidade, Planeta, Barcelona 2005.


Artigas, M.; Turbón, D. Origen del hombre. Ciencia, filosofía y religión, Eunsa, Pamplona 2007.

Chesterton, G. K. Santo Tomás de Aquino, Ecclesiae, Madrid 2015 (On Saint Thomas Aquinas).

Guardini, R. El principio de las cosas: Meditaciones sobre los tres primeros capítulos del Génesis, publicado em Meditaciones Teológicas, Cristiandad, Madrid, 1965, 13-113. (Der Anfang der Dinge [Meditationen über Genesis, Kapitel 1-3]).

– “El ojo y el conocimiento religioso”, em Los sentidos y el conocimiento religioso, Cristiandad, Madrid, 1965, 21-48. (“Das Auge und die religiöse Erkenntnis”).

– La aceptación de sí mismo. Lumen, Buenos Aires 2016; Cristiandad, Madrid 1962 (Die Annahme seiner selbst).

Kehl, M.La creación, Sal Terrae, Bilbao 2011 (Schöpfung: Warum es uns gibt).

Marmelada, C.; Palafox, E.; Llano, A. En busca de nuestros orígenes. Biología y trascendencia del hombre a la luz de los últimos descubrimientos, Rialp, Madrid 2017.

Maspero, G.; O’Callaghan, P. Creatore perché Padre. Introduzione all’ontologia del dono, Cantagalli, Siena 2012.

Polkinghorne, J. Science and Theology, Parallelisms, en Tanzella-Nitti, G. y Strumia, A. (eds.), Interdisciplinary Encyclopedia of Religion and Sciencewww.inters.org.

Ratzinger, J. Progetto di Dio. Meditazioni sulla creazione e la Chiesa, Marcianum Press, Venecia 2012 (Gottes Projekt. Nachdenken über Schöpfung und Kirche).

– Creación y pecado, Eunsa, Pamplona 2005 = En el principio creó Dios [incluye la conferencia Consecuencias de la fe en la creación], Edicep, Valencia 2008 (Im Anfang schuf Gott. Vier Münchener Fastenpredigten über Schöpfung und Fall. Konsequenzen des Schöpfungsglaubens).

– Deus e o mundo, Ratzinger J. (Gott und die Welt. Glauben und Leben in unserer Zeit).

Sanz, S. A Criação, em www.opusdei.org.

Tanzella-Nitti, G. Creation, en Tanzella-Nitti, G. y Strumia, A. (eds.), Interdisciplinary Encyclopedia of Religion and Sciencewww.inters.org.


[1] Francisco, Enc. Lumen Fidei (29-VI-2013), 27.

[2] J. Ratzinger, La fiesta de la fe, Desclée, Bilbao 1999, 25.

[3] Santo Agostinho, De quantitate animae (A grandeza da alma), 34, 77.

[4] É neste sentido que Bento XVI falou da “valentia para se abrir à amplitude da razão” (Discurso na Universidade de Ratisbona, 12-IX-2006).

[5] “Albert Einstein disse que nas leis da natureza ‘se revela uma razão tão superior que toda a racionalidade do pensamento e dos ordenamentos humanos em comparação é um reflexo absolutamente insignificante’ (...). Portanto, um primeiro caminho que leva à descoberta de Deus é a contemplação da criação com um olhar atento.” (Bento XVI, Audiência, 14-XI-2012).

[6] Nesse sentido, São Tomás de Aquino explica que para tirar o ser do nada é necessária uma “potência infinita” (cfr. Summa Theologica I, q. 45,5, ad 3): uma capacidade que não pode ser comunicada a nenhuma criatura, precisamente porque – como podemos perceber em nossa própria existência – as criaturas são contingentes, ou seja, poderiam nunca ter sido (Summa Theologica I, q. 104,1).

[7] Santo Agostinho, Sermão 68, 6.

[8] J. Ratzinger, Der Gott des Glaubens und der Gott der Philosophen (O Deus da fé e o Deus dos filósofos).

[9] J. Ratzinger, Creación y pecado, Eunsa, Pamplona 2005, 37.

[10] Muitos cientistas pensam assim; basta mencionar Einstein, que, com uma ideia peculiar de Deus chegou a dizer que “a ciência sem a religião está coxa; a religião sem a ciência é cega” (Pensieri, idee, opinioni [1934-1950], Newton Compton, Roma 1996, p. 29); e Georges Lemaître, sacerdote e físico, que pôs as bases do mais adiante se chamaria, a princípio com ironia, e depois mais seriamente, o Big Bang.

[11] Cfr. J. Ratzinger, A festa da fé, 25-26: “Se, partindo da realidade, a personalidade não é possível ou não existe, tampouco pode existir em lugar algum. A liberdade ou é possível partindo da realidade ou não existe”.

[12] Bem-Aventurado John Henry Newman, An Essay in Aid of a Grammar of Assent, Longmans Green and Co, Londres 1903, 389.

[13] Ibidem, 117.

[14] «L’amor che move il sole e l’altre stelle» (Dante, Commedia. Paradiso, XXXIII, 145).

[15] São Tomás de Aquino, Commentum in secundum librum Sententiarum, Prologus (citado em Catecismo da Iglesia Católica, 293).

[16] São Josemaria, É Cristo que passa, 184.

[17] Santo Agostinho, Confissões, X, 27, 38.

[18] G. K. Chesterton, Ortodoxia, São Paulo, 2008.

[19] Bento XVI, Audiência geral, 14-XII-2011.

[20] J. Guitton, Le temps et l’éternité chez Plotin et saint Augustin, Aubier, Paris 1955, 176-177.

[21] Bento XVI, Audiência geral, 23-V-2012.

[22] Francisco, Laudato si’, 76.

[23] Santo Irineu, Adversus haereses, 4, 20, 7 (citado em Catecismo da Igreja Católica, 294).

[24] Cfr. Catecismo da Igreja Católica, 347. Criação, milagre, adoração, agradecimento… Não é coincidência que esses motivos convirjam no mistério eucarístico: “A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração” (Francisco, Laudato si’, 236).

[25] Francisco,Laudato si’, 65; cfr. Bento XVI, Homilia no solene início do ministério petrino (24-IV-2005).

Fonte: https://opusdei.org/pt-br

Silêncio e escuta, para deixar o Espírito falar

A participação do Papa durante a XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo (Vatican News)

Nas palavras do Papa Francisco, um método para os membros do Sínodo e um convite aos jornalistas.

Andrea Tornielli

O Papa Francisco falou no início do Sínodo sobre a Sinodalidade, insistindo sobre o que diferencia uma assembleia eclesial de uma reunião política e enfatizando a centralidade de ouvir o Espírito Santo. O que começou em 4 de outubro é um Sínodo peculiar, semelhante apenas àquele de 1986 sobre a comunhão. A comunhão na Igreja e a sinodalidade como forma de viver e de expressar essa comunhão representam, de fato, aspectos fundamentais e não estão ligados a temas específicos.

O bispo de Roma também indicou um método para os membros do Sínodo, com um pedido que estendeu - pedindo compreensão - também aos jornalistas chamados a relatar o que está acontecendo no Vaticano neste mês de outubro.

Francisco explicou que no Sínodo a prioridade deve ser dada à escuta, à escuta do Espírito Santo acima de tudo. Ouvir o que os outros têm a dizer, ouvir o que aqueles que estão longe de mim têm a dizer, compartilhar suas experiências. Para fazer isso, é preciso uma ascese. É preciso manter um espaço protegido, para evitar que posições e protagonismos individuais prevaleçam sobre a harmonia sinfônica do todo. O Papa pede explicitamente "um certo jejum da palavra pública para proteger isso". Ele também pede que o que for publicado consiga, de alguma forma, transmitir isso. Francisco acrescentou: "Alguns dirão - e estão dizendo - que os bispos têm medo e por isso não querem que os jornalistas digam...". Expressando assim a atitude e o discernimento exigidos dos membros do Sínodo em primeiro lugar.

Na noite do primeiro dia de assembleia, foi divulgado o regulamento dos trabalhos para estes dias que afirma que "a cada um dos participantes é solicitado de manter a privacidade e a confidencialidade seja com relação às suas próprias intervenções, seja em relação às intervenções dos outros participantes".

Manter esse espaço protegido não significa não saber o que está acontecendo. De fato, este é o Sínodo com o maior número de transmissões ao vivo da história: das meditações do retiro espiritual até as saudações, dos relatórios introdutórios de cada módulo até as coletivas diárias de imprensa sobre os conteúdos debatidos. São bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos e leigas de todas as partes do mundo que, juntos, em um clima de oração e não de oposição ou polarização, buscam nas próximas semanas compreender os caminhos que o Espírito indica para um anúncio evangélico capaz de chegar a todos e por uma Igreja cada vez mais fiel à sua origem, uma Igreja de portas abertas, "a casa paterna onde há lugar para cada um com a sua própria vida fatigante".

Fonte: https://www.vaticannews.va/pt

São Bruno Abade

São Bruno Abade (Guadium Press)

06 de outubro

São Bruno Abade

São Bruno

São Bruno foi um nobre alemão e sacerdote famoso. Porém, ao se deparar com uma realidade sobrenatural, desistiu da fama e fundou uma das Ordens Monásticas mais austeras da Igreja.

A este santo se deve a fundação de uma das Ordens religiosas mais importantes e mais humildes que prestam austeridade e reconhecimento a Deus. A ordem de Cartuxa da Torre (a Ordem dos Cartusianos).

Origens

Bruno nasceu na cidade de Colônia, Alemanha, no ano 1030. Nasceu em berço nobre. Ainda muito jovem foi enviado para fazer seus estudos em Reims e Paris, na França.  Destacou-se nos estudos por causa de sua inteligência brilhante. Tornou-se especialista em humanidades, línguas, direito e outras matérias. E, me meio ao mundo universitário, sentiu-se chamado para o sacerdócio.

Ordenação

Quando terminou os estudos, o jovem Bruno voltou para a sua terra natal na Alemanha. Confirmando sua vocação, entrou para o Colegiado de São Cuniberto, onde foi ordenado padre.

A conversão de um padre

Alguns anos mais tarde, o Padre Bruno voltou à cidade de Reims para dar aulas de teologia. Passou algum tempo em Reims e depois foi lecionar teologia em Paris. Estando na França, foi certa vez uma cidade chamada Sena. Ali, um fato mudaria radicalmente o rumo de sua vida. Padre Bruno foi celebrar as exéquias, ou seja, foi fazer a encomendação de um defunto. Quando foram enterrar o morto, padre Bruno ouviu a voz do cadáver por três vezes, sendo que, no final, o morto disse: 'Por justo juízo de Deus fui condenado'. Presenciar este fato e ouvir estas palavras mexeram profundamente com a vida do padre Bruno. Depois disso ele abandonou totalmente o luxo que os padres tinham na época e entregou sua vida a Deus, com o desejo de viver na contemplação, na caridade para com o próximo, na oração, no silêncio e nos exercícios espirituais.

O chamado de Bruno arrasta seus amigos

Os amigos do Padre Bruno, vendo a radicalidade de sua conversão, sentiram-se também chamados a viverem mais radicalmente o Evangelho. Então eles se reuniram, repartiram tudo o que tinham com os pobres e ingressaram na Abadia Beneditina de Solesmes. Ali viveram a vida monástica por algum tempo seguindo a regra de São Bento.

Austeridade

O Padre Bruno, porém, sentia necessidade de uma vida mais austera. A experiência que tivera rezando por aquele defunto o fez enxergar que tudo nesta vida é passageiro e que devemos fazer todo esforço possível para alcançarmos a verdadeira vida na presença de Deus. Por isso, ele e mais 6 companheiros retiraram-se para uma região rochosa no alto de uma serra chamada Cartuxa. Esses montes ficavam no centro de um deserto que fazia parte da Diocese de Grenoble, também na França.

Confirmação profética

Na noite anterior à chegada do Padre Bruno e seus companheiros, o bispo de Grenoble teve um sonho: ele viu sete estrelas descerem do céu sobre aquela região desértica. Foi no ano de 1084. Neste ano, São Bruno e seus companheiros assumiram aquele lugar como um presente de Deus. Ali, ergueram barracos bem simples feitos de madeira e uma capelinha dedicada a Nossa Senhora. Quando terminaram de construir a capelinha e de dedicá-la à Virgem Maria, jorrou da terra um jato de água que se transformou numa fonte fornecedora de água e vida para aqueles monges solitários.

Nascimento da Ordem de Cartuxa

Assim nasceu a famosa Ordem Cartuxa. São bruno e seus companheiros escolheram viver uma vida bastante rigorosa. Alimentavam-se apenas de dois em dois dias. Dormiam menos e viviam sob muita disciplina. Vestiam roupas brancas e ásperas e dedicavam suas vidas à oração, ao trabalho e à caridade fraterna. Um abade, superior da comunidade Monástica de Cluny, conheceu a vida de São Bruno e seus companheiros e a descreveu assim:

'... São os mais pobres entre os monges e habitam cada um uma cela com seu tosco habito de penitencia e quase só comem pão. Não comem carne, nem pescado. Aos domingos e as quintas comem ovos e queijo. As segundas e sábados ervas e nos outros dias água e pão. Só comem uma vez ao dia, exceto nos dias de festa quando não comem e guardam estrito silencio, se comunicando através de sinais.'

Chamado a deixar o deserto

Depois de alguns anos vivendo no deserto, vários discípulos juntaram-se a São Bruno e seus companheiros. Eles também buscavam uma vida austera, de oração e contemplação. Padre Bruno sentia-se feliz na vida que levava. Porém, o Papa Urbano II, que conhecia o Padre Bruno e sabia de suas qualidades, pois tinha sido seu professor na cidade de Reims, chamou-o para ser seu colaborador em Roma. Padre Bruno aceitou por obediência, vendo nisso um chamado de Deus.

Em Roma

Alguns discípulos seguiram o Padre Bruno. Em Roma, ele foi nomeado pelo Papa como Arcebispo de Reggio. Em seu coração, porém, a vontade era de voltar à vida na Cartuxa e ao  silencio. Depois de alguns anos, tendo prestado grandes serviços à Igreja no tocante à instrução dos clérigos e à assessoria direta ao Papa, obteve licença do Papa para voltar à solidão monástica, ao silêncio e à contemplação.

Voltando à vida contemplativa

O Papa permitiu que Dom Bruno voltasse à vida monástica, porém, dentro da Itália, para que, quando fosse preciso, pudesse encontra-lo com facilidade. Assim, Dom Bruno foi para a Calábria. Lá, ele fundou, acompanhado de seus amigos que o tinham seguido até Roma, o Mosteiro de Santa Maria del Yermo. Sua nova fundação também passou a ser conhecida como Ordem Cartuxa da Torre.

A Ordem floresce

Na Calábria, a Ordem recém fundada por Dom Bruno floresceu. Logo foi preciso construir outro mosteiro. Este, construído em Bosco, recebeu o nome de Santo Estéfano. O povo, tendo descoberto a presença de Dom Bruno e sabendo de sua fama de santidade, passou a procura-lo para pedir aconselhamento, auxílio, orações. Assim, muitos foram curados pelas bênçãos e orações de São Bruno. Seu renome chegou a vários cantos da Europa, espalhando-se pela Itália, Alemanha e França.

Falecimento

São Bruno faleceu no dia 6 de outubro do ano 1101. Multidões foram se despedir dele e pedir sua intercessão, tendo a certeza de que ele já estava na glória de Deus. E muitas graças aconteceram. Após sua morte, ele se tornou o padroeiro da cidade de Colônia, na Alemanha.

A festa de São Bruno passou a ser celebrada no dia de sua passagem para o céu, em 6 de outubro.

Oração a São Bruno

"Onipotente e Eterno Deus, que concedestes a graça da fidelidade a São Bruno, fundador da Ordem dos Cartuxos, através do silêncio e da contemplação, concedei-nos também a nós sermos bem firmes na fé pela contemplação de vossas maravilhas. SÃO BRUNO, ROGAI POR NÓS."

Fonte: https://cruzterrasanta.com.br/

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

“Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era bom” (A Criação, 1)

Foto: Kurt K. Kreger (cc)

“Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era bom” (A Criação, 1)

Se antes o mundo manifestava Deus, hoje, para muitos, se tornou obscuro. Por que a fé na Criação é ainda decisiva na era da ciência?

27/09/2017

“Quando olho para o teu céu, obra de tuas mãos, vejo a lua e as estrelas que criaste: Que coisa é o ser humano, para dele te lembrares, o filho do homem, para o visitares?” (Sl 8,4-5). A contemplação do mundo causa assombro nos homens de todas as épocas. Também hoje, mesmo que possamos conhecer bem as causas físicas das cores de um pôr do sol, de um eclipse ou da aurora boreal, presenciar esses fenômenos nos fascina. Além disso, à medida que a ciência avança, se torna mais patente a complexidade e a imensidão que nos rodeia, tanto abaixo da nossa escala – desde a vida microscópica até as entranhas da matéria – como acima, nas distâncias e magnitudes das galáxias, que ultrapassam a imaginação de qualquer um.

À MEDIDA QUE A CIÊNCIA AVANÇA, SE TORNA MAIS PATENTE A COMPLEXIDADE E A IMENSIDÃO QUE NOS RODEIA, TANTO ABAIXO DA NOSSA ESCALA

Também nos surpreendemos profundamente ao considerar a realidade de nosso eu: quando percebemos que existimos, sem podermos compreender completamente a origem da nossa vida e da consciência que cada um tem de si próprio. De onde venho? Ainda que a velocidade com que se vive hoje em muitas partes do planeta leve a esquivar este tipo de perguntas, na realidade não são questões exclusivas para pessoas especialmente introspectivas: correspondem a uma necessidade de encontrar as coordenadas fundamentais, uma orientação que pode ficar adormecida, mas cedo ou tarde, volta a brotar na vida de todos.

A busca de um Rosto além do universo

Perceber o abismo da própria consciência ou a imensidão do mundo pode se limitar, às vezes, a sentir uma profunda vertigem. No entanto, em todas as épocas, a religiosidade dos homens sondou além desses fenômenos; buscou, de formas, muito variadas, um Rosto ao qual adorar. Por isso, diante do espetáculo da natureza, diz o salmista: “Os céus narram a glória de Deus, o firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 19, 2); e também, ante o mistério do eu, da vida: “Eu te louvo porque me fizeste maravilhoso” (Sl 139,14). Durante séculos esta passagem do mundo visível a Deus se fazia com grande naturalidade. Mas hoje, às vezes, o fiel se vê ante perguntas que podem causar perplexidade: essa busca de um Rosto além do universo conhecido não é própria de um estado superado da humanidade? Os avanços da ciência, mesmo quando esta não disponha de respostas para todas as perguntas e problemas, não fazem da noção de criação um tipo de cobertura da nossa ignorância? Portanto, não é uma questão de tempo que a ciência responda a todas essas perguntas?

Seria um erro descartar com muita rapidez essas questões como impertinências, ou como sintomas de um ceticismo sem fundamento. Simplesmente, manifestam como “a fé tem que ser revivida e reencontrada em cada geração”[1]: também no momento presente, no qual a ciência e a tecnologia mostram tudo o que o homem pode conhecer e fazer por si mesmo, até o ponto de que a ideia da existência de algo anterior à nossa iniciativa se tornou, às vezes, distante e difícil de imaginar. Essas questões, pois, requerem uma consideração tranquila, que permita fortalecer a própria fé, compreendendo o seu sentido e a sua relação com a ciência e a razão, para poder iluminar também a outros. Naturalmente, em dois artigos só é possível traçar algumas vias, sem esgotar um problema que por si só afeta muitos aspectos da fé cristã.

A revelação da criação

Em nosso percurso podemos partir simplesmente da afirmação fundamental da Bíblia sobre a origem de tudo o que existe e, em particular, de cada pessoa ao longo da história. Trata-se de uma afirmação muito concreta e fácil de enunciar: somos criaturas de Deus, fruto da sua liberdade, sabedoria e amor. “O Senhor realiza tudo quanto quer no céu e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sl 135, 6). “Como são numerosas, Senhor, tuas obras! Tudo fizeste com sabedoria, a terra está cheia das tuas criaturas” (Sl 104,24).

O PRÓPRIO GÊNESIS NÃO POUPA DETALHES SOBRE COMO O MAL E A DOR ABREM CAMINHO DESDE O INÍCIO DA HISTÓRIA, NO ENTANTO AFIRMA REPETIDAMENTE QUE O MUNDO É ESSENCIALMENTE BOM

Entretanto, às vezes, as afirmações mais simples ocultam as realidades mais complexas. Se, no presente, a razão humana não vê nitidamente essa concepção do mundo como criatura, tampouco chegou a ela de um modo simples. Historicamente, a noção de criação –no sentido em que a Igreja exprime no Credo – surgiu só no percurso da revelação ao povo de Israel. O apoio da Palavra divina permitiu expor os limites das distintas concepções míticas sobre as origens do cosmos e do homem, para ultrapassar as especulações dos brilhantes filósofos gregos, e reconhecer o Deus de Israel como o único Deus, que criou tudo do nada.

Uma característica distintiva do relato bíblico é, pois, o fato de que Deus crie sem partir de nada preexistente, só com a força da sua palavra: “Deus disse: ‘Faça-se a luz’! E a luz se fez (...).‘ ‘Façamos o ser humano à nossa imagem’ (...). Deus criou o ser humano à sua imagem” (Gn 1, 3.26-27).

Também é característico deste relato o fato de que na origem não havia nenhum rastro de mal: “Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom” (Gn 1, 31). O próprio Gênesis não poupa detalhes sobre como o mal e a dor abrem caminho desde o início da história. Contudo, e em contraste com esta experiência universal, a Bíblia afirma, repetidamente, que o mundo é essencialmente bom, que a Criação não é uma forma degradada de ser, mas um imenso dom de Deus. “O universo não apareceu como resultado duma onipotência arbitrária, duma demonstração de força ou dum desejo de autoafirmação. A criação pertence à ordem do amor. (...): “Tu amas tudo quanto existe e não detestas nada do que fizeste; pois, se odiasses alguma coisa, não a terias criado” (Sb 11, 24). Então cada criatura é objeto da ternura do Pai que lhe atribui um lugar no mundo. Até a vida efêmera do ser mais insignificante é objeto do seu amor e, naqueles poucos segundos de existência, Ele envolve-o com o seu carinho”[2].

NOSSOS ANTEPASSADOS NÃO TIVERAM UM MICROSCÓPIO, ACELERADORES DE PARTÍCULAS OU REVISTAS ESPECIALIZADAS, MAS TALVEZ SABIAM E VIAM COISAS ESSENCIAIS; COISAS QUE NÓS PODEMOS TER PERDIDO DE VISTA PELO CAMINHO

O início do Evangelho de São João também lança uma luz decisiva sobre esse relato. “No princípio era o Verbo” (Jo 1, 1), escreve o quarto evangelista, retomando as primeiras palavras do Gênesis (Cfr. Gn 1, 1). No início do mundo está o logos de Deus, que faz dele uma realidade profundamente racional, radicalmente plena de sentido. “Contigo está a Sabedoria que conhece as tuas obras e que estava presente quando fazias o mundo; ela sabe o que é agradável aos teus olhos e o que é correto conforme os teus preceitos” (Sb 9, 9). A propósito do termo grego com o qual se designa ao Verbo de Deus, explicava Bento XVI: “Logos significa conjuntamente razão e palavra – uma razão que é criadora e capaz de se comunicar, mas precisamente enquanto razão. Com este termo, João ofereceu-nos a palavra conclusiva para o conceito bíblico de Deus, uma palavra na qual todos os caminhos, muitas vezes cansativos e sinuosos, da fé bíblica alcançam a sua meta, encontram a sua síntese. No princípio era o logos, e o logos é Deus: diz-nos o evangelista. Este encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento grego não era simples coincidência”[3].

Todo diálogo pressupõe um interlocutor racional, com logos. Desta forma, o diálogo que os filósofos gregos começaram a praticar com o mundo era possível precisamente porque a realidade criada está repleta de racionalidade, de uma lógica muito simples e ao mesmo tempo muito complexa. Este diálogo vinha a encontrar-se, pois, com a afirmação decidida de que o mundo “não é fruto duma qualquer necessidade, dum destino cego ou do acaso”[4], mas de uma inteligência amorosa – um Ser pessoal – que transcende a própria ordem do universo, porque o precede.

O núcleo dos relatos da criação

Não é raro que os relatos da criação no Gênesis sejam percebidos hoje como textos belos e poéticos, cheios de sabedoria, mas no fundo, não estão à altura da sofisticação e a seriedade metodológica que a ciência e a crítica literária e histórica adquiriram com o tempo. No entanto, seria um erro tratar com desdém os nossos antepassados porque não tiveram um microscópio, aceleradores de partículas ou revistas especializadas: esqueceríamos facilmente que talvez sabiam e viam coisas essenciais; coisas que nós podemos ter perdido de vista pelo caminho. Para compreender o que uma pessoa ou um texto querem nos dizer é necessário compreender o seu modo de falar, sobretudo se é diferente do nosso. Neste sentido, convém ter em conta que, nos relatos da criação, “a imagem do mundo emerge sob as letras do autor inspirado com as características das cosmogonias da época”, e é nesse quadro onde Deus insere a novidade específica da sua revelação a Israel e aos homens de todos os tempos: “a verdade sobre a criação de tudo por obra do único Deus”[5].

MESMO NO MEIO DA IMPERFEIÇÃO, DO MAL, DA DOR, O CRISTÃO VÊ EM CADA SER UM PRESENTE QUE SURGE DO AMOR E QUE CHAMA AO AMOR: A DESFRUTAR, A RESPEITAR, A CUIDAR, A TRANSMITIR

Contudo, se responde com frequência que, a noção de criação teve um papel no passado, mas hoje seria ingênuo tentar propor isso novamente. A física moderna e as descobertas sobre a evolução das espécies teriam tornado obsoleta a ideia de um criador que intervém para gerar e dar forma ao mundo: a racionalidade do universo seria, no melhor dos casos, uma propriedade interior à matéria, e falar de outros agentes suporia desafiar a seriedade do discurso científico. No entanto, ao raciocinar deste modo, faz-se de modo inconsciente, uma leitura literalista da Bíblia, que a própria Bíblia descarta. Se, por exemplo, se comparam os dois relatos sobre a criação, situados um após o outro nos dois primeiros capítulos do Gênesis, observam-se diferenças muito claras que não é possível atribuir a um descuido do redator. Os autores sagrados eram conscientes de que não precisavam oferecer uma descrição detalhada e literal sobre como foi a origem do mundo e do homem: procuravam expressar, por meio da linguagem e dos conceitos de que dispunham, algumas verdades fundamentais[6].

Quando se compreende corretamente a linguagem peculiar desses relatos – uma linguagem primitiva, mas cheia de sabedoria e de profundidade –, pode-se identificar o seu verdadeiro núcleo. Falam-nos de uma “intervenção pessoal”[7] que transcende a realidade do universo: antes do mundo existe a liberdade pessoal e a sabedoria infinita de um Deus criador. Por meio de uma linguagem simbólica, aparentemente ingênua, uma profunda pretensão de verdade abre o seu caminho; poderia ser resumida assim: Deus fez tudo isto porque quis[8]. A Bíblia não pretende pronunciar-se sobre os estados da evolução do universo e da origem da vida, mas afirmar “a liberdade da onipotência”[9] de Deus, a racionalidade do mundo que Deus cria, e o seu amor por este mundo. Desta forma se mostra uma imagem da realidade, e de cada um dos seres que fazem parte dela, como “um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos”[10]. A realidade, sob a luz da fé na criação, é marcada em sua própria entranha com o sinal da aceitação. Mesmo no meio da imperfeição, do mal, da dor, o cristão vê em cada ser um presente que surge do Amor e que chama ao amor: a desfrutar, a respeitar, a cuidar, a transmitir.

Marco Vanzini / Carlos Ayxelá

Foto: Kurt K. Kreger (cc)


[1] J. Ratzinger, Dios y el mundo, Random House Mondadori, Barcelona 2002, p. 49.

[2] Francisco, Enc. Laudato si’ (24-V-2015), 77.

[3] Bento XVI, Discurso na Universidade de Regensburg (12-IX-2006).

[4] Catecismo da Igreja Católica, 295.

[5] São João Paulo II, Audiência, 29-I-1986.

[6] Junto a essas razões internas à própria Bíblia, o conhecimento sobre a forma correta de interpretar o texto sagrado também se conseguiu pelo diálogo – não isento de tensões, mas muito frutífero – entre a teologia e a ciência. Nesses longos processos, é frequente que ocorram excessos por ambas as partes, que se alimentam mutuamente: uma leitura fundamentalista da Bíblia, pela qual se pretende fazer que diga mais do que realmente diz, costuma desacreditar o texto sagrado, de modo que a ciência se considera autorizada a dizer mais do que realmente é capaz de dizer sobre a origem e o sentido da realidade.

[7] J. Ratzinger, La fiesta de la fe, Desclée, Bilbao 1999, 25.

[8] Esta convicção estava radicada fortemente na fé de Israel, como mostram as palavras de uma mãe a seu filho, antes do martírio: “Eu te suplico, filho, contempla o céu e a terra e o que neles existe. Reconhece que Deus os fez do que não existia, e que assim também se originou a humanidade” (2 Mc 7, 28).

[9] R. Guardini,La fine dell’epoca moderna. Il potere, Morcelliana, Brescia 1993, 17.

[10] Francisco, Laudato si’, 76.

Fonte: https://opusdei.org/pt-br

Laudate Deum: o apelo final do Papa Francisco para deter a catástrofe climática

Antoine Mekary | ALETEIA
Por I. Media

Em 4 de outubro de 2023, o Papa Francisco publicou a exortação apostólica Laudate Deum ("Louvado seja Deus"), a continuação de sua encíclica Laudato si'. Deciframos este texto de vinte páginas. Veja aqui:

Oito anos após a publicação da encíclica Laudato si’, o Papa Francisco está pedindo aos líderes mundiais que ajam em relação à urgência do aquecimento global em sua exortação apostólica Laudate Deum, publicada em 4 de outubro de 2023. A agência I.MEDIA decifra esse texto altamente político de cerca de vinte páginas que o Papa quis publicar no Dia de São Francisco de Assis, apenas algumas semanas antes da COP 28 em Dubai.

1- Por que o Papa está soando o alarme (novamente)?

“O mundo que nos acolhe está desmoronando e pode estar se aproximando de um ponto de ruptura”. Com quase 87 anos, o pontífice argentino está pegando sua caneta novamente para alertar o mundo sobre a “crise climática global” que o ameaça. Para ele, não se trata mais de “negar”, “esconder”, “ocultar” ou “relativizar” os sinais da mudança climática: “[eles] estão aí, cada vez mais evidentes”.

Criticando as “opiniões desdenhosas e irracionais” que ele diz encontrar sobre o assunto, “mesmo dentro da Igreja Católica”, o Papa se baseia em um grande conjunto de dados científicos para finalmente afirmar: “Não podemos mais duvidar da origem humana […] das mudanças climáticas”.

A acidez dos oceanos, o derretimento das geleiras, o aumento do nível do mar, as secas… o chefe da Igreja Católica lista os sinais de uma “doença silenciosa” que afeta a humanidade e reitera que “a mudança nas temperaturas médias da superfície não pode ser explicada sem o efeito do aumento dos gases de efeito estufa”.

Observando com amargura que “as reações são insuficientes”, ele advertiu mais uma vez: “Não podemos mais impedir o enorme dano que causamos. Só temos tempo para evitar danos ainda mais dramáticos”.

2- A quem o Papa Francisco está se dirigindo?

Para essa 5ª exortação apostólica de seu pontificado, o Papa usa uma fórmula incomum, dirigindo esse texto “a todas as pessoas de boa vontade”. Embora o papa nos garanta, no final do texto, que não quer “deixar de lembrar aos fiéis católicos as motivações que decorrem de sua fé”, ele imediatamente nos lembra que sua exortação também é dirigida aos “irmãos e irmãs de outras religiões”. Portanto, seu público-alvo não são apenas os católicos, mas todos aqueles afetados pelas mudanças climáticas… em outras palavras, todos.

Em comparação, sua primeira exortação Evangelii Gaudium (2013) foi dirigida a “bispos, padres e diáconos, pessoas consagradas e fiéis leigos”. O mesmo público foi alvo da Amoris Laetitia (2016), com a adição das palavras “cônjuges cristãos”. Christus vivit (2019) foi dirigida aos “jovens e a todo o povo de Deus”. Por fim, Querida Amazônia (2020) foi dirigida “ao povo de Deus e às pessoas de boa vontade”.

Pela primeira vez desde 2013, o Papa está publicando uma exortação que não é fruto de um Sínodo, mas de uma intuição pessoal ligada à aproximação da COP28. A linguagem desse documento é, portanto, deliberadamente secular, mais próxima dos discursos dos diplomatas da Santa Sé na ONU do que dos textos anteriores do pontificado, incluindo a Laudato si’, que assumiu um tom mais espiritual e bíblico, com um apelo à conversão de estilos de vida.

Trata-se mais de um apelo internacional, dirigido principalmente aos tomadores de decisão, que são, portanto, “instados” a tomar decisões concretas dentro da estrutura de negociações multilaterais que permitem que todos os Estados, mas também atores não estatais, como as ONGs, expressem suas opiniões.

3- O que ele propõe?

Em sua carta, o Papa Francisco faz um ataque intransigente ao “paradigma tecnocrático” que instalou a “ideologia” do “crescimento infinito” e deu tanto poder a “uma pequena parte da humanidade”. Ele continua criticando as fraquezas do “multilateralismo”, que não deve ser confundido com “autoridade global concentrada nas mãos de uma única pessoa ou de uma elite com poder excessivo”.

Como ele repete regularmente em seus discursos para embaixadores em particular, nessa carta ele defende o estabelecimento de uma nova autoridade mundial “eficaz”, regulada “por lei” e não dependente de “mudanças nas circunstâncias políticas ou dos interesses de alguns”.

Para isso, ele conta com a ação da sociedade civil e dos cidadãos, e afirma: “Se os cidadãos não controlarem o poder político – nacional, regional e municipal -, os danos ambientais também não poderão ser controlados”.

Embora reconheça que “as soluções mais eficazes não virão apenas de esforços individuais, mas, sobretudo, de grandes decisões políticas nacionais e internacionais”, o papa enfatiza a importância da “nova cultura” trazida pelo comportamento doméstico “para poluir menos, reduzir o desperdício e consumir com moderação”. Essas iniciativas, acrescenta, “podem exercer pressão sobre os fatores de poder” e ter “uma dinâmica efetiva que as Nações Unidas não podem alcançar”, explica o pontífice argentino.

4- O que o Papa espera da próxima COP 28?

A redação da encíclica Laudato si’ foi acelerada para que pudesse ser publicada antes da COP 21 em Paris. Desta vez, o Papa Francisco está usando a próxima COP nos Emirados Árabes Unidos como uma oportunidade para aumentar a conscientização. Ele dedica um capítulo inteiro ao assunto com o título: “O que podemos esperar da COP28 em Dubai?

Observando desde o início que o país do Golfo é um “grande exportador de combustíveis fósseis”, o Papa não quer se dar por vencido: dizer que não há nada a esperar seria um ato suicida que exporia toda a humanidade, especialmente os mais pobres, aos piores impactos das mudanças climáticas.

Depois de relembrar os sucessos, mas principalmente os fracassos, das cúpulas anteriores, ele espera “um ponto de virada” em dezembro e estabelece alguns objetivos grandiosos: a introdução de “formas obrigatórias de transição energética”. Elas devem ser “eficazes, obrigatórias e fáceis de monitorar”. “Somente dessa forma concreta será possível reduzir significativamente o dióxido de carbono e evitar os piores males a tempo”, adverte, argumentando que tais medidas restaurariam “a credibilidade da política internacional”.

Ele não está esperando que soluções puramente tecnológicas sejam encontradas para pôr fim à crise. Pelo contrário, ele adverte: “Supor que qualquer problema futuro possa ser resolvido por novas intervenções técnicas é um pragmatismo homicida”.

5- O grito de um Papa do Sul?

Em consonância com muitos dos discursos e textos de seu pontificado, o Papa Francisco está mais uma vez falando em nome do Sul, denunciando fortemente o domínio dos países ricos e seu modelo de desenvolvimento sobre o resto do mundo. “Na tentativa de simplificar a realidade, não falta quem culpe os pobres de terem demasiados filhos e procure resolver o problema mutilando as mulheres dos países menos desenvolvidos”, insiste o pontífice, apontando para as campanhas em favor da contracepção e do aborto regularmente conduzidas pelo Ocidente.

“Mas a realidade é que uma reduzida percentagem mais rica do planeta polui mais do que o 50% mais pobre de toda a população mundial e que a emissão pro capite dos países mais ricos é muitas vezes superior à dos mais pobres. Como esquecer que a África, que alberga mais de metade das pessoas mais pobres do mundo, é responsável apenas por uma mínima parte das emissões no passado?”, escreve o Papa.

Observando que as emissões per capita nos Estados Unidos são cerca de duas vezes maiores do que as de uma pessoa que vive na China, e cerca de sete vezes maiores do que a média dos países mais pobres, Francisco aponta diretamente para a responsabilidade do Ocidente pelas mudanças climáticas. “Podemos afirmar que uma mudança generalizada do estilo de vida irresponsável ligado ao modelo ocidental teria um impacto significativo a longo prazo”, afirma.

Apelando para uma mudança radical, o Papa expressa sua simpatia pelos “acontecimentos” liderados pelos movimentos ambientais. “Por ocasião das Conferências sobre o Clima, chamam frequentemente a atenção as ações de grupos ditos «radicalizados»; mas na realidade eles preenchem um vazio da sociedade inteira que deveria exercer uma sã pressão, pois cabe a cada família pensar que está em jogo o futuro dos seus filhos”, insiste o Papa.

Fonte: https://pt.aleteia.org/

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF